A autora da frase que serve de título para esse texto é a cantora e compositora estadunidense Nina Simone. Está em cartaz no Netflix um documentário sobre sua brilhante e turbulenta vida, What Happened, Miss Simone? Como toda boa obra audiovisual, deixou minha mente a mil quando terminei de assistir. Vou explicar porque, mas primeiro, caso você não queira spoilers aconselho que pare de ler o texto aqui. Eunice Waymon (nome verdadeiro da cantora) começou a tocar piano ainda na infância, nos cultos pentecostais que sua família frequentava. Ao ser vista por uma senhora branca, professora de piano, essa resolveu ensinar-lhe os clássicos da música. Ela queria que Eunice se tornasse a primeira pianista clássica "de cor" dos Estados Unidos. No entanto, seu sonho foi destruído pela segregação racial. E isso, aliado à repressão religiosa, transformou Eunice em Nina Simone.
Inicialmente, Nina Simone (o nome artístico veio do espanhol niña e da atriz francesa Simone Signoret) cantava baladas românticas, influenciada pelo marido, um ex-chefe de polícia controlador. Todos os aspectos da vida da cantora eram controlados pelo marido, que a mantinha subjugada através de surras e até mesmo agressão sexual caso ela não o obedecesse. No início dos anos 1960, no entanto, simultaneamente à ascensão de Nina ao estrelato, os Estados Unidos vivia o início do Movimento pelos Direitos Civis. Nina, que negou suas raízes desde o início, sentiu-se acolhida por pessoas como Malcolm X (de quem era vizinha), Dr. Martin Luther King e tantos outros ativistas e artistas que refletiam o zeitgeist daquele momento. Presa a um casamento miserável, ela enfim achou uma maneira de ser feliz. Escreveu "Mississippi Goddam" e se tornou cada vez mais uma cantora de protesto.
Só que isso lhe custou o sucesso comercial. Ao expressar seu verdadeiro espírito - livre - foi acusada de ser radical demais. Logo ela, que foi oprimida a vida toda: pela religião, por ser negra no Sul racista, por não poder se expressar abertamente sobre o que pensava sobre ser negra nos Estados Unidos e, principalmente, por ser oprimida e abusada pelo marido. É como aquele aforismo atribuído ao escritor alemão Bertolt Brecht: "Falam que o rio que tudo arrasta é violento, mas nada dizem das margens que o oprimem". A impressão que tive de Nina é que ela nasceu no tempo errado, no lugar errado e com a cor de pele errada. Tivesse nascido sob outras circunstâncias, teria conseguido a felicidade que apenas a liberdade poderia propiciar a um espírito livre como ela.
O estopim, para a cantora, foi quando assassinaram o Dr. Martin Luther King. Nina deixou a aliança na mesa de centro e partiu para a Libéria, país fundado no século XIX como colônia para escravos libertos do sul dos Estados Unidos. Lá, finalmente pôde experimentar a felicidade que um espírito livre só consegue ao ser desamarrar das correntes que a sociedade nos impõe. Entendo perfeitamente isso. Assim como Nina, sinto que não nasci no lugar ou no tempo certo. A explicação que os meus amigos espíritas me dão é que eu sou um espírito evoluído demais. Voltando ao documentário, Nina precisava de dinheiro para sobreviver, como qualquer um que vive nesse sistema nefasto chamado capitalismo.
Foi em Paris que ela tentou retomar a carreira. Sem controle emocional e sem empresário, ela se vê no fundo do poço, fazendo apresentações em verdadeiras espeluncas. Com a ajuda de amigos que moravam na cidade, ela consegue se reerguer. Muda-se para a Holanda e, ao ser visitada por um médico, é diagnosticada com transtorno bipolar. Começa a tocar piano novamente e, impulsionada por uma propaganda da Chanel que usou uma de suas composições, volta a fazer shows para grandes públicos. Mudou-se para o Sul da França no final da vida e, dois dias antes de morrer, aos 70 anos de idade - ironias da vida - recebeu um diploma honorário da instituição que lhe recusou o sonho de ser a primeira pianista clássica "de cor" dos Estados Unidos.
Isso aqui é apenas um pequeno resumo da experiência magnífica que tive ao assistir o filme. Recomendo que assistam e tentem absorver o máximo dele. Vale muito a pena!
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