Semana retrasada, um pouco antes do segundo turno das eleições, assisti a um episódio do desenho animado She-Ra que é uma alegoria perfeita sobre a ascensão do fascismo a qual vivemos atualmente no Brasil. Exibido há pouco mais de 33 anos nos Estados Unidos, a atualidade do episódio é assustadora. E me admira que uma geração que cresceu vendo esse desenho agora apoie um cara que flerta abertamente com o fascismo. Isto é, para mim, uma aberração cognitiva. Mas não acreditem em mim, confiram a sinopse do episódio e vejam se não é verdade o que estou afirmando.
Os rebeldes Adora (disfarce de She-Ra) e Arqueiro vão numa escola ensinar às crianças a verdade sobre a Horda. Eles contam às crianças que Etéria era um planeta próspero e feliz antes da invasão e da dominação dos soldados da Horda. Um menino chamado Cory desafia-lhes. Ele acha que a verdade histórica é uma mentira e que o revisionismo promovido pela Horda é que é a verdade. Após uma visita de soldados, que constatam o teor "doutrinário" das aulas, à aldeia, a Horda decide censurar os livros didáticos e controlar o conteúdo ministrado durante as aulas.
Ainda mal-informado sobre a Horda, Cory aceita se tornar um informante desta organização. Sua primeira ação é delatar a professora, que mesmo demitida ainda dá aulas de História escondido para as crianças da aldeia. Ela é presa por este crime de opinião, mas acaba sendo resgatada da prisão e levada para um lugar seguro por She-Ra. Seus alunos, ainda apegados à sua maneira de lecionar, rejeitam às aulas do interventor da Horda, que se limita a ler uma cartilha que falseia a verdade na sala. Elas são ameaçadas de internação num centro de lavagem cerebral e, com medo, alertam os rebeldes.
Cory informa a Horda que as crianças alertaram os rebeldes sobre a internação compulsória delas e eles são presos assim que chegam na aldeia para resgatá-las. Apesar dos serviços prestados à Horda, os soldados também levam a irmã de Cory para o centro de lavagem cerebral. É então que ele descobre que ele nunca será um membro da Horda e que só foi usado pelos soldados para que esta instituição se perpetuasse no poder. Suas ações fizeram com que sua irmã e dezenas de crianças fossem tiradas de seus pais para que aprendessem "a verdade" sobre a Horda por alguns meses.
Percebendo a manipulação à qual foi submetido, Cory se redime libertando os rebeldes que foram presos devido a sua delação. Estes, por sua vez, resgatam as crianças e, no fim do episódio, recebem um pedido de desculpas de Cory. Segundo ele, sua crença fiel na "verdade" da Horda se devia à sua preguiça de estudar história. Por fim, o Geninho — um personagem que sempre aparece no final de cada episódio para comentá-lo — ensina às crianças sobre o direito à informação: as pessoas devem ter acesso a qualquer livro que elas desejam ler, desde que eles sejam adequados à sua idade, é claro.
É triste constatar que o presidente-eleito do Brasil discorda do Geninho. Em sabatina no Jornal Nacional, ele pediu a censura nas escolas de um livro de educação sexual destinado a pré-adolescentes que nunca sequer fez parte do currículo escolar. Eis o nível em que chegamos enquanto nação: um personagem de desenho animado fictício entende mais de liberdade de expressão do que o futuro presidente de carne e osso de nossa nação. Infelizmente, no entanto, as possíveis analogias entre essa peça de ficção animada e a realidade de carne e osso não param por aí.
Cory se assemelha aos seguidores do presidente-eleito, que rejeitam a verdade factual dos acontecimentos para acreditar cegamente na "verdade" disseminada por seu líder. Livros considerados "impróprios" pela Horda são censurados nas escolas assim como O Diário de Anne Frank foi censurado aqui no Brasil porque, numa determinada passagem da obra, a narradora descreve como é sua vagina. Soldados da Horda invadiram a escola por discordarem da crítica de uma professora ao autoritarismo assim como a Polícia Militar do Rio de Janeiro invadiu uma instituição universitária que se posicionou contra o fascismo. O currículo escolar foi modificado pela Horda para evitar que os alunos se tornassem seres conhecedores da verdade assim como o "Escola Sem Partido", em pauta há algum tempo, visa calar professores que estimulam o pensamento crítico de seus alunos. Isso sem mencionar a proliferação de fake news pelo WhatsApp que vimos durante as eleições.
Todas essas possíveis analogias entre desenho e realidade não são uma mera coincidência. She-Ra era um desenho que buscava alertar às pessoas sobre os perigos do autoritarismo. Não é para menos, visto que ele era produzido durante a Guerra Fria, numa época em que a URSS — assim como os EUA em menor escala, durante o macartismo dos anos 1950 — buscava se perpetuar no poder através da manipulação da verdade e da perseguição à liberdade de expressão, algo que é sentido na Federação Russa, acostumada com a tirania de seu atual governante, até os dias de hoje.
As práticas anti-liberais da URSS, que dizia às pessoas o que ler, o que escutar e no que acreditar, foram denunciadas por um jovem Fernando Haddad antes mesmo desta acabar. Em 1990, sua tese de mestrado argumentava que a revolução soviética não havia sido socialista por não ter emancipado o cidadão russo. Mas a manipulação durante as eleições foi tamanha que o candidato defensor da liberdade de expressão foi pintado como uma "ameaça comunista" e o candidato censor de livro juvenil foi pintado como o "libertador" que vai salvar o país de uma ameaça comunista imaginária.
Só espero que o brasileiro médio, assim como Cory, tome consciência da manipulação da qual está sendo vítima. Eu acredito que ainda não é tarde para que ele perceba que pessoas autoritárias e violentas estão se perpetuando no poder graças à sua ignorância no que diz respeito à verdade dos fatos históricos e que — tal como Cory — ele será descartado assim que esse projeto de poder for concluído. Espero que ainda não seja tarde para ser como Cory e tomar consciência do mal que está sendo causado a milhares de pessoas, que estão tendo suas liberdades tolhidas, pela adesão cega a líderes políticos que só se sustentam no poder graças à manipulação e à mentira. Ainda não é tarde para aceitar a História, espero.