Escrever o texto abaixo foi uma das coisas mais difíceis que eu já tive que fazer na minha vida. Na época eu tinha 21 anos de idade e morria de medo de sair do armário. Tinha receio do que as pessoas pudessem pensar de mim. Mas certo dia resolvi tomar as rédeas da minha vida e tornar pública minha orientação sexual. E queria fazê-lo de forma que eu não pudesse voltar atrás. Decidi, então, escrever um texto no blog que eu mantinha na época. Eu sabia que se publicasse-o ali todas as pessoas para as quais eu queria revelar esse segredo que me corroía veriam e sabia também que não teria coragem de apagá-lo. Eu publiquei e, para minha surpresa, a reação dos meus leitores não foi a esperada. Muito pelo contrário. A reação deles foi de respeito pela minha coragem. Eu percebi então que o medo de rejeição estava apenas na minha cabeça. Na verdade, não me importava se meus amigos de faculdade me aceitariam ou não - amigos vão e vêm. Para mim só me importava ser aceito pelos meus pais. E, graças a Deus, eles me aceitaram muito bem. Depois de algum tempo, mandei o texto para o Página 13, jornal da esquerda petista com o intuito não de me promover, mas de ajudar de alguma forma aS pessoas que poderiam estar passando por aquilo que eu passei. Publico ele aqui novamente porque o momento atual em que vivemos, de fascistização da sociedade, pede isso. mesmo que ele não condiga mais com tudo o que penso sobre orientação sexual e identidade de gênero, uma vez que minhas opiniões sobre o assunto se refinaram após eu ter realizado novas leituras. O debate sobre os temas orientação sexual e identidade de gênero foi sequestrado pelas direitas religiosas e eu espero contribuir de alguma forma para que ele avance, fora do escopo daqueles que desejam acabar com a separação Igreja-Estado. Não creio que sair do armário deva ser um ato político, embora para mim e para tantos outros tivesse sido (e ainda é). A sexualidade humana é plural, como o Dr. Kinsey demonstrou há mais de cinco décadas, e respeitar isso é respeitar a própria essência humana. A atração - romântica e sexual - por pessoas do mesmo sexo é apenas um traço de nossas características pessoais, assim como o fato de algumas pessoas preferirem Fanta a Coca-Cola.
DOMINGO, 20 DE NOVEMBRO DE 2011
No início do ano, li um post no Escreva Lola Escreva sobre a subrepresentação das mulheres na indústria cinematográfica norte-americana. Além de conhecer um blog bacana, fiquei estarrecido com os números apresentados. Nos chamados family films, aqueles que são feitos para toda a família assistir, 71% dos personagens são masculinos. Nas cenas de multidões, apenas 17% dos extras são meninas e em 25% das ocasiões elas estão usando roupas sensuais. Como forma de reflexão sobre a representação das mulheres no cinema, o Teste Bechdel, criado em 1985 por Allison Bechdel, propõe às mulheres que analisem três questões básicas após assistirem a um filme: 1) se ele tem pelo menos duas personagens femininas, 2) se essas personagens conversam entre si e 3) se o tema da conversa delas não é os homens. Pode parecer banal, mas inúmeros filmes famosos, como os vencedores do Oscar de melhor filme Quem Quer Ser um Milionário (2008), Senhor dos Anéis - O Retorno do Rei (2003), Gladiador (2000) e Coração Valente (1995), não passam no teste, conforme revela um vídeo postado no YouTube. Se a indústria produzir mais filmes que respeitem esses requisitos, isso não significa necessariamente que ela está sendo feminista, apenas que se preocupa em retratar as mulheres como seres humanos com vidas complexas e não apenas complementos de seus parceiros, conforme acontece na vida real.
E o que dizer a respeito da maneira como os homossexuais são representados na mídia? Posso dizer por experiência própria que é uma coisa horrível crescer sem se ver representado nos veículos de comunicação em massa. Até a minha pré-adolescência, no final da década de 1990, só tive contato com figuras estereotipadas da minha orientação sexual. Era comum ver nas telenovelas personagens ultra-afeminados sendo utilizados para efeito puramente cômico. Geralmente, eram amigos das mocinhas, não possuindo história própria dentro das tramas. Também era bastante corriqueiro me deparar com entrevistas com figuras igualmente caricatas, só que da vida real, em programas como os de Marcia Goldsmith e de Ratinho, onde a intenção óbvia era alavancar a audiência e não produzir um debate sobre a questão da homossexualidade na sociedade brasileira. A consequência óbvia disso é que desenvolvi uma homofobia internalizada. Me achava uma aberração da natureza, que deveria ser "consertada" antes de atingir a fase adulta. Foi exatamente essa a reação que tive quando assisti ao filme Será Que Ele É? (1997) na Rede Record. A sensação de desconforto era enorme, sem falar que eu achava uma imoralidade um filme estar promovendo uma "doença" que deveria ser combatida e que eu mesmo tinha tanta dificuldade em minar. Fui, provavelmente, um dos únicos a assistir àquele filme a torcer para que Howard Brackett (personagem de Kevin Kline) não ficasse com Peter Malloy (Tom Selleck) no final. Parecia-me insensato que um cara inteligente e bem-sucedido como ele — na verdade um macho perfeito, a caminho do altar — sucumbisse a seus desejos mais terríveis.
E, assim sendo, minha mente seguiu em conflito consigo mesma até o início da década de 2000. Foi nessa época que colocamos NET aqui em casa e comecei a ter acesso a um variado leque de produções norte-americanas. A que mais me fez perceber que a homossexualidade não era uma condição a ser combatida e que eu de fato poderia conviver com ela e ainda assim ser feliz foi a série de comédia Will and Grace (1998—2006). Conseguia me identificar muito com o personagem de Will Truman (Eric McCormack), um advogado bem sucedido e talvez o primeiro personagem gay que vi na vida que não fosse completamente afeminado e de fato possuía outras características além de sua homossexualidade. Will era sagaz, inteligente e, além disso, homossexual. Por outro lado, o programa também contava com Jack McFarland (Sean Hayes), um gay espalhafatoso e superficial, que trocava de namorado e de emprego a cada quatro ou cinco episódios. A intenção óbvia dos criadores do programa era mostrar a um público extremamente conservador como o norte-americano que, assim como na vida real, os homossexuais podem ser afeminados ou não. Apesar de ter assistido a alguns outros seriados que tratassem da temática, Will and Grace foi o mais longevo deles e o que mais me marcou, justamente por me deixar confortável com minha própria sexualidade.
Com o fim do seriado, em 2006, fiquei "órfão" de produções com as quais conseguisse me identificar e que conseguissem elevar meu estado de espírito. Veio, então, o filme O Segredo de Brokeback Mountain (2006), que representou um verdadeiro baque na minha vida. Após assisti-lo, não consegui pensar em mais nada por dois dias. No dia seguinte, fui ao cinema assistir ao filme infantil O Bicho Vai Pegar com uma amiga da escola e simplesmente não conseguia prestar atenção no que se passava na tela. Minha mente continuava ligada no romance de Ennis Del Mar (Heath Ledger, morto prematuramente em 2008, aos 28 anos de idade) e Jack Twist (Jake Gyllenhaal). A história desses dois caubóis, aparentemente machões, que se apaixonam e vivem um romance secreto, o que leva ao final trágico de um deles, mexeu com todos os estereótipos e pré-conceitos que eu ainda pudesse ter sobre o que significava ser um homem que gostava de homens. A partir de então, ficou definitiva na minha mente a percepção de que masculinidade e homossexualidade não são conceitos opostos, apesar do que alguns personagens de produções atuais continuam a sugerir. Foi só após assistir a O Segredo de Brokeback Mountain que percebi que não precisava negar minha masculinidade para assumir minha homossexualidade.
Não fosse a indústria cultural norte-americana, eu talvez nunca teria me aceitado por completo. É possível que eu estivesse, nesse exato momento, num relacionamento heterossexual, enganando a mim mesmo e a todo mundo, e extremamente infeliz com minha própria vida. E olha que nem fui muito influenciado pelo discurso religioso em minha infância e fui criado numa família relativamente progressista. Assim como as meninas crescem num mundo que lhes ensina que não podem tomar as rédeas das situações, cresci pensando ser uma verdadeira aberração em meio a tanta heteronormatividade. É comum o discurso de que as subrepresentações e deturpações da realidade não são fatores a serem considerados enquanto se assiste a produções culturais, já que elas seriam meramente fontes de entretenimento que não influenciam a realidade ou, pior ainda, que apenas reproduzem-na (quando, na verdade, estão criando uma, muitas vezes desconexa do real). Para os autores desse discurso, geralmente homens heterossexuais e brancos, ou seja, os privilegiados donos dos meios de produção que massacram as minorias, não faz a menor diferença se mulheres, negros, indígenas e homossexuais são subrepresentados na mídia, pois eles mesmos são sempre muito bem representados. Citando Lola Aronovich, autora do blog citado no início desse post, "eles repetem, como se fosse um mantra, 'é só um filme', 'é só um comercial', 'é só uma palavra'. Pois é, é só a vida inteira". É só a minha vida inteira que está sendo subjugada. É só a vida de um LGBT por dia.
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