Nota: (*) Chama-se diplomacia de apito-de-cachorro aquela que envia dois sinais: um para o público e outro para os diplomatas. Possui esse nome porque o "apito-de-cachorro" toca a uma frequência muito mais alta do que aquela que o ouvido humano é capaz de captar, sendo seu sinal ouvido apenas pelos cães.
No dia seguinte à aprovação do impeachment pela Câmara dos Deputados do Brasil, um dos líderes da iniciativa, o senador Aloysio Nunes, embarcou para Washington, D.C. Ele havia agendado reuniões com várias autoridades dos Estados Unidos, incluindo Thomas Shannon do Departamento de Estado.
Shannon tem um perfil relativamente discreto na mídia, mas é o terceiro oficial mais importante do Departamento de Estado dos Estados Unidos. Ainda mais significativo, neste caso, ele é a pessoa mais influente no Departamento de Estado no que diz respeito à política dos EUA para a América Latina. É ele quem irá aconselhar o Secretário de Estado, John Kerry, sobre a atuação dos EUA no decorrer do processo de destituição da presidente Dilma Rousseff.
A disposição de Shannon em se encontrar com Nunes dias após a votação do impeachment manda um sinal poderoso de que Washington embarcou com a oposição brasileira nesta aventura. Como sabemos disso? Simples: Shannon não precisava realizar esta reunião. Se quisesse demonstrar a neutralidade de Washington neste conflito acirrado e extremamente polarizado, ele não realizaria uma reunião com protagonistas de alto escalão de nenhum dos dois lados, principalmente no momento atual.
Em 2009, quando conclamou os atores políticos a respeitar a democracia, a Casa Branca estava, de fato, dando apoio ao golpe, mensagem que só foi entendida pelos próprios golpistas. |
O encontro de Shannon com Nunes é um exemplo do que pode-se chamar de "diplomacia de apito-de-cachorro". Ela quase não aparece no radar da mídia que cobre o conflito e, portanto, não deve gerar repercussão negativa. Mas todos os protagonistas entenderão o que significa. É por isso que o partido de Nunes, o PSDB, divulgou a reunião.
Para ilustrar um outro exemplo da diplomacia de apito-de-cachorro: em 28 de junho de 2009, o Exército hondurenho sequestrou o presidente do país, Mel Zelaya, e o levou para fora do país. A declaração da Casa Branca não condenou este golpe e, em vez disso, conclamou "todos os atores políticos e sociais de Honduras" a respeitar a democracia.
Esse sinal de apito-de-cachorro funcionou perfeitamente; o mais importante é que os líderes do golpe e seus apoiadores em Honduras, assim como todos os diplomatas em Washington, entendessem o seu significado, mesmo com a enxurrada de pronunciamentos de todo o globo condenando o golpe e exigindo a restauração do governo democrático. Todos sabiam que que isso era, em código diplomático, um claro sinal de apoio ao golpe. Os acontecimentos dos seis meses seguintes, com Washington fazendo todo o possível para consolidar e legitimar o governo golpista, foram absolutamente previsíveis, se baseados neste sinal inicial. Hillary Clinton mais tarde admitiu em seu livro de 2014, Hard Choices, que ela obteve êxito ao evitar o retorno do presidente democraticamente eleito.
Tom Shannon tem uma reputação entre os diplomatas latino-americanos de pessoa afável, um funcionário de carreira experiente, que está disposto a sentar e negociar com governos que estão em desacordo com a política dos EUA para a região. Mas ele tem muita experiência com golpes. Alguns dos e-mails vazados de Hillary Clinton elucidam bem seu papel na consolidação do golpe hondurenho. Ele também era funcionário de alto escalão no Departamento de Estado durante o golpe de abril de 2002 na Venezuela, em que há inúmeras evidencias documentais de envolvimento dos EUA. E, quando o golpe parlamentar ocorreu no Paraguai em 2002 — de certa forma similar ao que ocorre no Brasil, mas com um processo que afastou e removeu o presidente em apenas 24 horas — Washington também contribuiu para a legitimação do governo golpista em seguida. No golpe parlamentar do Paraguai, em 2012 , no balanço final. (Por contraste os governos da América do Sul suspenderam a participação do governo golpista no Mercosul, bloco comercial regional, e na Unasul). Shannon era embaixador dos EUA no Brasil à época e uma das autoridades mais influentes na política do governo norte-americano para o Hemisfério ocidental.
Questionado a respeito da visita de Nunes, o Departamento de Estado dos EUA disse que "este encontro foi planejado há meses e agendado por solicitação da Embaixada do Brasil". É uma resposta irrelevante. Significa apenas que havia funcionários da embaixada brasileira envolvidos no agendamento dos encontros, para fins protocolares. Não implica em qualquer consentimento do governo Rousseff, ou altera a mensagem política que o encontro com Shannon envia à oposição no Brasil.
Tudo isso é coerente com a estratégia de Washington em resposta aos governos de esquerda que têm comandado a maior parte da região no século XXI. Eles raramente perdem uma oportunidade de sabotar ou de se livrar de qualquer um deles e seu desejo de substituir o PT por um governo mais compatível e de direita é bastante óbvio.
Mark Weisbrot é co-diretor do Centro de Pesquisas Políticas e Econômicas em Washington e presidente do Just Foreign Policy. É também autor do livro "Failed: What the ‘Experts’ Got Wrong About the Global Economy“ (2015, Oxford University Press).
Muito bom.
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