Não existe, em nenhuma nação democrática do mundo, uma emissora comercial de televisão tão poderosa quanto a Rede Globo. Até mesmo emissoras estatais como a britânica BBC, cujo monopólio foi quebrado em 1955, enfrentam alguma competição em seus mercados. Na meca do capitalismo e da produção audiovisual, os Estados Unidos, quatro emissoras disputam igualmente a liderança da audiência, sendo comum empates e mudanças súbitas na medição. Para se ter uma ideia da dominância da Globo no mercado de televisão do Brasil, o maior share da história da emissora – e do país – foi conquistado em 22 de fevereiro de 1986, quando o capítulo final da telenovela Roque Santeiro atingiu 100%, o que significa dizer que todos os televisores ligados do Brasil naquele momento estavam sintonizados na Globo. Em comparação, o maior share conquistado pela teledramaturgia norte-americana ocorreu em 28 de fevereiro de 1983, quando “Goodbye, Farewell and Amen”, episódio final do seriado de comédia M*A*S*H, deu à CBS um share de 77%. Isso antes do advento da FOX como quarta emissora comercial dos EUA e da popularização dos serviços de televisão por assinatura.
Ainda hoje, mesmo em queda, a Rede Globo ainda consegue obter proporcionalmente mais audiência do que a CBS. O seriado NCIS, programa de ficção mais assistido da emissora e dos EUA durante a temporada 2014-15, foi visto semanalmente em uma média de 14,56 milhões de lares. A telenovela Império, programa mais assistido da temporada 2014-15 no Brasil, foi assistido em uma média de 7,2 milhões de domicílios no Brasil. À primeira vista parece que a audiência de NCIS é o dobro da de Império. Sim, é verdade, mas o impacto da telenovela sobre o público brasileiro é quase três vezes maior do que o impacto do seriado de investigação criminal sobre o público norte-americano. A população dos EUA é quase duas vezes maior do que a do Brasil. Segundo o Instituto Nielsen, que mede a audiência naquele país, há 115,6 milhões de domicílios com televisor nos EUA. Segundo o IBOPE, há 21,7 milhões de lares com televisor no Brasil. Isso significa que o share de NCIS é de 12,6% e que o share de Império foi de 33%. O programa de maior audiência da temporada 2014-15 nos EUA foi assistido em menos de 13% dos lares americanos, enquanto que o programa de maior audiência da mesma temporada no Brasil foi visto em 1/3 dos lares brasileiros.
A prevalência da Rede Globo sobre as demais emissoras de televisão do Brasil não deve ser encarado como um case de sucesso empresarial. Trata-se de uma história de benesses recebidas do Estado e de esforços para minar a liberdade econômica que a emissora tanto defende nas vozes de comentaristas como Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardemberg. Nos anos 1970, a ditadura militar implementou uma política de modernização das telecomunicações que muito favoreceu a emissora. Em 1965 criou a Embratel e fez com que o país se juntasse à rede mundial de satélites quatro anos mais tarde. A intenção do regime era se opor à hegemonia cultural libertária da época, predominante nas rádios e nos teatros locais, usando para isso a televisão. Através da construção de uma fonte de entretenimento nacional, o governo poderia minar as vozes regionais. Assim sendo, as emissoras se transformaram em redes e só continuaria recebendo verba publicitária do governo aquelas que endossassem a política de hegemonia cultural do regime. Assim sendo, a Rede Excelsior, líder de audiência em São Paulo, que mantinha uma linha crítica ao regime, fechou as portas em 30 de setembro de 1970. Ao mesmo tempo, o regime militar fazia vistas grossas à parceria ilegal entre Roberto Marinho e o grupo multinacional Time–Life que deu origem à Rede Globo.
Enquanto as demais emissoras nacionais – Tupi e Excelsior – começaram com poucos recursos e muita dificuldade tecnológica, a Globo iniciou suas operações com equipamentos de ponta. Isso só foi possível devido ao acordo firmado entre Marinho e a Time–Life. Mesmo com a legislação brasileira proibindo que empresas de telecomunicações tivessem participação de capital estrangeiro em sua formação, o acordo seguiu inconteste pelas autoridades por um determinado período de tempo até que Roberto Marinho comprasse as ações da Globo pertencentes ao grupo norte-americano. Aos amigos do regime, tudo. Aos inimigos, a falência. As ligações da Globo com o poder militar eram tão estreitas que Walter Clark, diretor-geral da emissora, confessou em sua autobiografia que recebia o ditador Médici em seu gabinete na Globo para, juntos, assistirem aos jogos de futebol transmitidos pela emissora. Nas palavras de Clark o “padrão Globo de qualidade” era uma “vitrine de um regime com o qual os profissionais da TV Globo jamais concordaram”. Mas Roberto Marinho concordava – e muito. Médici elogiava a cobertura que o Jornal Nacional fazia da política nacional, o ministro-censor Armando Falcão lembra com carinho de sua relação com Marinho em documentário e o próprio dono da emissora confessou seu apoio ao regime em editorial escrito por ele e publicado no jornal O Globo em 7 de outubro de 1984.
Corrupção
ACM e Roberto Marinho de braços dados. |
Interessante notar que, assim como os golpistas de hoje, Marinho afirma ter apoiado o Golpe de Estado de 1964 para conter a “corrupção generalizada” que se alastrava pelo país. Mais de uma vez, no entanto, a Globo viu-se envolvida em casos de corrupção. Em 1986, por exemplo, o então ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães atuou à margem da lei para favorecer a emissora. Ele suspendeu os contratos do governo com a empresa NEC do Brasil. Com o grupo em crise, ele foi comprado pela NEC do Japão, que o revendeu para as Organizações Globo por um milhão de dólares. Em seguida, ACM restabeleceu os contratos do Ministério com a NEC do Brasil e a empresa passou a valer 350 milhões de dólares. Como recompensa pela atitude criminosa, ACM recebeu da Globo o direito de retransmitir o sinal da emissora no estado da Bahia. Em janeiro de 1987, a TV Bahia subitamente substituiu o sinal da Rede Manchete pelo da Rede Globo. A TV Aratu, então retransmissora da Globo na Bahia, ficou sem sinal e decidiu processar a rival. A contenda terminou três dias depois com a TV Aratu aceitando retransmitir o sinal da Manchete. A quebra de contrato de maneira unilateral por parte de Roberto Marinho gerou uma queda de 80% no lucro da TV Aratu.
Além disso, a Rede Globo é uma das maiores devedoras de impostos ao Estado brasileiro. Entre 2010 e 2012, a emissora foi notificada 776 vezes por sonegação fiscal. A maior parte das notificações envolve a importação de equipamentos sem o recolhimento dos devidos impostos. Segundo a Receita Federal, a empresa praticou fraude contábil ao negociar uma perdão de 158 milhões de reais em dívidas com o banco JP Morgan em 2005. Multada em 730 milhões de reais, a emissora contesta a cobrança, mas foi derrotada no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Além disso, a Globo é acusada de sonegar o Imposto de Renda referente à compra dos direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002. A empresa teria usado um paraíso fiscal para realizar a transação com o intuito de evitar o pagamento do IR à Receita Federal. Em outubro de 2006, a Receita tentou cobrar multa de 615 milhões de reais da emissora pelo episódio, mas o processo desapareceu do prédio da Receita no Rio. Uma funcionária da Receita, Cristina Maris Meinick Ribeiro, sumiu com o processo. Ela foi condenada a quatro anos de prisão, mas afirmou ter agido sozinha no caso. A Globo também já foi acusada de desviar os recursos arrecadados pela campanha filantrópica Criança Esperança.
Interferência na política
Debate presidencial de 1989. |
Talvez uma herança do período em que era porta-voz da ditadura, a família Marinho desconfia da capacidade do povo brasileiro de escolher seus próprios líderes. Em 25 de janeiro de 1984, no ocaso do regime militar, a emissora ignorou solenemente o movimento suprapartidário que pedia o fim do regime e a realização de eleições diretas para presidente da República. Naquela ocasião, 300.000 pessoas protestavam na Praça da Sé. No Jornal Nacional daquela noite, o evento virou um ato em comemoração aos 430 anos da cidade de São Paulo. Segundo Boni, ex-vice-presidente da Globo, partiu de Roberto Marinho a decisão de censurar as Diretas Já. Segundo ele, a censura no caso foi dupla: da emissora e do regime. Dois anos antes, o Brasil vivia suas primeiras eleições estaduais pluripartidárias desde o início dos anos 1960. Leonel Brizola, recém-chegado do exílio com a promulgação da Lei de Anistia, liderava as pesquisas de intenção de voto para governador do Rio de Janeiro. A Globo se ateve à apuração oficial, realizada pela empresa Proconsult, e se negou a dar voz às denúncias de fraude feitas por policiais civis. Brizola denunciou a farsa a correspondentes estrangeiros e o regime militar, já extremamente fragilizado em seu apoio lá fora, viu-se obrigado a divulgar os números verdadeiros e conceder a vitória ao político oposicionista.
Em 1989, após cinco anos de um governo civil não-eleito, o povo brasileiro finalmente iria às urnas escolher seu presidente. Os favoritos eram Brizola e o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva. Após uma disputa acirrada com Brizola para ver quem iria para o segundo turno, Lula acabou ascendendo ao segundo lugar da disputa. Seu rival seria Fernando Collor, dono de uma afiliada da Globo em Alagoas e ligado ao coronelismo local. Ambos os candidatos apareciam com o mesmo percentual de intenção de votos. Assim sendo, os debates na televisão seriam decisivos para definir a disputa. Lula se saiu mal no debate e a Globo selecionou suas piores falas para serem exibidas na reportagem do Jornal Nacional sobre o evento. Até então, a emissora tinha buscado manter-se isenta na cobertura do processo eleitoral. Inclusive a reportagem exibida pelo Jornal Hoje no mesmo dia era muito mais equilibrada do que aquela exibida pelo Jornal Nacional. A campanha de Lula moveu uma ação no STF contra a Globo, exigindo que a emissora exibisse uma nova reportagem, mais isenta, mas o pedido foi negado. A emissora sempre negou ter agido de má-fé no episódio, mas admite que a reportagem não foi isenta. Em 2009, o próprio Collor admitiu ter sido favorecido pela Globo. Coberturas eleitorais tendenciosas seguiram-se nas disputas de 2006, 2010 e 2014. Em 2006, o Jornal Nacional deixou de noticiar a tragédia do voo 1907, destaque em todos os telejornais, para exibir uma denúncia contra o partido de Lula. Em 2010, o telejornal corroborou uma afirmação de José Serra de que foi agredido por petistas, versão desmentida pelo Jornal do SBT.
Novos adversários, mesmos métodos. |
Temida pelos governos, a Globo chantageia os Poderes do Estado e geralmente consegue sair impune das situações ilegais e antiéticas em que se encontra. Há quem acredite que o processo de 615 milhões contra a emissora na Receita Federal tenha “desaparecido” em troca de uma cobertura mais amigável a Lula no segundo turno das eleições de 2006. Quatro anos antes, no crepúsculo do Governo FHC, a Rede Globo recebeu um empréstimo de 280 milhões de reais do BNDES para sanar suas dívidas. É notável a atuação da Bancada da Globo no Congresso Federal. Nos anos 1990, a emissora valeu-se de sua influência entre senadores e deputados para conseguir alterar um artigo da Constituição Federal que proibia a entrada de capital estrangeiro nas empresas de mídia, legalizando a forma como a emissora havia surgido em 1965. Agora a emissora mobilizou seu lobby contra o Netflix, acusando a empresa de não pagar os impostos devidos ao Estado brasileiro. Que ironia! Uma empresa que sonegou o Imposto de Renda referente à compra dos direitos de transmissão da Copa de 2002 acusando outra empresa de não pagar impostos. Em seguida, deve propor pesados impostos sobre o serviço de streaming, que já é maior do que a Band e a RedeTV. Trata-se de mais uma tentativa da Globo de manter sua dominação sobre o mercado de televisão e, consequentemente, sobre corações e mentes dos brasileiros. A Globo quer continuar construindo o discurso cultural hegemônico a ser reproduzido pela sociedade. Que ela tenha esse poder numa democracia é assustador!
Nenhum comentário:
Postar um comentário