sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Meu dia sem celular

Já estava sem usar o Facebook há um dia quando tomei a decisão de ficar sem meu celular por 24 horas. Minha intenção é ficar sem usar essa rede social até o Natal para provar para mim mesmo que não sou viciado nela. A decisão surgiu na terça-feira à noite. Naquele dia, eu tinha ido ao supermercado com minha mãe e, ao chegar em casa, decidi ocupar minha mente com outras coisas que não fossem as postagens da rede social de Mark Zuckerberg. Preparei comida para mim, fiz um suco de pêssego que ficou delicioso e fui dar uma volta no parque com o Bruce, meu cachorro. Estava ansioso por não usar o Facebook e também porque estava esperando visita, o que gerou em mim uma expectativa que contribuiu para que minha ansiedade explodisse quando ele não veio e nem deu motivo para não ter vindo.

Nem Will & Grace consegue aplacar minha ansiedade.
Quando cheguei em casa, liguei para ele. Ele não me atendia e, na segunda vez que o chamei, pareceu que ele havia rejeitado a chamada. Isso fez minha ansiedade, que já estava acima do normal, atingir um nível altíssimo, já que a última vez que isso acontecera, ele estava com outro (que não é só qualquer "outro", mas sim o ex dele). Tentei não deixar a ansiedade consumir minhas energias e fui assistir Will & Grace, o seriado que eu tanto amava quando era adolescente e que voltou de maneira um tanto quanto inesperada neste ano. Posso não ter tecido comentários no Facebook enquanto assistia — o que é de costume para mim —, mas os fiz no Twitter, que foi a forma genial que eu encontrei de driblar meu autoimposto banimento do Facebook.

Quando o episódio acabou, liguei novamente para ele. Ao todo foram sete ligações não-atendidas em uma hora e meia. Comecei a ficar preocupado, então deixei mensagens para ele em todas as plataformas possíveis: Messenger, Instagram, WhatsApp e até mesmo SMS. Foi então que eu percebi o quão desesperado eu estava sendo. Logo eu, que tanto critico a Adele por correr atrás de homens nas letras de músicas como "Hello". Estava agindo de maneira ainda pior. Mas foi a tecnologia que me deixou assim. A possibilidade de encontrar qualquer pessoa que more em qualquer canto do mundo em qualquer hora do dia me deixa extremamente frustrado quando ela não se concretiza. Isso para não dizer que alimenta demônios antigos que me habitam, como o medo de me entregar e me decepcionar.

Mais tarde, ele me respondeu, dizendo que estava com um amigo. Me senti ainda mais estúpido por ter me desesperado tanto. Foi então que decidi levar o experimento de largar o Facebook um passo adiante: abriria mão do celular como um todo. Li crônicas de três pessoas que, por variados motivos, desistiram de seus aparelhos celulares por um dia inteiro. A conclusão de todas elas foi a mesma: estavam se tornando escravas de seus aparelhos celulares e, por causa disso, perdiam detalhes importantes da vida, como a risada dos filhos no parquinho, detalhes da arquitetura inusitada da cidade onde moram ou as instruções de segurança do metrô, pois estavam sempre com os olhos grudados em suas telas pretas. Estavam tão presas ao mundo virtual de seus celulares que não aproveitavam o mundo real.

Todos os autores relataram sentir o celular vibrando no bolso da perna de suas calças mesmo após começarem o experimento, ou seja, quando o aparelho não estava mais lá. A "vibração fantasma" é um dos sintomas do vício em celular. Felizmente, não o tive. Infelizmente, acho que isso se deve ao fato de que meu celular não vibra ao receber chamadas ou notificações. Já algo que nenhum deles relatou e que eu experimentei foi que, sem usar o celular até pouco antes de dormir, eu sonhei muito mais do que de costume. Sem ser bombardeado por informações — em sua vasta maioria inúteis para mim — até a hora de seu descanso, minha mente teve energia o suficiente para se expressar de maneira bem mais criativa e livre durante o sono.

Isso me fez pensar no tanto de energia que investimos na tecnologia para não investirmos em nós mesmos. E não foi só do campo onírico que o celular estava roubando energia. É um fato conhecido que o mundo externo desvia muito da nossa atenção do mundo interno, ou seja, de nós mesmos. Sem o celular, sem a expectativa de receber chamadas ou mensagens, me dei ao direito de finalmente ficar de luto pela morte do meu cachorro. Sem distrações, finalmente pude pensar nessa perda e em como ainda me sinto culpado pelo fato de ter dado atenção para o cara com o qual estou saindo, que conheço há pouco mais de dois meses, do que para o meu companheiro de dez anos que tantas vezes me inspirou a seguir vivendo. Percebi que não posso viver para o mundo. Tenho que viver para mim mesmo.

Quando eu acordei de manhã, o dia começou como qualquer outra quarta-feira: fui à academia e, sem o celular para me distrair, cheguei lá surpreendentemente cedo. Quando vou para lá, deixo o celular em casa, então não senti a falta dele. Voltei e usei o computador um pouco. Depois, tomei whey protein. Quando voltei para o PC, ele travou. Fui lavar a louça então e, depois, fui almoçar e a caminhada de ida e volta até o restaurante tornou-se muito mais interessante sem meu celular. Só o almoço em si que foi meio difícil de suportar, pois os comerciantes no Brasil têm o hábito irritante de deixar seus televisores ligados na Rede Globo e eu estava pouco me lixando para a prisão do Paulo Maluf ou para a subida da avaliação positiva de Michel Temer de 3% para 6%. Era justamente isso que as pessoas deveriam estar comentando no Facebook, que estou fazendo muito esforço para evitar.

O "modo avião" me salvou.
Cheguei em casa  após uma tentativa frustrada de comprar uma imagem de São Francisco para o altar que estava fazendo para as cinzas do Obama e coloquei o celular na gaveta. Não queria correr o risco de ficar tentado a usá-lo e achava que ele pudesse receber chamadas mesmo estando no "modo avião". Só depois de algumas horas percebi que isso não seria possível. Confesso que um grande desafio foi não usar o aparelho enquanto estava sentado no vaso sanitário. Este é um hábito — pouco higiênico, eu sei — de vários e vários anos, mas não é nada que um papel e uma caneta não resolvam. Inclusive foi assim que iniciei esse registro, antes mesmo dia dia terminar, pois achei importante registrar as sensações que esta experiência estavam me causando conforme ela esta se desenrolando.

Reiniciei o computador e fiquei tentado a pegar o celular para ver quais guias estavam abertas no Google Chrome antes da máquina travar. Primeiro abri o Spotify e, sem espanto algum, constatei que havia perdido toda a minha fila de reprodução. Em seguida, abri o Chrome e, depois de algum esforço mental e com a ajuda do TabCloud, consegui reabrir as guias que estavam abertas quando o PC travou. Passei um tempo no computador e, depois, decidi passar o aspirador de pó na casa. Já estava preparado para iniciar a limpeza quando percebi que se eu fizesse isso não ouviria quando o carteiro viesse entregar a urna com as cinzas do Obama. Decidi, então, começar a montar o quebra-cabeças que eu havia comprado no dia anterior no supermercado.

Quando as quatro da tarde chegou, horário em que geralmente o carteiro passa, comecei a arrumar o espaço que eu tinha reservado para ser o altar do Obama. Imprimi uma foto nossa juntos, onde ele parece sorrir para mim e coloquei seu certificado de cremação ao lado dela. Foi então que decidi rastrear a encomenda no site dos Correios e vi a mensagem "a entrega não pode ser efetuada - carteiro não atendido" pela segunda vez, o que não fez o menor sentido, pois tanto eu quanto minha mãe ficamos de plantão o dia inteiro para receber as cinzas de nosso querido cão. Fiquei com muita raiva daquela situação e voltei a montar o quebra-cabeças, o que me acalmou aos poucos. Confesso que é um jogo viciante e que fiquei em cima dele durante mais tempo do que eu havia planejado.

Em seguida, fui na vendinha com minha mãe. Ao voltar, lanchei e montei mais um pouco o quebra-cabeças. Foi então que trapaceei — de certa forma — no meu desafio. Offline, li a entrevista de um pesquisador italiano a um jornal goiano que foi uma completa perda de tempo. Ele era super otimista em relação à influência das novas tecnologias na sociedade, o que não deixa de ser irônico quando se está justamente tentando passar um dia sem elas por reconhecer seus efeitos nocivos em sua vida. Essa ironia me motivou a continuar meu experimento solitário. Por curiosidade, também abri o Spotify e fiquei bem feliz ao contatar que a lista de reprodução que eu havia perdido no PC ainda estava lá. Alegrou-me saber que da próxima vez em que for usar o celular, será possível ouvir as músicas que eu tinha planejado ouvir na terça-feira.

Depois mandei um e-mail para o crematório para saber qual endereço havia sido colocado no pacote, pois não fazia sentido a confusão dos Correios (depois, descobri que o endereço estava errado e meu nome também) e levei o Bruce para dar uma volta no parque. Enquanto caminhávamos, escutei música no celular, ainda no "modo avião". Hábitos antigos são difíceis de quebrar. Inclusive, foi por este motivo que acabei lendo a tal entrevista antes de sair de casa. Chegando lá, chamei o Bruce de Obama. Foi então que cheguei à conclusão de que não posso usar aqueles que estão chegando em minha vida para preencher o espaço vazio deixado por aqueles que estão partindo. Sempre fiz isso, mas não é justo nem com os que chegam, nem com os que vão e nem comigo mesmo.

Cheguei em casa e descansei um pouco antes de passar o aspirador de pó enquanto ouvia música na rádio. Constatei duas coisas incômodas enquanto eu limpava a casa, que talvez não teria percebido se tivesse limpado com o celular a meu lado — se é que ele me permitiria limpar a casa para começo de conversa. A mancha de saliva que o Obama havia deixado na minha porta pouco antes de sucumbir à morte ainda estava lá (e eu provavelmente briguei com ele por causa disso). A outra coisa foi que o Bruce fez um pouco de cocô no meu tênis enquanto caminhávamos no parque. Também percebi que haviam várias manchas de tinta no chão do meu quarto. Isso deve ter sido da reforma que minha mãe fez na casa e que acabou no final de outubro. Essa foi a primeira faxina que fiz desde então e o espaço estava menos sujo do que eu esperava.

Depois, tomei um banho — o que, em banheiro limpo, é outra vida — e jantei. Ou melhor, fiz uma ceia. Tirei uma foto do meu prato para postar no Instagram, mas não postei. Assisti Friends e comecei a me questionar se os comentários que eu posto nas redes sociais enquanto assisto algum seriado são realmente necessários e, se forem, por que não posso escrevê-los para mim mesmo num caderno (foi o que eu fiz) ao invés de de publicizá-los para o mundo inteiro ver numa rede social. Sem o celular para me distrair, fui dormir antes da uma da madrugada, o que é até cedo para mim. Também sonhei nessa noite, embora não na mesma intensidade da noite anterior.

O meu dia, sem o celular, rendeu bem mais. Embora eu tenha enrolado para fazer o que eu queria fazer, fiz tudo o que eu tinha para fazer. No geral, sou uma pessoa que se distrai e perde o foco muito facilmente e o celular, com suas infinitas possibilidades, potencializa isso a um extremo que torna minha vida insuportável. Sou extremamente ansioso com o celular. Sem ele, tornei-me mais produtivo, introspectivo e focado. Também fui dormir bem mais cedo do que geralmente vou, pois não precisei me libertar do celular para fazer isso. Estou confiante de que a quinta-feira, dia em que vou ligar o celular novamente, será bem mais tranquila do que de costume. Estava com medo, pois esse é um dia em que tradicionalmente uso muito o celular, pois não tenho nada para fazer.

Cansei de me sentir como um personagem de Black Mirror.
Não tenho mais medo. Vou continuar boicotando o Facebook até o Natal, conforme eu havia planejado no último domingo, e descobri que o "modo avião" do celular é algo maravilhoso para aplacar minha ansiedade, que é potencializada ao extremo pela ultra-conectividade do mundo moderno. Pretendo usá-lo com mais frequência, principalmente quando eu estiver lendo, escrevendo ou simplesmente curtindo um seriado no Netflix. Quero que todas as minhas atenções estejam voltadas para o que eu estiver fazendo no mundo real e não para as expectativas que um mundo falso, virtual, gera em mim. Se quarta-feira foi no geral um dia tranquilo, sem muita ansiedade, a quinta-feira tem todas as possibilidades de ser também.

O celular tornou-se minha vida. Viver 24 horas sem ele foi um desafio necessário para mim. Eu precisava tomar minha vida de volta para mim. Cansei de me sentir como um personagem da realidade distópica de Black Mirror, para quem não resta saída a não ser aceitar ser oprimido pela tecnologia. Foi por isso que me propus esse desafio. O professor italiano que me desculpe, mas se é assim que os avanços da tecnologia me fazem sentir, não tenho motivos para percebê-los como a saída que nos levará a um futuro utópico. Concordo com o ex-vice-presidente do Facebook, para quem esta rede social está destruindo o tecido social. E vou além: a tecnologia está destruindo nossa própria humanidade, deixando-nos entorpecidos demais para vivermos nossas próprias vidas. Prefiro não viver confinado a esse espelho preto. Quero recuperar a alegria de viver.


P.S.: Na quinta-feira, acabei por não usar o celular também. Acordei um pouco tarde e fiquei a tarde inteira no Centro de Distribuição dos Correios tentando pegar a urna com as cinzas do Obama. Depois, fui no Bapi com minha mãe. Chegando em casa, montei o quebra-cabeças um pouco mais e, depois, caminhei com o Bruce no parque. Em seguida, fiz um pequeno ritual para colocar as cinzas do Obama em seu altar e publiquei este texto. Foi só então que retirei o celular do "modo avião". Vi suas centenas de notificações, mas decidi não dar atenção para elas. Não agora que eu sei que isso mais atrapalha do que ajuda minha ansiedade. Também percebi que é falsa a premissa de que não tenho nada para fazer. Essa é uma desculpa que dou para continuar viciado no celular. Me recuso a viver para mim para viver para esta tecnologia e isso não pode continuar mais.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Obama (4/11/2007—3/12/2017)

É difícil escrever sobre alguém que você perdeu. Não quero que meu luto vire motivo para "curtidas" numa rede social. Mas também não quero que essa morte passe em branco. Eu vi uma alma sair de um corpo e isso me marcou muito. Vi como a vida é breve e frágil e as coisas mesquinhas deste mundo — e de mim — deixaram de fazer sentido. Num momento a vida está lá e, no outro, não está mais. É algo muito precioso para gastarmos-na com coisas banais. E também para passar em branco.

Tudo começou em agosto, quando ele passou mal e teve de ser internado por uma semana. Vivi dias de angústia e esperança durante todo o momento em que ele esteve no hospital. Mas foi quando descobri quem são meus amigos de verdade. Quando ele voltou para casa, já não era mais o mesmo. Parece que parte de sua alegria havia ficado no hospital. Queriam operá-lo assim que foi diagnosticado com doença do pericárdio. Não deixei. Estava velho demais e não queria que ele morresse numa maca.

Apesar da dor que sentiu nos momentos finais, ele não gemia ou chorava. Sempre foi forte, ao mesmo tempo em que era meigo e doce. Nunca foi de reclamar. Há um mês, fez dez anos. Uma década juntos é tempo pra caramba. E, várias vezes, eu não soube aproveitar esse breve tempo que tivemos para ficarmos juntos. Tomei-o por garantido. Achei que ele sempre estaria me esperando quando eu chegasse em casa. Fui um tolo e eu espero que ele me perdoe por isso, onde quer que ele esteja agora.

Quando alguém morre, é da natureza humana ficar pensando "e se...?". Penso direto nisso. E se eu tivesse aceitado o risco de operá-lo e ele vivesse mais alguns anos? E se eu tivesse levado-o ao hospital antes? Até porque comecei a perceber que ele estava agindo de maneira estranha uma semana antes dele falecer. Encontrei-me, então, numa encruzilhada: levava-o ao hospital para dar-lhe uma sobrevida horrível ou deixava-o descansar em paz? Escolhi a última opção e ainda me questiono se agi certo.

Obama (*4 de novembro de 2007 ✝3 de dezembro de 2017).
A minha escolha de Sofia não foi nada fácil, principalmente quando ele me olhava com um olhar que mesclava um pedido de socorro com uma despedida. Eu não suportava aquele olhar. Como as coisas teriam sido bem mais fáceis se ele pudesse falar e dizer para mim o que ele queria que eu fizesse, como esperava que eu agisse em relação a ele. Mas decidi que se ele piorasse ao ponto de não conseguir mais andar, como aconteceu em agosto, levaria-o ao hospital.

Não poderia ter escolhido parâmetro pior, pois ele andou até o fim. Quando caiu no chão foi para perder a consciência e morrer. A médica nos explicou que, como o coração dele estava expandido e pressionando os demais órgãos da caixa torácica, deitar traria-lhe muita dor. Mas ele nunca reclamou de dor alguma! Só decidi levá-lo ao hospital porque ele começou a salivar muito, estava febril e parou de comer.

Não sei se o estresse de tirá-lo daqui de casa foi demais para seu coração ou se ele realmente não aguentaria muito mais tempo, mas só sei que ele morreu assim que chegou no hospital. Uma das últimas memórias que tenho dele foi de quando abri o porta-malas e ele fez um esforço enorme para entrar lá dentro, como se soubesse que a ajuda que tanto havia nos pedido com seu olhar nos dias anteriores finalmente viria. Isso cortou meu coração e não parei de pensar que fiz a escolha errada.

Mas a ajuda estaria vindo e ele ficaria bem. Pelo menos era o que eu achava. Eu não acreditei, até o último segundo de sua vida, que ele iria me deixar para sempre. Meu cachorro se foi e levou uma parte de mim com ele. Meu peito está oco. Não deixa de ser engraçado que quem tinha sido nomeado em homenagem ao cara que supostamente traria a esperança de volta para os Estados Unidos foi-se justamente agora, em tempos tão desesperançosos.

Me desculpa, Obama, por não ter sido tão presente em sua breve vida como eu gostaria de ter sido. Enfrentei muitos demônios pessoais nessa última década — faculdade, primeiras viagens pro exterior, morte do meu avô, saída do armário, casamento, depressão, outra faculdade, um golpe de Estado que acabou com meu psicológico, outro namoro, uma oportunidade de emprego frustrada em Brasília, separação dos meus pais, distensão no pé, mini-amores e amizades frustradas, etc. 

Mas não deixe de pensar, por um segundo, que eu não te amei. Você esteve lá durante tudo isso e muito mais. Muitas vezes eu achava que o que eu estava vivendo era demais para mim e você me dava motivos para viver. Agora você morreu e eu morri um pouco com você. Não consigo pensar que você não estará mais aqui conforme vivo novas experiências. É estranho e assustador pensar nisso. Mas pelo menos você estava aqui quando essa experiência linda e nova que estou vivendo no momento começou.

Obrigado, Obama. Por vezes, questionei o nome que eu havia te dado, mas a verdade é que eu não poderia ter escolhido um nome melhor para você, pois em 2007 eu achava que o Obama era uma esperança e você de fato me dava esperança para viver. Sempre que eu estava triste, eu te procurava e o seu carinho me dava forças o suficiente para querer seguir em frente. Você me amava sem exigir nada em troca e isso é simplesmente lindo. Você foi mais do que um cachorro, você foi um amigo e eu sempre irei te amar.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

O complexo de Gastão na comunidade gay

Ontem eu estava com uma insônia do cão causada por uma crise de ansiedade, então fui ler sobre A Bela e a Fera (2017), filme que eu havia assistido no cinema algumas horas antes. Num dos artigos que li descobri que as canções do filme original, a animação lançada em novembro de 1991, representavam uma metáfora para a epidemia da AIDS, que até 1991 havia matado cerca de 60 mil pessoas apenas nos EUA desde a descoberta do vírus causador da doença dez anos antes. As canções foram escritas por Howard Ashman, que morreu pouco antes da estreia do filme devido a complicações de saúde causadas pelo HIV, vírus até então indetectável por qualquer tipo de exame laboratorial.

É bastante óbvia de que a maldição que acomete o príncipe — jogando-lhe no ostracismo, afastando-lhe do convívio social e desgraçando também as vidas daqueles que cuidavam dele — é uma metáfora para a AIDS. A Fera, assim como um portador de HIV do início dos anos 1990, vive enclausurada, duvida da capacidade de ser amada incondicionalmente por quem quer que seja e luta contra o tempo para que um milagre a salve daquela maldição. Chamou-me mais atenção, no entanto, a relação entre a canção "Gaston", interpretada por LeFou (cuja versão de 2017 é o primeiro personagem gay de um filme da Disney) no bar, e a epidemia, muito menos óbvia.

Gastão.
Trata-se de uma canção altamente homoerótica que, na versão de 2017, com atores de verdade, tornou-se ainda mais provocativa. Ela exalta a força, a virilidade e a masculinidade do vilão, que deseja se casar com a Bela a qualquer custo. Mas o que isso tem a ver com a AIDS? Pois bem. Durante a epidemia da doença, os homens gays escondiam um de seus sintomas, a perda de peso, através da musculação excessiva. Como já havia dito, o HIV não era detectável em exames laboratoriais, então quem suspeitava que possuía a doença, para evitar um diagnóstico que lhe traria a mesma ruína da Fera, escondia os sintomas o máximo possível dos médicos e da sociedade em geral através da prática excessiva de atividades físicas.

A imagem que se tinha dos portadores do HIV na mídia era aquela de pessoas definhando na cama, emagrecendo até a morte. Como estratégia de sobrevivência num meio que já lhes era hostil antes mesmo do aparecimento da doença — inicialmente chamada pela comunidade médica de Deficiência Imunológica Relacionada aos Gays (GRID, na sigla em inglês) —, os homossexuais, mesmo aqueles que já haviam sido infectados, começaram a encher as academias para provar que eram sadios e que a doença atingia apenas uma pequena parte de sua comunidade. Essa é uma das teorias que explicam a ditadura do corpo musculoso ainda hoje vigente na comunidade gay.

É possível que Ashman exaltasse os músculos de Gastão porque era isso que ele desejava para si: um corpo que negasse a doença que lhe estigmatizava perante os olhos da sociedade. Creio, no entanto, que a canção, dado o contexto maior do filme, seja uma denúncia aos gays do tipo Gastão. Ela apresenta as características de um vilão, o que num desenho infantil sempre significa um modelo de vida a não ser seguido. Ao mesmo tempo em que exalta o corpo musculoso de Gastão, o letrista de A Bela e a Fera queria que ele não fosse seguido como exemplo pelas crianças que assistiriam ao desenho. Não é isso que deveria fazer alguém tornar-se aceito pela sociedade.

No contexto maior do filme, Gastão seria o gay saudável aos olhos da sociedade, que ataca o homossexual "amaldiçoado" para satisfazer uma multidão que canta "não gostamos do que não entendemos". O esforço de Gastão para matar a Fera e ser bem visto pelos habitantes de seu vilarejo equivale aos esforços dos gays musculosos em invisibilizar os gays magros — vistos como portadores de HIV — e conquistarem o respeito da sociedade ao se afastarem do estigma da "doença dos gays". Esta minha leitura é reforçada pela versão de 2017, pois há uma cena em que LeFou abandona o parceiro ao reconhecer que ele é o verdadeiro monstro e não a Fera.

Ainda hoje a comunidade gay reproduz a ditadura do corpo musculoso, o que não faz o menor sentido, visto que há toda uma geração de homossexuais cuja vida sexual iniciou-se quando a epidemia da AIDS já estava sob controle. Embora ainda exista a associação entre magreza e HIV tanto dentro da comunidade LGBT quanto na sociedade em geral, agora os corpos musculosos simbolizam, para os homens gays, a reconquista da virilidade que eles sentem que perdem quando saem do armário. É como se seus músculos servissem para provar para a sociedade não só que eles não têm AIDS como também que ainda são homens.

Estar satisfeito com seu próprio corpo é algo maravilhoso e se as pessoas sentem que atingem isso através da musculação, fico feliz por elas. O problema é que ainda persiste a estigmatização dos gays magros, mesmo com os estudiosos afirmando que nossa comunidade vive na era pós-AIDS. Isso ocorre porque nossa sociedade é heteronormativa e os gays dão mais valor ao que os héteros pensam deles e, assim, buscam parceiros que aparentar ter a virilidade dos homens heterossexuais. Mesmo que nós, magros, sejamos tão sadios quanto os musculosos, parte da nossa comunidade ainda está sob efeito do complexo de Gastão e continua a nos tratar como inferiores. Espero que isso não se torne um "conto tão antigo como o tempo".