No último dia 11 de março, por ocasião da morte de Nancy Reagan, ex-primeira-dama dos Estados Unidos, a presidenciável democrata Hillary Clinton cometeu uma das maiores gafes com o público LGBT desde o início de sua campanha há quase um ano. Ela atribuiu ao presidente Ronald Reagan e à sua esposa Nancy o papel de trazer a epidemia da AIDS, iniciada durante o governo dele, para o centro das atenções nacionais. O fato histórico é que o então presidente simplesmente ignorou os avisos da área médica para financiar as pesquisas contra a AIDS e alertar o público sobre os riscos da doença. Durante todo o primeiro mandato de Reagan (1981–1985) não houve reação alguma do governo à epidemia. Justo pelo contrário: houve um boicote à pesquisa que pode ter evitado o salvamento de milhares de vidas tanto nos anos 1980 quanto na década seguinte.
Reagan permitiu a morte de 70.000 pessoas. Se o perpetrador dessas mortes tivesse sido a URSS e não o HIV, nosso mundo talvez não existira mais. |
Foi só quando a AIDS começou a atingir heterossexuais como o jovem hemofílico Ryan White, de 13 anos de idade e que adquiriu o HIV após uma transfusão sanguínea, que o governo começou a falar sobre a epidemia. Em 1985, Ryan foi expulso de sua escola por ser soropositivo. Graças ao apagão informativo que o governo promoveu sobre a doença, a maioria das pessoas comuns não sabia como o HIV era transmitido. Tinham medo de pegar o vírus no bebedouro do colégio. A família de Ryan entrou com um processo contra a escola e, após provar que ele não representava risco aos colegas, garantiu-lhe o direito de continuar estudando. Ele acabou se tornando uma espécie de porta-voz dos soropositivos, beijando a atriz Alyssa Milano no talk show de Phil Donahue para provar que o HIV não era transmissível desse jeito.
Numa conferência de imprensa em 1985, Reagan, já reeleito, reconhece a epidemia. Mesmo definindo a AIDS como uma doença sexualmente transmissível, expressou ceticismo em permitir que crianças como Ryan frequentassem escolas públicas. O governo já tinha sido instado a se posicionar sobre a epidemia várias vezes desde 1981. O radialista Lester Kinsolving, correspondente na Casa Branca, tentou, em vão, obter uma declaração do governo por três anos. Kinsolving primeiro indagou o secretário de imprensa do presidente sobre as mortes por AIDS em 1982; Reagan só reconheceu a epidemia na já mencionada conferência de imprensa por ocasião de casos judiciais como o de Ryan White. O primeiro discurso televisivo do presidente sobre a epidemia só ocorreu seis anos após sua posse. A essa altura, 20.849 pessoas já haviam morrido da doença.
Com o deslize, Hillary demonstrou não ser a melhor candidata para os gays, mas deve ganhar o apoio deles por falta de opção. |
Quanto a Hillary Clinton, ela pediu desculpas pelo comentário no mesmo dia, provavelmente alertada por alguém de sua campanha que conhece mais sobre a história da epidemia de AIDS do que ela. São deslizes assim que dão razão à campanha de seu opositor, o Senador Bernie Sanders, e evidenciam o porquê de Hillary não merecer o apoio da comunidade gay. O casal Reagan não foi um herói dos soropositivos (que eram, em sua maioria, gays) e, pela falta de conhecimento histórico, tampouco Hillary deveria ser. Entretanto, pela forma pouco democrática pela qual a política americana se desenrola, prevejo a maioria dos gays e soropositivos apoiando Hillary em novembro contra a ameaça maior que representa a eleição de um republicano anti-gay e anti-ciência. No meio disso tudo, no entanto, salta aos olhos o papel de Kinsolving. Às vezes heróis aparecem em quem menos esperamos.
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