Sim, o impeachment está previsto na Constituição Federal. No artigo 85, para ser mais preciso. Este trecho da Carta Magna trata dos crimes de responsabilidade do presidente da República, os únicos pelos quais o mandatário pode ser cassado pelo Congresso (crimes comuns devem ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal). Porém, os deputados constituintes determinaram que os crimes de responsabilidade que justificam a destituição do presidente deveriam ser definidos por uma lei especial, o que simplesmente não existe no nosso ordenamento jurídico. Nos últimos 28 anos, os membros do nosso eficientíssimo Congresso Nacional não criaram tal lei, sendo que o processo de impeachment atual contra a presidenta Dilma Rousseff deverá ser regido, em parte, pela lei federal N° 1.079 de 1950. "Como o impeachment não é cogitado com frequência, o Congresso Nacional não se preocupou em adaptar o procedimento previsto na Lei n. 1.079/50 aos novos ditames constitucionais", argumentou o PCdoB em pedido ao STF para anular a eleição secreta para a escolha dos membros da comissão do impeachment.
Uma oportunidade para regulamentar o processo de impeachment veio em 1992, após o processo que levou à renúncia de Fernando Collor, mas a Câmara dos Deputados se limitou a promover algumas alterações em seu regimento, esquecendo-se de sua obrigação constitucional de criar regras para o processo de impeachment. Apesar dos 38 anos que os separam, tanto a lei 1.079/50 quanto o artigo 85 da Constituição definem como crimes de responsabilidade os atos do presidente que atentem contra a Constituição e, em especial, a existência da União, o livre exercício dos demais poderes federais e estaduais, o exercício dos direitos individuais e político-sociais, a segurança interna do país, a probidade administrativa, a lei orçamentária e o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Nesse aspecto, a redação dos textos é praticamente idêntica. A única diferença é que a lei 1.079/50 também define como crime de responsabilidade o atentado à guarda e ao emprego do dinheiro público. Justamente o item que mais caberia na tese de que pedalada fiscal é crime não pôde ser utilizado porque não consta da Carta Magna.
Assim sendo, os formuladores do pedido de impeachment — dentre os quais estão um ex-petista ressentido com Lula pelo fato deste não ter-lhe convidado para ser Ministro da Justiça — argumentam que Dilma teria atentado contra a lei orçamentária. Citam os incisos 6, 7, 8 e 9 do artigo 10 da lei 1.079/50. Nestes incisos está escrito que o governo não pode realizar operação de crédito com outros órgãos da Administração Pública sem base na lei orçamentária. Os autores do pedido de impeachment parecem desconhecer a definição de operação de crédito, que é, segundo o site do Ministério da Fazenda, o "levantamento de empréstimo pelas entidades da administração pública, com o objetivo de financiar seus projetos e/ou atividades, podendo ser interna ou externa". O que ocorreu no caso das pedaladas fiscais não foi um empréstimo: o governo atrasou o repasse de verbas públicas aos bancos estatais. O governo não possuía dinheiro em caixa para transferir os recursos do Bolsa Família à Caixa, daí o banco pagou o benefício e recebeu o montante referente ao programa mais tarde. A grosso modo, foi isso que ocorreu.
Em momento algum o governo emprestou dinheiro à Caixa. Se o Tribunal de Contas da União — numa manobra suspeita, que parece tomada sob medida para os defensores do impeachment — mudou sua jurisprudência em 2015, depois de décadas aceitando a prática das pedaladas, então essa nova jurisprudência só vale a partir do ano fiscal de 2016. Uma vez que o impeachment provoca uma ruptura muito forte na instituição da presidência, os crimes de responsabilidades não podem ter interpretação ampla. Conforme escrevem Tavares e Prado, "os crimes de responsabilidade não são infrações administrativas abertas que possam ser preenchidas por obra da interpretação do agente sancionador". Por sua vez, Victor Cezar Rodrigues defende que "se a conduta imputada não corresponder a alguma das hipóteses previstas nesses artigos [da lei 1.079/50], seja em seus elementos objetivos ou subjetivos, não há que se falar em crime de responsabilidade". Só uma interpretação ampla igualaria dívida a empréstimo. Conforme escreve Ricardo Lodi, "um inadimplemento contratual não sofre as mesmas sanções" que uma operação de crédito, definida pelo artigo 3° da Resolução 43/01 do Senado Federal.
Dilma é uma mulher tão correta que, de todos os crimes de responsabilidade previstos na lei 1.079/59, só conseguiram pegá-la utilizando uma interpretação torta do artigo 10. Interessante contrastar o artigo 7° à fala do procurador da Lava Jato, segundo o qual a presidenta jamais interferiu nas investigações. Este sim é um crime de responsabilidade previsto pela lei, que governadores praticam a direito e a torto por todo o país. Interessante notar também que os próprios conspiradores poderiam ser cassados com base na lei que desejam usar contra Dilma. Gilmar Mendes, por exemplo, quando se reúne com políticos da oposição, fere o artigo 39, inciso 3, que determina que os ministros do Supremo Tribunal Federal cometem crime de responsabilidade quando exercem atividade político-partidária. Para tentar justificar a cassação de uma presidente sobre a qual não pesa nenhuma acusação, valem-se de um suposto atentado à lei orçamentária, mas fundamentam-se na lei de responsabilidade fiscal, a qual sequer é citada no artigo 85 da Constituição. Violar a lei de responsabilidade não é o mesmo que violar a lei orçamentária.
A lei de responsabilidade fiscal não é citada na lei 1.079/50 nem no artigo 85 da Constituição Federal. Se desejam incluí-la, os deputados oposicionistas deveriam fazê-lo pelo meio legal: aprovar uma nova lei do impeachment, já que a de 1950 não agrada-lhes. Ao usar a lei de responsabilidade fiscal para condenar um crime contra a lei orçamentária, os deputados correm o risco de desvirtuar todo o ordenamento jurídico do país. E vão fazê-lo pelo simples fato de que a popularidade da presidenta, para a qual muitos deles fizeram campanha no passado, está baixa. Como já afirmou várias vezes o presidenciável pedetista Ciro Gomes, partidos e políticos são rechaçados nas urnas. O impeachment não é — ou pelo menos não deveria ser — um instrumento político. Trata-se de um instrumento jurídico a ser utilizado apenas nos casos previstos pela lei. E, em momento algum o texto constitucional ou a lei 1.079/50 fala em pedalada fiscal. Quando Dilma e seu Ministro da Fazenda fizeram as pedaladas fiscais sequer havia jurisprudência contra elas. Por isso, o impeachment, embora previsto em lei, é, sim, um golpe. Este impeachment contra esta presidenta é um golpe.
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