Acabei de assistir ao filme Que Horas Ela Volta? na Rede Globo. Estou exausto, mas preciso escrever alguma coisa sobre essa magnífica obra de arte. Foi preciso esperar as quase seis horas diárias de subproduto da dramaturgia (telenovela) e da desinformação mascarada de jornalismo acabar para enfim poder assistir ao filme. Qualquer programa que questiona e estimula o debate sobre a estrutura social injusta do Brasil a Rede Globo faz questão de colocar lá nas altas horas da madrugada, quando não existe a menor possibilidade da massa trabalhadora estar acordada assistindo à programação. Ao contrário do Netflix ou da BBC, a Globo é ao mesmo tempo um produto e um mecanismo de afirmação dessa estrutura. Conscientizar a população sobre os verdadeiros problemas que ela enfrenta é perigoso. Podem se voltar contra a Globo. É mais seguro fazer um entretenimento barato que deixe a população anestesiada e os anunciantes felizes.
Mas vamos tratar do filme em si. Regina Casé estava brilhante como a empregada doméstica Val que, após passar dez anos criando o filho de Dona Bárbara, sua patroa, como se fosse seu (não coincidentemente o título do filme no exterior é A Mãe Postiça), recebe a notícia de que sua filha Jéssica, que não via pelo mesmo período de tempo, está indo para São Paulo para visitá-la e – para a surpresa da patroa – prestar o vestibular numa faculdade de arquitetura. Até esta altura, Val realmente acredita no clichê amplamente difundido pela classe média de que empregado também faz parte da família e pede à patroa para hospedar sua filha na casa deles. Val, como muitas serviçais do Brasil republicano, mora na senzala da casa – um quartinho nos fundos que os arquitetos continuam insistindo em desenhar. A chegada da menina, que se recusa a reconhecer a hierarquia social implícita dentro da casa, é que gera o conflito. Jéssica não vê razão em ser tratada como inferior a alguém e, além disso, desperta o interesse dos homens da casa, o que gera ciúmes na patroa.
Val, heroína da classe trabalhadora. |
O fato é que nos últimos anos começaram a ser lentamente questionadas as normas vigentes no Brasil desde que nosso arremedo de civilização começou a se formar. Jéssica não reconhece as normas sociais de um mundo do qual não faz – e nem quer fazer – parte. Ela é o retrato de um novo Brasil que vem nascendo há pelo menos uma década e que muitos desejam desesperadamente abortar. Se antigamente a filha da empregada doméstica só podia se vislumbrar no futuro como sendo uma empregada doméstica também, hoje as coisas não são mais bem assim. E isso incomoda. Ao filho do empregado não é desejável nem que ocupe o mesmo espaço físico que o filho do patrão, quanto mais disputar vagas de vestibular com o mesmo. Quando Jéssica passa no vestibular e o filho da patroa não, há uma torcida implícita por parte de Dona Bárbara para que ela não passe na segunda fase do exame. Dói ver que tantos privilégios não fazem diferença na inteligência do indivíduo.
A diretora Anna Muylaert tocou numa ferida aberta do Brasil. Assistindo a Que Horas Ela Volta? me veio à mente, diversas vezes o filme norte-americano Histórias Cruzadas. Só que aqui no Brasil a transição de sociedade escravocrata para sociedade de direitos ainda não foi completada. A ferida ainda não cicatrizou e se depender de muitos, que lutam contra a ampliação dos direitos civis para todos, nem vai. Nos Estados Unidos é vergonhoso explorar mulheres negras porque a pessoa até hoje não aprendeu a limpar a própria privada. Lá é comum jovens de classe média pagarem a faculdade trabalhando como garçons. No Brasil a elite e a pseudo-elite julgam que estão no topo da hierarquia por um desígnio de Deus. Quando eu frequentava círculos de classe média era bastante comum ouvir sobre uma empregada que se aposentou e foi substituída pela filha. Sem falar das patroas que praticavam escambo com suas empregadas. Era como ouvir conversas de brancos do século XIX, só que, ao contrário da escravidão, uma pequena quantia de dinheiro estava sendo paga ao explorado.
Nesta fábula moderna, Val é a working class hero e os antagonistas são os patrões, oriundos de uma pequena burguesia que nada produz, nada conquista por méritos próprios e, ainda assim, julga apropriado explorar a mão-de-obra alheia. Val julgava fazer parte dessa família, mas ela jamais vai poder se dar ao luxo de deixar de trabalhar porque herdou a fortuna do pai. Vejam só, quando Fabinho, o filho de dona Bárbara, não consegue passar no vestibular recebe dos pais uma viagem-consolo para a Austrália. A essas pessoas não é interessante gerar riqueza, apenas mantê-la; vivem de status. O fato é que o capitalismo no Brasil ainda é muito arcaico. O país ainda flerta com o feudalismo enquanto parte de sua classe média vomita Mises por aí. Val é a heroína, mas só pôde se libertar da opressão (que ela não enxergava como tal) com a ajuda de alguém de fora. De alguém que não foi criado nesse ambiente insano e que, justamente por isso, percebe a irracionalidade daquilo tudo. Nesse papel, a atriz Camila Márdila, que deu vida a Jéssica, brilhou.
Não tive a oportunidade de assistir a nenhum dos outros filmes que foram enviados pelos governos nacionais para representar seus países na disputa pelo Oscar de melhor filme estrangeiro, mas Que Horas Ela Volta? não deixou nada a desejar em sua proposta de abordar a relação entre a casa grande e a senzala no Brasil que, ainda hoje, mais de cem anos após o fim oficial da escravidão insiste em perdurar por causa de uma elite e de uma classe média que se recusam a aprender a lavar a própria louça. Se o filme merecia estar na lista dos doze pré-indicados ao Oscar, eu não sei. Só sei que merece todos os prêmios que já recebeu – entre os quais o de melhor atriz para Márdila e Casé em Sundance – e toda a visibilidade que eles garantem a uma produção cinematográfica. Além disso, o filme merece suscitar muitas discussões sobre a hierarquia social tácita presente nas relações de emprego no país. Precisamos começar a questionar: por que só no Brasil as babás precisam vestir uniforme e usar entrada de serviço? Que horas a casa grande vai cair? Espero que não demore, pois cansei de passar vergonha no exterior explicando porque os brasileiros não limpam a própria sujeira.