A peça Homens e Caranguejos, apresentada no dia 23 pelo Coletivo Cênico Joanas Incendeiam de São Paulo, é um espetáculo incrível. Sua concepção visual, com um cenário de carrinhos de reciclagem que se transformam em palafitas, é fascinante. Mas o texto, baseado na obra homônima de Josué de Castro, consegue ser muito mais. Ele mexe com todos os nossos sentidos. É possível sentir a dor do pai que acabou de perder o filho engolido pela correnteza do Rio Capibaribe. Em outro momento, é possível sentir a alegria do menino que brinca tão feliz no mangue do Recife sem saber que existe um mundo de luxo a poucos quilômetros de distância dali.
Inspirada no movimento realista do século passado, a peça tem um forte caráter de denúncia social. Também pudera. O médico nutrólogo Josué de Castro foi presidente do conselho executivo da FAO, órgão das Nações Unidas para a alimentação, e um dos grandes ativistas no combate à fome na região do semiárido brasileiro. Devido à sua militância política e social, teve seus direitos políticos cassados após o golpe civil-militar de 1964. Logo em seguida, em 1967, escreveu Homens e Caranguejos, seu único romance, como uma denúncia ao problema que não merecia a devida atenção dos ditadores militares e da sociedade civil que mantinha-os no poder.
Narrando, em tempo psicológico, a história de uma família de retirantes que sobrevive à fome no interior do Nordeste para tentar a vida no Recife, a peça utiliza a figura mitológica do rei grego Agamenon como alegoria para os mandatários que, além de não fazerem nada para aliviar o sofrimento do povo pobre, ainda querem expulsá-los de suas casas para dar espaço ao “progresso”; progresso este que, embora esteja cravado na bandeira, ainda é um direito acessível a poucos brasileiros. Agamenon matou dezenas de troianos para recuperar Helena de Troia e sacrificou sua própria filha durante a guerra. O que torna sua escolha ainda mais significativa se considerarmos o caráter feminista do Coletivo Cênico Joanas Incendeiam, formado apenas por mulheres.
Em Homens e Caranguejos, a tragédia, gênero teatral desenvolvido pelos gregos, se mistura com a tragédia da realidade de miséria que castiga a vida de muitos brasileiros. Nesta tragédia do século XX (ou XXI), pai e filho ganham a vida catando caranguejos no mangue. Para o desespero do pai, a criança não está tão interessada em seguir carreira como catador de caranguejo. O menino brinca na lama suja do mangue e sonha em depor o déspota Agamenon com a ajuda de um vizinho idoso, já debilitado. Esse movimento pela mudança social tem seu auge com a chegada do boi-calemba – ou boi-bumbá, festa originária da lenda do boi voador do Recife – no mangue, quando ficção e realidade se misturam com um grito de “viva Marielle Franco” pelo menino.
Isso fez com que a pergunta que já estava em minha cabeça, ficasse ainda mais forte: quem seria Agamenon? Seria Geraldo Alckmin, da terra das atrizes? Seria Paulo Câmara, governador do Pernambuco que, como o rei da peça não hesita em desocupar os pobres de áreas públicas para trazer o “progresso” para o Recife? Seria o general Castello Branco, ditador da época em que o texto de Josué de Castro foi originalmente escrito? Para uns será até mesmo Lula ou Dilma, que apesar de suas boas intenções sucumbiram a um sistema político fisiológico e corrupto. Mas não consigo deixar de pensar que Agamenon seja Michel Temer, o responsável por colocar o Brasil de volta no mapa da fome compilado pela mesma FAO de Josué de Castro.
Enquanto “Agamenon” se reúne com empresários e parlamentares para decidir como o povo pode pagar ainda mais pela crise dos ricos, pobres são desocupados de suas casas pelas forças de repressão estatal para darem espaço a condomínios de luxo, crianças brincam em manguezais sujos, adultos não veem alternativa senão colocarem seus filhos para trabalhar mesmo correndo o risco de serem penalizados por esse mesmo Estado que vira-lhes a cara enquanto eles passam fome. E também meninos morrem afogados em enchentes. Pensando bem, talvez “Agamenon” não seja só Temer, talvez sejamos todos nós que, por ação ou por omissão, permitimos que ele continue no poder e que cenas como essas, retratadas num texto de meio século atrás, continuem sendo comuns na realidade do Brasil.
O texto, infelizmente, é atemporal. Após uma aliviada durante os anos Lula e Dilma, a fome agora volta a assolar os rincões do país. Enquanto isso, nos grandes centros urbanos como o Recife, a miséria se torna cada vez mais evidente conforme vendedores e pedintes se multiplicam e disputam espaço nos sinaleiros. É interessante que, num cenário de golpes à democracia, aos direitos civis e humanos e às próprias iniciativas de combate à fome (com o anúncio de cortes ao Bolsa Família no orçamento do ano que vem), o Coletivo Cênico Joanas Incendeiam tenha decidido resgatar justamente esse texto. Num cenário de sacrifício do direito de muitos em prol do benefício de poucos, a alegoria do autoritário e insensível rei Agamenon se apresenta mais viva do que nunca. Em cada um de nós.
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