Ontem eu estava com uma insônia do cão causada por uma crise de ansiedade, então fui ler sobre A Bela e a Fera (2017), filme que eu havia assistido no cinema algumas horas antes. Num dos artigos que li descobri que as canções do filme original, a animação lançada em novembro de 1991, representavam uma metáfora para a epidemia da AIDS, que até 1991 havia matado cerca de 60 mil pessoas apenas nos EUA desde a descoberta do vírus causador da doença dez anos antes. As canções foram escritas por Howard Ashman, que morreu pouco antes da estreia do filme devido a complicações de saúde causadas pelo HIV, vírus até então indetectável por qualquer tipo de exame laboratorial.
Gastão. |
A imagem que se tinha dos portadores do HIV na mídia era aquela de pessoas definhando na cama, emagrecendo até a morte. Como estratégia de sobrevivência num meio que já lhes era hostil antes mesmo do aparecimento da doença — inicialmente chamada pela comunidade médica de Deficiência Imunológica Relacionada aos Gays (GRID, na sigla em inglês) —, os homossexuais, mesmo aqueles que já haviam sido infectados, começaram a encher as academias para provar que eram sadios e que a doença atingia apenas uma pequena parte de sua comunidade. Essa é uma das teorias que explicam a ditadura do corpo musculoso ainda hoje vigente na comunidade gay.
É possível que Ashman exaltasse os músculos de Gastão porque era isso que ele desejava para si: um corpo que negasse a doença que lhe estigmatizava perante os olhos da sociedade. Creio, no entanto, que a canção, dado o contexto maior do filme, seja uma denúncia aos gays do tipo Gastão. Ela apresenta as características de um vilão, o que num desenho infantil sempre significa um modelo de vida a não ser seguido. Ao mesmo tempo em que exalta o corpo musculoso de Gastão, o letrista de A Bela e a Fera queria que ele não fosse seguido como exemplo pelas crianças que assistiriam ao desenho. Não é isso que deveria fazer alguém tornar-se aceito pela sociedade.
No contexto maior do filme, Gastão seria o gay saudável aos olhos da sociedade, que ataca o homossexual "amaldiçoado" para satisfazer uma multidão que canta "não gostamos do que não entendemos". O esforço de Gastão para matar a Fera e ser bem visto pelos habitantes de seu vilarejo equivale aos esforços dos gays musculosos em invisibilizar os gays magros — vistos como portadores de HIV — e conquistarem o respeito da sociedade ao se afastarem do estigma da "doença dos gays". Esta minha leitura é reforçada pela versão de 2017, pois há uma cena em que LeFou abandona o parceiro ao reconhecer que ele é o verdadeiro monstro e não a Fera.
Ainda hoje a comunidade gay reproduz a ditadura do corpo musculoso, o que não faz o menor sentido, visto que há toda uma geração de homossexuais cuja vida sexual iniciou-se quando a epidemia da AIDS já estava sob controle. Embora ainda exista a associação entre magreza e HIV tanto dentro da comunidade LGBT quanto na sociedade em geral, agora os corpos musculosos simbolizam, para os homens gays, a reconquista da virilidade que eles sentem que perdem quando saem do armário. É como se seus músculos servissem para provar para a sociedade não só que eles não têm AIDS como também que ainda são homens.
Estar satisfeito com seu próprio corpo é algo maravilhoso e se as pessoas sentem que atingem isso através da musculação, fico feliz por elas. O problema é que ainda persiste a estigmatização dos gays magros, mesmo com os estudiosos afirmando que nossa comunidade vive na era pós-AIDS. Isso ocorre porque nossa sociedade é heteronormativa e os gays dão mais valor ao que os héteros pensam deles e, assim, buscam parceiros que aparentar ter a virilidade dos homens heterossexuais. Mesmo que nós, magros, sejamos tão sadios quanto os musculosos, parte da nossa comunidade ainda está sob efeito do complexo de Gastão e continua a nos tratar como inferiores. Espero que isso não se torne um "conto tão antigo como o tempo".
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