sábado, 22 de agosto de 2015

Globo: Uma TV da ditadura em plena democracia

Não existe, em nenhuma nação democrática do mundo, uma emissora comercial de televisão tão poderosa quanto a Rede Globo. Até mesmo emissoras estatais como a britânica BBC, cujo monopólio foi quebrado em 1955, enfrentam alguma competição em seus mercados. Na meca do capitalismo e da produção audiovisual, os Estados Unidos, quatro emissoras disputam igualmente a liderança da audiência, sendo comum empates e mudanças súbitas na medição. Para se ter uma ideia da dominância da Globo no mercado de televisão do Brasil, o maior share da história da emissora – e do país – foi conquistado em 22 de fevereiro de 1986, quando o capítulo final da telenovela Roque Santeiro atingiu 100%, o que significa dizer que todos os televisores ligados do Brasil naquele momento estavam sintonizados na Globo. Em comparação, o maior share conquistado pela teledramaturgia norte-americana ocorreu em 28 de fevereiro de 1983, quando “Goodbye, Farewell and Amen”, episódio final do seriado de comédia M*A*S*H, deu à CBS um share de 77%. Isso antes do advento da FOX como quarta emissora comercial dos EUA e da popularização dos serviços de televisão por assinatura.

Ainda hoje, mesmo em queda, a Rede Globo ainda consegue obter proporcionalmente mais audiência do que a CBS. O seriado NCIS, programa de ficção mais assistido da emissora e dos EUA durante a temporada 2014-15, foi visto semanalmente em uma média de 14,56 milhões de lares. A telenovela Império, programa mais assistido da temporada 2014-15 no Brasil, foi assistido em uma média de 7,2 milhões de domicílios no Brasil. À primeira vista parece que a audiência de NCIS é o dobro da de Império. Sim, é verdade, mas o impacto da telenovela sobre o público brasileiro é quase três vezes maior do que o impacto do seriado de investigação criminal sobre o público norte-americano. A população dos EUA é quase duas vezes maior do que a do Brasil. Segundo o Instituto Nielsen, que mede a audiência naquele país, há 115,6 milhões de domicílios com televisor nos EUA. Segundo o IBOPE, há 21,7 milhões de lares com televisor no Brasil. Isso significa que o share de NCIS é de 12,6% e que o share de Império foi de 33%. O programa de maior audiência da temporada 2014-15 nos EUA foi assistido em menos de 13% dos lares americanos, enquanto que o programa de maior audiência da mesma temporada no Brasil foi visto em 1/3 dos lares brasileiros. 

A prevalência da Rede Globo sobre as demais emissoras de televisão do Brasil não deve ser encarado como um case de sucesso empresarial. Trata-se de uma história de benesses recebidas do Estado e de esforços para minar a liberdade econômica que a emissora tanto defende nas vozes de comentaristas como Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardemberg. Nos anos 1970, a ditadura militar implementou uma política de modernização das telecomunicações que muito favoreceu a emissora. Em 1965 criou a Embratel e fez com que o país se juntasse à rede mundial de satélites quatro anos mais tarde. A intenção do regime era se opor à hegemonia cultural libertária da época, predominante nas rádios e nos teatros locais, usando para isso a televisão. Através da construção de uma fonte de entretenimento nacional, o governo poderia minar as vozes regionais. Assim sendo, as emissoras se transformaram em redes e só continuaria recebendo verba publicitária do governo aquelas que endossassem a política de hegemonia cultural do regime. Assim sendo, a Rede Excelsior, líder de audiência em São Paulo, que mantinha uma linha crítica ao regime, fechou as portas em 30 de setembro de 1970. Ao mesmo tempo, o regime militar fazia vistas grossas à parceria ilegal entre Roberto Marinho e o grupo multinacional Time–Life que deu origem à Rede Globo.

Enquanto as demais emissoras nacionais – Tupi e Excelsior – começaram com poucos recursos e muita dificuldade tecnológica, a Globo iniciou suas operações com equipamentos de ponta. Isso só foi possível devido ao acordo firmado entre Marinho e a Time–Life. Mesmo com a legislação brasileira proibindo que empresas de telecomunicações tivessem participação de capital estrangeiro em sua formação, o acordo seguiu inconteste pelas autoridades por um determinado período de tempo até que Roberto Marinho comprasse as ações da Globo pertencentes ao grupo norte-americano. Aos amigos do regime, tudo. Aos inimigos, a falência. As ligações da Globo com o poder militar eram tão estreitas que Walter Clark, diretor-geral da emissora, confessou em sua autobiografia que recebia o ditador Médici em seu gabinete na Globo para, juntos, assistirem aos jogos de futebol transmitidos pela emissora. Nas palavras de Clark o “padrão Globo de qualidade” era uma “vitrine de um regime com o qual os profissionais da TV Globo jamais concordaram”. Mas Roberto Marinho concordava – e muito. Médici elogiava a cobertura que o Jornal Nacional fazia da política nacional, o ministro-censor Armando Falcão lembra com carinho de sua relação com Marinho em documentário e o próprio dono da emissora confessou seu apoio ao regime em editorial escrito por ele e publicado no jornal O Globo em 7 de outubro de 1984.


Corrupção

ACM e Roberto Marinho de braços dados.
Interessante notar que, assim como os golpistas de hoje, Marinho afirma ter apoiado o Golpe de Estado de 1964 para conter a “corrupção generalizada” que se alastrava pelo país. Mais de uma vez, no entanto, a Globo viu-se envolvida em casos de corrupção. Em 1986, por exemplo, o então ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães atuou à margem da lei para favorecer a emissora. Ele suspendeu os contratos do governo com a empresa NEC do Brasil. Com o grupo em crise, ele foi comprado pela NEC do Japão, que o revendeu para as Organizações Globo por um milhão de dólares. Em seguida, ACM restabeleceu os contratos do Ministério com a NEC do Brasil e a empresa passou a valer 350 milhões de dólares. Como recompensa pela atitude criminosa, ACM recebeu da Globo o direito de retransmitir o sinal da emissora no estado da Bahia. Em janeiro de 1987, a TV Bahia subitamente substituiu o sinal da Rede Manchete pelo da Rede Globo. A TV Aratu, então retransmissora da Globo na Bahia, ficou sem sinal e decidiu processar a rival. A contenda terminou três dias depois com a TV Aratu aceitando retransmitir o sinal da Manchete. A quebra de contrato de maneira unilateral por parte de Roberto Marinho gerou uma queda de 80% no lucro da TV Aratu.

Além disso, a Rede Globo é uma das maiores devedoras de impostos ao Estado brasileiro. Entre 2010 e 2012, a emissora foi notificada 776 vezes por sonegação fiscal. A maior parte das notificações envolve a importação de equipamentos sem o recolhimento dos devidos impostos. Segundo a Receita Federal, a empresa praticou fraude contábil ao negociar uma perdão de 158 milhões de reais em dívidas com o banco JP Morgan em 2005. Multada em 730 milhões de reais, a emissora contesta a cobrança, mas foi derrotada no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Além disso, a Globo é acusada de sonegar o Imposto de Renda referente à compra dos direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002. A empresa teria usado um paraíso fiscal para realizar a transação com o intuito de evitar o pagamento do IR à Receita Federal. Em outubro de 2006, a Receita tentou cobrar multa de 615 milhões de reais da emissora pelo episódio, mas o processo desapareceu do prédio da Receita no Rio. Uma funcionária da Receita, Cristina Maris Meinick Ribeiro, sumiu com o processo. Ela foi condenada a quatro anos de prisão, mas afirmou ter agido sozinha no caso. A Globo também já foi acusada de desviar os recursos arrecadados pela campanha filantrópica Criança Esperança.


Interferência na política

Debate presidencial de 1989.
Talvez uma herança do período em que era porta-voz da ditadura, a família Marinho desconfia da capacidade do povo brasileiro de escolher seus próprios líderes. Em 25 de janeiro de 1984, no ocaso do regime militar, a emissora ignorou solenemente o movimento suprapartidário que pedia o fim do regime e a realização de eleições diretas para presidente da República. Naquela ocasião, 300.000 pessoas protestavam na Praça da Sé. No Jornal Nacional daquela noite, o evento virou um ato em comemoração aos 430 anos da cidade de São Paulo. Segundo Boni, ex-vice-presidente da Globo, partiu de Roberto Marinho a decisão de censurar as Diretas Já. Segundo ele, a censura no caso foi dupla: da emissora e do regime. Dois anos antes, o Brasil vivia suas primeiras eleições estaduais pluripartidárias desde o início dos anos 1960. Leonel Brizola, recém-chegado do exílio com a promulgação da Lei de Anistia, liderava as pesquisas de intenção de voto para governador do Rio de Janeiro. A Globo se ateve à apuração oficial, realizada pela empresa Proconsult, e se negou a dar voz às denúncias de fraude feitas por policiais civis. Brizola denunciou a farsa a correspondentes estrangeiros e o regime militar, já extremamente fragilizado em seu apoio lá fora, viu-se obrigado a divulgar os números verdadeiros e conceder a vitória ao político oposicionista.

Em 1989, após cinco anos de um governo civil não-eleito, o povo brasileiro finalmente iria às urnas escolher seu presidente. Os favoritos eram Brizola e o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva. Após uma disputa acirrada com Brizola para ver quem iria para o segundo turno, Lula acabou ascendendo ao segundo lugar da disputa. Seu rival seria Fernando Collor, dono de uma afiliada da Globo em Alagoas e ligado ao coronelismo local. Ambos os candidatos apareciam com o mesmo percentual de intenção de votos. Assim sendo, os debates na televisão seriam decisivos para definir a disputa. Lula se saiu mal no debate e a Globo selecionou suas piores falas para serem exibidas na reportagem do Jornal Nacional sobre o evento. Até então, a emissora tinha buscado manter-se isenta na cobertura do processo eleitoral. Inclusive a reportagem exibida pelo Jornal Hoje no mesmo dia era muito mais equilibrada do que aquela exibida pelo Jornal Nacional. A campanha de Lula moveu uma ação no STF contra a Globo, exigindo que a emissora exibisse uma nova reportagem, mais isenta, mas o pedido foi negado. A emissora sempre negou ter agido de má-fé no episódio, mas admite que a reportagem não foi isenta. Em 2009, o próprio Collor admitiu ter sido favorecido pela Globo. Coberturas eleitorais tendenciosas seguiram-se nas disputas de 2006, 2010 e 2014. Em 2006, o Jornal Nacional deixou de noticiar a tragédia do voo 1907, destaque em todos os telejornais, para exibir uma denúncia contra o partido de Lula. Em 2010, o telejornal corroborou uma afirmação de José Serra de que foi agredido por petistas, versão desmentida pelo Jornal do SBT.

Novos adversários, mesmos métodos.
Temida pelos governos, a Globo chantageia os Poderes do Estado e geralmente consegue sair impune das situações ilegais e antiéticas em que se encontra. Há quem acredite que o processo de 615 milhões contra a emissora na Receita Federal tenha “desaparecido” em troca de uma cobertura mais amigável a Lula no segundo turno das eleições de 2006. Quatro anos antes, no crepúsculo do Governo FHC, a Rede Globo recebeu um empréstimo de 280 milhões de reais do BNDES para sanar suas dívidas. É notável a atuação da Bancada da Globo no Congresso Federal. Nos anos 1990, a emissora valeu-se de sua influência entre senadores e deputados para conseguir alterar um artigo da Constituição Federal que proibia a entrada de capital estrangeiro nas empresas de mídia, legalizando a forma como a emissora havia surgido em 1965. Agora a emissora mobilizou seu lobby contra o Netflix, acusando a empresa de não pagar os impostos devidos ao Estado brasileiro. Que ironia! Uma empresa que sonegou o Imposto de Renda referente à compra dos direitos de transmissão da Copa de 2002 acusando outra empresa de não pagar impostos. Em seguida, deve propor pesados impostos sobre o serviço de streaming, que já é maior do que a Band e a RedeTV. Trata-se de mais uma tentativa da Globo de manter sua dominação sobre o mercado de televisão e, consequentemente, sobre corações e mentes dos brasileiros. A Globo quer continuar construindo o discurso cultural hegemônico a ser reproduzido pela sociedade. Que ela tenha esse poder numa democracia é assustador!

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