segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Ainda não é tarde para aceitar a História

Semana retrasada, um pouco antes do segundo turno das eleições, assisti a um episódio do desenho animado She-Ra que é uma alegoria perfeita sobre a ascensão do fascismo a qual vivemos atualmente no Brasil. Exibido há pouco mais de 33 anos nos Estados Unidos, a atualidade do episódio é assustadora. E me admira que uma geração que cresceu vendo esse desenho agora apoie um cara que flerta abertamente com o fascismo. Isto é, para mim, uma aberração cognitiva. Mas não acreditem em mim, confiram a sinopse do episódio e vejam se não é verdade o que estou afirmando.

Os rebeldes Adora (disfarce de She-Ra) e Arqueiro vão numa escola ensinar às crianças a verdade sobre a Horda. Eles contam às crianças que Etéria era um planeta próspero e feliz antes da invasão e da dominação dos soldados da Horda. Um menino chamado Cory desafia-lhes. Ele acha que a verdade histórica é uma mentira e que o revisionismo promovido pela Horda é que é a verdade. Após uma visita de soldados, que constatam o teor "doutrinário" das aulas, à aldeia, a Horda decide censurar os livros didáticos e controlar o conteúdo ministrado durante as aulas.

Ainda mal-informado sobre a Horda, Cory aceita se tornar um informante desta organização. Sua primeira ação é delatar a professora, que mesmo demitida ainda dá aulas de História escondido para as crianças da aldeia. Ela é presa por este crime de opinião, mas acaba sendo resgatada da prisão e levada para um lugar seguro por She-Ra. Seus alunos, ainda apegados à sua maneira de lecionar, rejeitam às aulas do interventor da Horda, que se limita a ler uma cartilha que falseia a verdade na sala. Elas são ameaçadas de internação num centro de lavagem cerebral e, com medo, alertam os rebeldes.

Cory informa a Horda que as crianças alertaram os rebeldes sobre a internação compulsória delas e eles são presos assim que chegam na aldeia para resgatá-las. Apesar dos serviços prestados à Horda, os soldados também levam a irmã de Cory para o centro de lavagem cerebral. É então que ele descobre que ele nunca será um membro da Horda e que só foi usado pelos soldados para que esta instituição se perpetuasse no poder. Suas ações fizeram com que sua irmã e dezenas de crianças fossem tiradas de seus pais para que aprendessem "a verdade" sobre a Horda por alguns meses.

Percebendo a manipulação à qual foi submetido, Cory se redime libertando os rebeldes que foram presos devido a sua delação. Estes, por sua vez, resgatam as crianças e, no fim do episódio, recebem um pedido de desculpas de Cory. Segundo ele, sua crença fiel na "verdade" da Horda se devia à sua preguiça de estudar história. Por fim, o Geninho — um personagem que sempre aparece no final de cada episódio para comentá-lo —  ensina às crianças sobre o direito à informação: as pessoas devem ter acesso a qualquer livro que elas desejam ler, desde que eles sejam adequados à sua idade, é claro.

É triste constatar que o presidente-eleito do Brasil discorda do Geninho. Em sabatina no Jornal Nacional, ele pediu a censura nas escolas de um livro de educação sexual destinado a pré-adolescentes que nunca sequer fez parte do currículo escolar. Eis o nível em que chegamos enquanto nação: um personagem de desenho animado fictício entende mais de liberdade de expressão do que o futuro presidente de carne e osso de nossa nação. Infelizmente, no entanto, as possíveis analogias entre essa peça de ficção animada e a realidade de carne e osso não param por aí.

Cory se assemelha aos seguidores do presidente-eleito, que rejeitam a verdade factual dos acontecimentos para acreditar cegamente na "verdade" disseminada por seu líder. Livros considerados "impróprios" pela Horda são censurados nas escolas assim como O Diário de Anne Frank foi censurado aqui no Brasil porque, numa determinada passagem da obra, a narradora descreve como é sua vagina. Soldados da Horda invadiram a escola por discordarem da crítica de uma professora ao autoritarismo assim como a Polícia Militar do Rio de Janeiro invadiu uma instituição universitária que se posicionou contra o fascismo. O currículo escolar foi modificado pela Horda para evitar que os alunos se tornassem seres conhecedores da verdade assim como o "Escola Sem Partido", em pauta há algum tempo, visa calar professores que estimulam o pensamento crítico de seus alunos. Isso sem mencionar a proliferação de fake news pelo WhatsApp que vimos durante as eleições.

Todas essas possíveis analogias entre desenho e realidade não são uma mera coincidência. She-Ra era um desenho que buscava alertar às pessoas sobre os perigos do autoritarismo. Não é para menos, visto que ele era produzido durante a Guerra Fria, numa época em que a URSS — assim como os EUA em menor escala, durante o macartismo dos anos 1950 — buscava se perpetuar no poder através da manipulação da verdade e da perseguição à liberdade de expressão, algo que é sentido na Federação Russa, acostumada com a tirania de seu atual governante, até os dias de hoje. 

As práticas anti-liberais da URSS, que dizia às pessoas o que ler, o que escutar e no que acreditar, foram denunciadas por um jovem Fernando Haddad antes mesmo desta acabar. Em 1990, sua tese de mestrado argumentava que a revolução soviética não havia sido socialista por não ter emancipado o cidadão russo. Mas a manipulação durante as eleições foi tamanha que o candidato defensor da liberdade de expressão foi pintado como uma "ameaça comunista" e o candidato censor de livro juvenil foi pintado como o "libertador" que vai salvar o país de uma ameaça comunista imaginária. 

Só espero que o brasileiro médio, assim como Cory, tome consciência da manipulação da qual está sendo vítima. Eu acredito que ainda não é tarde para que ele perceba que pessoas autoritárias e violentas estão se perpetuando no poder graças à sua ignorância no que diz respeito à verdade dos fatos históricos e que — tal como Cory — ele será descartado assim que esse projeto de poder for concluído. Espero que ainda não seja tarde para ser como Cory e tomar consciência do mal que está sendo causado a milhares de pessoas, que estão tendo suas liberdades tolhidas, pela adesão cega a líderes políticos que só se sustentam no poder graças à manipulação e à mentira. Ainda não é tarde para aceitar a História, espero.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Crítica: Agamenon está mais vivo do que nunca

A peça Homens e Caranguejos, apresentada no dia 23 pelo Coletivo Cênico Joanas Incendeiam de São Paulo, é um espetáculo incrível. Sua concepção visual, com um cenário de carrinhos de reciclagem que se transformam em palafitas, é fascinante. Mas o texto, baseado na obra homônima de Josué de Castro, consegue ser muito mais. Ele mexe com todos os nossos sentidos. É possível sentir a dor do pai que acabou de perder o filho engolido pela correnteza do Rio Capibaribe. Em outro momento, é possível sentir a alegria do menino que brinca tão feliz no mangue do Recife sem saber que existe um mundo de luxo a poucos quilômetros de distância dali.

Inspirada no movimento realista do século passado, a peça tem um forte caráter de denúncia social. Também pudera. O médico nutrólogo Josué de Castro foi presidente do conselho executivo da FAO, órgão das Nações Unidas para a alimentação, e um dos grandes ativistas no combate à fome na região do semiárido brasileiro. Devido à sua militância política e social, teve seus direitos políticos cassados após o golpe civil-militar de 1964. Logo em seguida, em 1967, escreveu Homens e Caranguejos, seu único romance, como uma denúncia ao problema que não merecia a devida atenção dos ditadores militares e da sociedade civil que mantinha-os no poder.

Narrando, em tempo psicológico, a história de uma família de retirantes que sobrevive à fome no interior do Nordeste para tentar a vida no Recife, a peça utiliza a figura mitológica do rei grego Agamenon como alegoria para os mandatários que, além de não fazerem nada para aliviar o sofrimento do povo pobre, ainda querem expulsá-los de suas casas para dar espaço ao “progresso”; progresso este que, embora esteja cravado na bandeira, ainda é um direito acessível a poucos brasileiros. Agamenon matou dezenas de troianos para recuperar Helena de Troia e sacrificou sua própria filha durante a guerra. O que torna sua escolha ainda mais significativa se considerarmos o caráter feminista do Coletivo Cênico Joanas Incendeiam, formado apenas por mulheres. 

Em Homens e Caranguejos, a tragédia, gênero teatral desenvolvido pelos gregos, se mistura com a tragédia da realidade de miséria que castiga a vida de muitos brasileiros. Nesta tragédia do século XX (ou XXI), pai e filho ganham a vida catando caranguejos no mangue. Para o desespero do pai, a criança não está tão interessada em seguir carreira como catador de caranguejo. O menino brinca na lama suja do mangue e sonha em depor o déspota Agamenon com a ajuda de um vizinho idoso, já debilitado. Esse movimento pela mudança social tem seu auge com a chegada do boi-calemba – ou boi-bumbá, festa originária da lenda do boi voador do Recife – no mangue, quando ficção e realidade se misturam com um grito de “viva Marielle Franco” pelo menino. 

Isso fez com que a pergunta que já estava em minha cabeça, ficasse ainda mais forte: quem seria Agamenon? Seria Geraldo Alckmin, da terra das atrizes? Seria Paulo Câmara, governador do Pernambuco que, como o rei da peça não hesita em desocupar os pobres de áreas públicas para trazer o “progresso” para o Recife? Seria o general Castello Branco, ditador da época em que o texto de Josué de Castro foi originalmente escrito? Para uns será até mesmo Lula ou Dilma, que apesar de suas boas intenções sucumbiram a um sistema político fisiológico e corrupto. Mas não consigo deixar de pensar que Agamenon seja Michel Temer, o responsável por colocar o Brasil de volta no mapa da fome compilado pela mesma FAO de Josué de Castro. 

Enquanto “Agamenon” se reúne com empresários e parlamentares para decidir como o povo pode pagar ainda mais pela crise dos ricos, pobres são desocupados de suas casas pelas forças de repressão estatal para darem espaço a condomínios de luxo, crianças brincam em manguezais sujos, adultos não veem alternativa senão colocarem seus filhos para trabalhar mesmo correndo o risco de serem penalizados por esse mesmo Estado que vira-lhes a cara enquanto eles passam fome. E também meninos morrem afogados em enchentes. Pensando bem, talvez “Agamenon” não seja só Temer, talvez sejamos todos nós que, por ação ou por omissão, permitimos que ele continue no poder e que cenas como essas, retratadas num texto de meio século atrás, continuem sendo comuns na realidade do Brasil.

O texto, infelizmente, é atemporal. Após uma aliviada durante os anos Lula e Dilma, a fome agora volta a assolar os rincões do país. Enquanto isso, nos grandes centros urbanos como o Recife, a miséria se torna cada vez mais evidente conforme vendedores e pedintes se multiplicam e disputam espaço nos sinaleiros. É interessante que, num cenário de golpes à democracia, aos direitos civis e humanos e às próprias iniciativas de combate à fome (com o anúncio de cortes ao Bolsa Família no orçamento do ano que vem), o Coletivo Cênico Joanas Incendeiam tenha decidido resgatar justamente esse texto. Num cenário de sacrifício do direito de muitos em prol do benefício de poucos, a alegoria do autoritário e insensível rei Agamenon se apresenta mais viva do que nunca. Em cada um de nós.

sábado, 17 de março de 2018

Quero ser possuído e não posse

É interessante assistir a um filme antigo e se surpreender com a atualidade de algum tema que é retratado ali. Isso ocorre, sobretudo, com obras que tratam, como assunto principal, das relações humanas. É difícil destruir conceitos enraizados há séculos na sociedade e a ideia patriarcal de que o amor implica na posse da mulher pelo homem é uma delas. Para o patriarcado, a mulher deve ter como meta de vida se casar e, depois disso, cessar de existir enquanto um ser humano independente. Ela não só tem que adotar o sobrenome do marido como deve abdicar de seus sonhos e prazeres a favor dos sonhos e prazeres dele. Foi só com a entrada das grandes potências na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que foi permitido à mulher trabalhar. Mais por uma questão estratégica — necessidade de mão-de-obra enquanto os homens lutavam — do que ideológica.

Mariam sonha com a vida luxuosa dos passageiros do
trem que passa por sua cidadezinha.
Em Possuída (1931), produzido antes da censura que o escritório do católico Joseph Breen impôs aos filmes, Joan Crawford interpreta Mariam Martin, uma jovem que trabalha numa fábrica de caixas em alguma cidade do interior dos Estados Unidos e que sonha em pertencer à alta sociedade nova-iorquina. Um dia, voltando de seu trabalho entediante, ela conhece um milionário que promete ajudá-la caso ela vá para a cidade. Mariam chega em casa bêbada e o namorado matuto repreende-a. A cena é uma das mais belas que eu já vi. O namorado diz a Mariam que ela não pode perseguir seus sonhos na cidade grande, ao passo que ela responde-lhe: "Você não é meu dono, minha vida pertence a mim". "Você vai bagunçá-la", retruca o rapaz. "Ainda pertencerá a mim", desafia a garota. A mãe dela entra no meio da discussão para dizer que os pensamentos da filha assustavam-na.

Eis que Mariam começa um discurso avançado demais para 1931, que ainda mantém-se relevante em 2018: "Se eu fosse um homem, não te assustaria, você acharia certo que eu saísse de casa e conquistasse tudo o que eu pudesse na vida e usasse qualquer meio para consegui-lo", diz. Sua mãe não deveria tratá-la diferente, argumenta a moça, pois "o meio que os homens têm é o cérebro e eles não têm medo de usá-lo". Após o confronto, Mariam vai para Nova York e começa um relacionamento com o charmoso advogado solteirão Mark Whitney (Clark Gable), que a mantém financeiramente. Como naquela época ainda não existia o conceito de namorada como o entendemos hoje em dia, Mariam seria vista como uma "amante" caso a imprensa descobrisse sobre ela. E como o advogado possui pretensões políticas é melhor que ela aceite a discrição, o que lhe incomoda.

"Se eu fosse um homem, não te assustaria".
Mariam finalmente conseguiu realizar o seu sonho de inserir-se na alta sociedade, ainda que dependesse de um homem para isso. Afinal de contas, ainda eram os anos 1930. Mas a cena em que Mariam enfrenta o namorado que quer que ela se conforme com menos é um prenúncio do avanço da mentalidade feminina sobre os relacionamentos que estava por vir: as mulheres querem ser possuídas por um amor e não ser posse de um homem. Daí o título do filme, não no sentido de quem está na posse ou no poder de alguém, mas que é tomado pelo amor. Inclusive tive de pesquisar no dicionário os vários significados da palavra após assistir ao filme, pois o entendimento que eu fazia dela não combinava em nada com a história que eu tinha acabado de ver. (Pensei tratar-se, como no filme homônimo de 1947 com a mesma atriz, da história de uma mulher possuída pela loucura).

Mariam não é posse. Ela é livre dos homens. Por mais que ela ame Mark, não tem medo de seguir sua vida sem ele. Quando ela abandona-o, é impossível não pensar na máxima "se você ama alguém, deixe-o ir, se ele não voltar é porque nunca te amou". A relação entre Mariam e Mark não é uma de posse, embora ele sustente-a em segredo. Ela é um agente ativo da relação, sendo jamais mostrada como uma personagem passiva. Ela aceitou o arranjo porque queria os luxos que uma vida na alta sociedade poderia propiciar-lhe. No entanto, ela começa a amar o advogado, o que pode ficar na frente do projeto político dele — que incluía tratar os prisioneiros do Estado como seres humanos, outra questão avançada demais para 1931 e que mantém-se relevante em 2018. Quando Mark desiste da política para ficar com ela, Mariam se afasta dele.

"A reforma prisional envolve questões que estão fora dos
muros das prisões", diz Mark. Já se passaram quase 90 anos
dessa cena e as pessoas ainda não perceberam isso.
Mariam entende que Mark não pode ser posse exclusiva dela. É como se ela pensasse: "eu já consegui o meu sonho, agora deixa ele conquistar o dele" — que é, inclusive, um sonho que pode ser bom para a coletividade, o que torna seu gesto ainda mais altruísta. A heroína do filme entende que amar significa querer o melhor para o outro, mesmo que isso signifique nosso afastamento da pessoa amada. Ela é possuída pelo amor, mas não é escrava (posse) dele e se recusa que seu parceiro também o seja. Possuir, no outro sentido do dicionário, não tem nada a ver com amor; tem a ver com escravidão. E a escravidão psicológica, da qual Mariam se nega a ser perpetuadora, é terrível, pois nada te prende no plano físico e, ainda assim, você não é livre, pois se encontra preso no plano espiritual. Você até tenta se livrar de suas correntes invisíveis, mas não consegue, pois se sente seguro preso a elas.

Assim como Mariam, decidi não me deixar acorrentar por ninguém, nunca mais. Caso ocorra de aparecer um novo amor em minha vida, deixarei que ele me possua no sentido de me desfrutar; será uma relação de companheirismo e não de posse. Demorei vinte e tantos anos para descobrir o outro significado da palavra "possuir", que a maravilhosa roteirista Lenore Coffee já sabia em 1931, quando adaptou a peça The Mirage de Edgar Selwyn para este filme (escrevi sobre a importância do universo feminino ser escrito por mulheres nesse outro texto). Não sei se Mariam era incrivelmente liberta na peça — de 1920! — como o é no filme, mas sua versão para as telas acabou se tornando uma precursora do movimento feminista e me ajudou a perceber o quão errado eu estava em minhas pré-concepções sobre o amor. O que eu quero é ser possuído e não a posse de alguém. Já deveria saber disso, mas não tive acesso às representações mais corretas sobre o tema e nem aos exemplos mais sadios na vida real. Mas ainda estou no meu tempo. Antes tarde do que nunca quando se trata de descobrir as verdades da experiência humana saudável.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Poema: Saiba que (Para que continue a me amar)

Verso 1
Você me trouxe uma novidade
Obrigado, agradeço a sinceridade
Segundo você. as coisas mudaram
Faz sentido, pois as flores murcharam
Agora nossas chances se acabaram
O tempo passou
O amor terminou


Refrão
Mas saiba que vou procurar seu coração 
Em qualquer lugar aonde você o levar 
No frio e no escuro, no calor e no clarão 
Sua alma eu vou procurar 
Vou te enfeitiçar 
Para que continue a me amar

Verso 2
Por que você me procurou?
Foi por sua causa que tudo começou
Você me atraiu e você me tocou

Não deveria ter sido fácil ao me entregar
Afinal, eu não sei muito bem como jogar
Para que continue a me amar

Verso 3
Me dizem que hoje em dia funciona dessa maneira
Que agem uns com os outros como se fosse brincadeira
Mas eu não sou os outros

Antes que nos afastemos
Antes que nossa história descartemos

Refrão
Saiba que vou procurar seu coração 
Em qualquer lugar aonde você o levar 
No frio e no escuro, no calor e no clarão 
Sua alma eu vou procurar 
Vou te enfeitiçar 
Para que continue a me amar

Verso 4
Cantarei em línguas para te louvar
Viajarei pro campo para te lavrar
Vou no terreiro consultar meu orixá
Sem titubear, farei o que ele mandar
Para que continue a me amar


Verso 5
Em rei me proclamarei
E, que fique, ordenarei

Me transformarei num jogador
Para conseguir te satisfazer
Jogarei suas partidas com esplendor

E isso vai te satisfazer
Serei ainda mais belo e meu nome brilhará
E, assim, sua chama renascerá

Em ouro, vou me transformarPara que continue a me amar

segunda-feira, 12 de março de 2018

O país do tapa-sexo

Há algumas semanas, conforme o Brasil celebrava o carnaval — festa de origem pagã regada a muito sexo e álcool que precede o período de penitência da quaresma — a jornalista Eliane Brum conduziu uma extensa entrevista com o artista Wagner Schwartz. No final de setembro do ano passado, ele foi acusado de pedofilia ao se apresentar durante a abertura do 35° Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Durante a performance La Bête, inspirada em obra de Lygia Clark, o artista mantém-se nu no meio de um palco e convida a plateia a manipular seu corpo como se ele fosse um boneco. A performance gerou uma onda de ódio ao artista na internet após uma criança, levada pela mãe ao museu, ser filmada interagindo com o artista. Assim como havia acontecido anteriormente com a mostra Queermuseu, suspensa em várias cidades após ser acusada de promover a homossexualidade para menores de idade, boa parte do ódio contra Schwartz partiu de militantes do Movimento Brasil Livre (MBL).

Esse tipo de nudez não ofende a moral e os bons costumes
do Movimento Brasil Livre e de seus seguidores.
Em novembro, a polêmica chegou a níveis próximos do realismo fantástico. A CPI dos Maus Tratos à Criança e ao Adolescente do Senado Federal, que discutia os limites da arte e ouviu os curadores do Queermuseu, aprovou a condução coercitiva de Wagner Schwartz para depor no plenário. O artista foi alvo da medida arbitrária após declarar que não poderia participar voluntariamente da CPI por estar em turnê na França. Ele recorreu da decisão dos senadores no Supremo Tribunal Federal (STF) e teve sua condução coercitiva barrada pelo ministro Alexandre de Moraes. Para começo de conversa, os senadores nem deveriam estar discutindo qual o valor artístico de obras de arte num país onde a liberdade de expressão é cláusula pétrea da Constituição. Se as instituições estão funcionando normalmente desde o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, como insiste em dizer a presidenta do STF, então por que diabos os senadores agem como ditadores com artistas? Embora tenha feito, nesse caso, o papel de herói contra o avanço do fascismo, o próprio STF tem responsabilidade pelo acossamento de artistas.

Alexandre de Moraes, antes de assumir a cadeira deixada vaga pela suspeitíssima morte de Teori Zavascki, era o ministro da Justiça do governo golpista e vazou informações da Polícia Federal para o MBL. Alimentou o monstro que agora, para desviar o foco do governo de Michel Temer, o mais impopular da história do Brasil e talvez do mundo, empreende uma campanha a favor da moral e dos bons costumes nas apresentações artísticas. Mas nunca foi a intenção de tucanos como Alexandre de Moraes fomentar o fascismo à brasileira, que agora atinge níveis alarmantes. Eles patrocinavam grupos como o MBL para difundir, na sociedade, o discurso moralizante apenas da política. Foram ingênuos em achar que radicalizariam o brasileiro médio e que o ódio deste acabaria no momento em que o PT saísse do poder. Criaram o terreno para tipos como os presidenciáveis homofóbicos Jair Bolsonaro e Flávio Rocha. O PSDB, na ânsia de tirar o PT do poder, criou e alimentou uma onda fascista que agora vai contra a plataforma liberal do partido no campo dos costumes e que terá cada vez mais dificuldade de conter.

Uma invenção tipicamente brasileira.
A comoção proto-fascista gerada pelo MBL no segundo semestre do ano passado — muito útil para desviar o foco do presidente Michel Temer, que na época enfrentaria o julgamento da segunda denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal contra ele na Câmara dos Deputados — teria sido muito menor se Schwartz estivesse usando uma tanga ao invés de ter ficado completamente nu. Talvez ele não tivesse sido acusado de pedofilia. Ou então até tivesse sido, mas por um contingente bem menor de brasileiros "do bem" indignados com a suposta depravação moral presente nas artes. Inclusive penso que, se fosse esse o caso, muitos dos que acusaram-no de pedofilia teriam defendido-o, dizendo aos mais raivosos: "mas que bobeira, nem pelado ele estava". Mas, para o desespero geral da nação, o órgão genital do artista estava exposto. Como o desfile das escolas de samba do carnaval do Rio de Janeiro nos demonstra, o brasileiro médio aceita ver quase tudo em termos de nudez, desde que o sexo esteja estrategicamente escondido pelo bem das criancinhas. O MAM-SP deveria ter seguido o código da LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro), essa sim ciente da hipocrisia gritante que constitui a sociedade brasileira.

Mas por que a nudez se fez necessária na performance? Entendo-a como uma forma do artista mostrar-se vulnerável para o público, como se esse pudesse fazer o que bem entender com seu corpo. Afinal de contas, era essa a proposta de La Bête, não era mesmo? Schwartz escolheu apresentar-se nu porque pensou estar num país democrático que respeita a liberdade de expressão artística. Ingenuidade dele. Seu pênis — para ele ou para mim — é apenas mais um pedaço de pele e carne, não menos ofensivo do que um pé ou uma mão. Mas não o é para a maioria dos brasileiros, para os quais o MBL fala desde que os convenceu de que tudo o que o Brasil precisava era de um impeachment de base legal duvidosa, visto no exterior como um golpe frio, para nossas vidas melhorarem. A única intenção do coreógrafo com sua performance era provocar na plateia um questionamento sobre os limites do corpo humano e, também, gerar um sentimento de empatia. Ele queria que seu público pudesse enxergá-lo em sua vulnerabilidade e, assim, ser gentil ao manuseá-lo. Esse é um sentimento que o brasileiro médio, incitado por hordas fascistas como o MBL, não exercita há um bom tempo — se é que algum dia já o exercitou. 

Sim, o artista expôs seu pênis. E não cabe ao MBL ou à bancada evangélica do Congresso Nacional querer dizer a ele como ele deve se apresentar. O pênis é uma parte do corpo humano que pelo menos metade da nossa população — e mais da metade dos senadores — possui, não sendo mais sujo do que uma mão. Por que tanta hipocrisia ao lidar com ele? Será que nossa hipocrisia é tamanha que nossos representantes no Senado vão impor o uso de tapa-sexo nas apresentações feitas em museus e demais espaços mantidos com verba pública? Aliás, nada expõe tanto a hipocrisia do nosso país quanto o fato de termos inventado esse tipo de vestimenta. O tapa-sexo é uma invenção brasileira para que as escolas de samba burlassem a regra da LIESA que as impediam de mostrar nudez total na Marquês de Sapucaí. O regulamento foi baixado no começo dos anos 1990 depois de desfiles polêmicos organizados pelo carnavalesco Joãosinho Trinta. Mostrar o corpo é aceitável, desde que ele esteja milimetricamente coberto para não ofender pudores cristãos que insistem se impôr numa festa originalmente pagã e numa sociedade oficialmente laica.

A emissora evangélica, que exibe cenas como essa à tarde,
está preocupadíssima com a exibição de nudez para crianças.
A hipocrisia é tamanha que é possível ver corpos seminus até mesma na maior emissora evangélica do país, a Rede Record, que promoveu uma verdadeira cruzada contra artistas que ela mesma chamou de "degenerados" em seus programas jornalísticos à época do incidente no MAM-SP. Há anos a emissora em questão explora o trabalho de W. Veríssimo, especialista em pintar corpos nus, cujos órgãos genitais ele esconde com minúsculos tapa-sexos em sua programação, inclusive em programas transmitidos no horário em que crianças estão acordadas. Assim como luta por uma arte "oficial", o jornalismo no Brasil deixou se ser o simples relato de fatos para se transformar na criação de uma narrativa única. A mesma que tornou possível o impeachment sem base legal de uma presidenta eleita com mais de 50 milhões de votos sem maiores questionamentos por parte da população em geral. Também foi graças à existência de uma narrativa oficial, sem espaço para questionamentos, que Adolf Hitler pôde convencer os alemães de que existia uma "arte degenerada" (Entartete Kunst) em seu país e convencê-los a lutar contra ela.

Os curadores do Queermuseu, Wagner Schwartz e o MAM-SP desrespeitaram o código de conduta moral do brasileiro médio. Este aceita a seminudez presente nos desfiles das escolas de samba durante o carnaval e nas ondas da Globo ou da Record. A mulata pode se expôr para o deleite masturbatório do público, em especial aquele formado por homens brancos de meia-idade, desde que um tapa-sexo mantenha a sua decência milimetricamente coberta para não chocar as criancinhas que possam estar vendo aquele programa na televisão. Esse mesmo público, no entanto, se levantou contra o pênis de Schwartz, apresentado num espetáculo lúdico e sem qualquer caráter sexual. Além de não entender que o pênis é esteticamente menos aceito do que a vagina para o brasileiro médio, ele desrespeitou a regra do tapa-sexo — expressão maior da nossa hipocrisia — e foi punido por isso. Afinal, precisamos proteger nossos pequenos deixando-os na ignorância. Assim, perpetua-se o abuso sexual de crianças que não podem aprender na escola (sem partido), na televisão ou no museu o que são vaginas e pênis. O país do tapa-sexo condena a si mesmo à perpetuação da violência sexual devido à hipocrisia. E ainda diz que está fazendo isso para combater a pedofilia!

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

A democracia brasileira à beira do abismo


WASHINGTON — O estado de direito e a independência do judiciário são conquistas frágeis em muitos países — e suscetíveis a reveses bruscos.

Brasil, o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão, é uma democracia bastante jovem, tendo emergido de uma ditadura há apenas três décadas. Nos últimos dois anos o que poderia ter sido uma conquista histórica ― a autonomia outorgada pelo governo do Partido dos Trabalhadores para investigar e punir a corrupção estatal ― se transformou no seu oposto. Como resultado, a democracia brasileira agora está mais fraca do que em qualquer outro período desde o fim do regime militar.

Esta semana, essa democracia pode erodir-se ainda mais quando os três juízes de uma corte de apelação decidirem se a figura política mais popular do país, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores, será barrado de disputar a eleição presidencial de 2018 ou até mesmo preso.

O juiz Sérgio Moro demonstrou seu partidarismo em diversas
ocasiões, diz Weisbrot.
Não há muita pretensão de que a corte seja imparcial. O presidente do tribunal de apelação já louvou a decisão do juiz de sentença de condenar o Sr. da Silva por corrupção como "tecnicamente irrepreensível" e sua chefe de gabinete postou em sua página no Facebook uma petição a favor da prisão do Sr. da Silva.

O juiz de sentença, Sérgio Moro, demonstrou seu próprio partidarismo em diversas ocasiões. Ele precisou pedir desculpas à Suprema Corte em 2016 por revelar escutas telefônicas gravadas entre o Sr. da Silva e a presidente Dilma Rousseff, e seu advogado, e sua esposa, e seus filhos. O juiz Moro montou um espetáculo para a imprensa quando policiais apareceram na casa do Sr. da Silva e levaram-no para interrogatório — embora o Sr. da Silva tivesse dito que se apresentaria de maneira voluntária para ser interrogado.

As provas contra o Sr. da Silva estão bem abaixo do limite do que seria levado a sério, por exemplo, no sistema judiciário dos Estados Unidos.

Ele é acusado de ter aceitado propina de uma grande empresa de construção, a OAS, que foi processada como parte do esquema de corrupção no Brasil investigado através da "Lava-Jato". Este escândalo multibilionário trouxe à tona empresas pagando grandes propinas para funcionários da empresa petrolífera estatal Petrobras para obter contratos a preços altamente inflados.

A propina que supostamente foi recebida pelo Sr. da Silva foi um apartamento de propriedade da OAS. Mas não há nenhuma prova documental de que tanto o Sr. da Silva quanto sua esposa jamais receberam um título de propriedade, alugaram ou sequer ficaram no apartamento nem de que eles tentaram aceitar esse presente.

A evidência contra o Sr. da Silva baseia-se no depoimento de um executivo condenado da OAS, José Aldemário Pinheiro Filho, que teve sua sentença à prisão reduzida em troca de entregar evidências ao estado. Segundo reportagem do proeminente jornal brasileiro Folha de São Paulo, o Sr. Pinheiro teve seu acordo de delação bloqueado quando ele contou a mesma história que o Sr. da Silva sobre o apartamento. Ele também permaneceu cerca de seis meses detido antes de seu julgamento. (Isso é discutido no documento de sentença de 238 páginas.)

Mas essa evidência escassa foi o suficiente para o juiz Moro. Em algo que os americanos considerariam ser um processo judicial canguru¹, ele sentenciou o Sr. da Silva a nove anos e meio de prisão.

O estado de direito no Brasil já havia sofrido um golpe devastador em 2016, quando a sucessora do Sr. da Silva, a Sra. Rousseff, eleita em 2010 e reeleita em 2014, sofreu um impeachment e foi removida do cargo. A maior parte do mundo (e possivelmente do Brasil) acredita que ela foi destituída por causa da corrupção. Na verdade, ela foi acusada de uma manobra contábil que fez com que o deficit do orçamento federal parecesse temporariamente menor do que era de verdade. É algo que outros presidente e governadores haviam feito sem maiores consequências. E o próprio procurador-geral da República concluiu que não se tratava de um crime.

Ainda que houvessem políticos de partidos de todo o espectro político envolvidos em corrupção, incluindo o Partido dos Trabalhadores, não houveram denúncias de corrupção contra a Sra. Rousseff no processo de impeachment.

O Sr. da Silva permanece o líder na eleição de outubro devido a seu êxito e ao êxito de seu partido na reversão de um longo declínio econômico. De 1980 a 2003, a economia brasileira mal se quer cresceu, cerca de 0,2 por cento anualmente per capita. O Sr. da Silva tomou posse em 2003 e a Sra. Rousseff em 2011. Até 2014 a pobreza havia sido reduzida em 55 por cento e a extrema pobreza em 65 por cento. O salário mínimo real aumentou 76 por cento, os salários reais aumentaram 35 por cento, o desemprego atingiu recordes históricos para baixo e a infame desigualdade social do Brasil finalmente havia caído.

A direita aproveitou a recessão de 2014 para orquestrar um
golpe de estado parlamentar, segundo o colunista.
Mas em 2014 uma recessão profunda começou e a direita brasileira foi capaz de tirar vantagem do declínio para orquestrar o que muitos brasileiros consideraram um golpe parlamentar.

Se o Sr. da Silva for barrado de participar da eleição presidencial, o resultado poderá ter muito pouca legitimidade; assim como na eleição hondurenha de novembro que foi amplamente vista como roubada. Uma pesquisa de opinião pública do ano passado descobriu que 42,7 por cento dos brasileiros acreditam que o Sr. da Silva estava sendo perseguido pela mídia e pelo judiciário. Uma eleição pouco crível pode ser politicamente desestabilizadora.

Talvez, mais importante de tudo, o Brasil terá se reconstituído numa democracia eleitoral muito limitada, onde um judiciário politizado pode excluir um líder político popular de concorrer a um cargo público. Isso seria uma calamidade para os brasileiros, para a região e para o mundo.


Mark Weisbrot é co-diretor do Centro para Pesquisa Econômica e Política de Washington e presidente da Just Foreign Policy. É o autor de "Failed: What the ‘Experts’ Got Wrong About the Global Economy".

Uma versão desta coluna apareceu na versão impressa em 24 de janeiro de 2018, na página A10 da edição nacional sob a manchete: A democracia do Brasil encara um abismo.


¹ Um processo judicial canguru ou kangaroo court é, segundo o Wikcionário, "um procedimento judicial ou semi-judicial ou o grupo que conduz tal procedimento, que é feito sem a autoridade adequada, de maneira abusiva e injusta".

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Lula teria 1,6 milhões de votos a mais do que Dilma

A grande mídia adora encomendar pesquisas, mas nunca traduz direito para seu público os números que ela mesma encontra nessas sondagens. Talvez por que não seja do seu interesse fazer uma manchete dizendo "PSDB perde 24 milhões de eleitores em quatro anos". Pois bem, me propus a fazer o serviço que as redações dos grandes jornais não fazem com os dados que têm em mãos. Considerando a média das pesquisas Datafolha (29—30/11), DataPoder 360 (8—11/12) e Paraná Pesquisas (18—21/12), cheguei aos seguintes percentuais de intenção de voto em cada um dos principais candidatos à presidência da República em 2018:

Lula (PT): 30%
Bolsonaro (PSL): 20%
Marina (Rede): 8,5%
Alckmin (PSDB): 7%
Ciro (PDT): 5,5%

Outros nomes testados pelos institutos de pesquisas — como os do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa (sem partido), o do senador Álvaro Dias (Podemos), o do ministro da Fazenda Henrique Meirelles (PSDB), o do presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM) e o do coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto Guilherme Boulos (possível candidato do PSOL) — teriam, juntos, 11,7% dos votos. Isso faria com que uma média de 82,7% dos eleitores pesquisados decidissem pelo voto válido na próxima eleição. A soma de votos brancos e nulos e abstenções chegaria a 17,3% do eleitorado.

Faltou combinar com o povo. Apesar do fim do PT ter sido
anunciado diversas vezes, Lula teria 1,6 milhões de votos a
mais do que Dilma se a eleição fosse hoje.
E, por falar em eleitorado, foi preciso fazer uma estimativa deste para chegar ao número exato de votos que cada candidato a presidente teria caso a eleição de outubro ocorresse hoje. Em 2016, ano das últimas eleições municipais, o Brasil tinha 144.088.912 eleitores, segundo o Tribunal Superior Eleitoral. Este número cresceu 4% em relação àquele de 2014. Se o número de eleitores em 2018 também apresentar um crescimento de 4% em relação ao de 2016, teremos em nosso país, no próximo mês de outubro, 149.852.466 eleitores aptos a votar. Lembrando que este número é uma estimativa. Pode ser maior ou menor no dia da eleição, após os eleitores regularizarem (ou não) sua situação junto à Justiça Eleitoral.

Vamos então aos números. Se as pesquisas estiverem certas e as eleições fossem hoje, teríamos o seguinte resultado no primeiro turno:

Lula (PT): 44.955.740
Bolsonaro (PSC): 29.970.493
Marina (Rede): 12.737.459
Alckmin (PSDB): 10.489.673
Ciro (PDT): 8.241.886


Os demais candidatos teriam, juntos, 17.532.738 votos. Isso significa que 123.927.989 eleitores fariam sua escolha pelo voto válido, o que representaria 82,7% do eleitorado total. Votos brancos e nulos e abstenções seria a escolha de 25.924.477 eleitores ou 17,3% do total.

Fazendo a ressalva de que não é possível, pela metodologia de alguns dos institutos, diferenciar o voto nulo e branco da abstenção, teríamos o seguinte percentual de votos para cada candidato:

Lula (PT): 36,27%
Bolsonaro (PSL): 24,18%
Marina (Rede): 10,28%
Alckmin (PSDB): 8,46%
Ciro (PDT): 6,65%
Outros candidatos: 14,15%

Em relação ao primeiro turno de 2014, teríamos que o candidato do PT teria um percentual menor de votos do que Dilma Rousseff, mas ainda assim Lula teria 1,6 milhões de votos a mais do que Dilma. Marina Silva, por sua vez, reduziria se percentual de votos pela metade e teria 9,4 milhões de votos a menos do que em 2014. Já o candidato do PSDB apresentaria uma queda de 25 pontos em relação ao percentual obtido por Aécio Neves em 2014. Em números absolutos, Geraldo Alckmin teria 24,4 milhões de votos a menos do que o senador mineiro. Não é possível traçar um paralelo entre Ciro Gomes e Jair Bolsonaro, visto que seus partidos não lançaram candidatos em 2014.

Parece ter ocorrido uma pulverização do apoio às forças hegemônicas da política brasileira nos últimos 16 anos — mais acentuado no PSDB do que no PT. Isto se reflete pela grande quantidade de candidatos que se apresentam à população. Esta deve ser a eleição com mais candidatos desde o pleito de 1989, o primeiro após o fim da ditadura militar e que contou com 22 candidatos, inclusive o próprio Lula. Os candidatos de partidos menores conquistariam cerca de 17,5 milhões de votos se a eleição fosse hoje. Um aumento de quase 14 milhões em relação a 2014. Com mais candidatos na disputa, a abstenção e a soma de votos bancos e nulos deve cair, sendo a opção de 13 milhões a menos de eleitores brasileiros em 2018 em relação a 2014.

Num cenário de pulverização dos partidos tradicionais,
Jair Bolsonaro desponta em segundo lugar nas pesquisas.
Contanto, este é um retrato do cenário atual. Embora já tenha voltado suas baterias contra Lula, Bolsonaro e, mais recentemente, Ciro Gomes, a grande mídia ainda não começou sua tradicional campanha a favor do candidato do PSDB ou de qualquer outro partido liberal que lhe agrade ainda mais que o governador paulista Geraldo Alckmin. Este, por sua vez, demonstrou-se demasiadamente fraco no pleito de 2006, uma eleição que, segundo o relato de seu biógrafo Richard Bourne, o próprio Lula considerava perdida para o PSDB. Desanimado, o ex-presidente sequer engajou-se em sua própria campanha, tendo até mesmo faltado aos debates do primeiro turno na televisão.

De qualquer forma, estes dados são interessantes para a confirmação ou negação de algumas hipóteses que tem sido ventiladas desde o início da atual crise sociopolítica no país. A ascensão da extrema-direita de Jair Bolsonaro às custas dos liberais é uma delas. Tucanos e seus aliados atacaram as políticas do Estado brasileiro durante os 13 anos dos governos petistas, imaginando que colheriam os frutos disso, mas pavimentaram o caminho para reacionários que desejam ver implementado o conservadorismo não só na política econômica. O centro político — tanto a centro-esquerda representada pelo PT quanto a centro-direita representada pelo PSDB, passando pelo fisiologismo do PMDB — está em baixa e Bolsonaro parece ter tirado votos até mesmo da moderada Marina Silva. Antes, quem estava cansado da polarização PT—PSDB votava na centrista. Hoje, num precedente perigoso para a democracia brasileira, vota num radical de direita.

Mesmo com a desintegração de partidos e políticos tradicionais, exemplificado pela ascensão de Bolsonaro e diversos candidatos de partidos pequenos, o suposto fim do PT, anunciado diversas vezes na capa da Veja, parece estar longe de ocorrer. Escorado na figura de seu eterno líder, o partido ainda possui o potencial para conquistar quase 45 milhões de votos. Embora acossado por diversas denúncias e uma condenação na Lava Jato que pode lhe tirar da disputa, Lula teria 1,6 milhões de votos a mais do que Dilma se a eleição fosse hoje. Se a ascensão do fascismo ou o favoritismo do PT vão se manter uma vez que a campanha começar e a pregação pró-liberalismo da grande mídia e seus reprodutores nas redes sociais se intensificar são questões que só o tempo dirá. Entretanto, o cenário atual e com o qual políticos e militantes deveriam trabalhar, é o de uma disputa entre Lula e Bolsonaro no segundo turno.