quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

A democracia brasileira à beira do abismo


WASHINGTON — O estado de direito e a independência do judiciário são conquistas frágeis em muitos países — e suscetíveis a reveses bruscos.

Brasil, o último país do mundo ocidental a abolir a escravidão, é uma democracia bastante jovem, tendo emergido de uma ditadura há apenas três décadas. Nos últimos dois anos o que poderia ter sido uma conquista histórica ― a autonomia outorgada pelo governo do Partido dos Trabalhadores para investigar e punir a corrupção estatal ― se transformou no seu oposto. Como resultado, a democracia brasileira agora está mais fraca do que em qualquer outro período desde o fim do regime militar.

Esta semana, essa democracia pode erodir-se ainda mais quando os três juízes de uma corte de apelação decidirem se a figura política mais popular do país, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva do Partido dos Trabalhadores, será barrado de disputar a eleição presidencial de 2018 ou até mesmo preso.

O juiz Sérgio Moro demonstrou seu partidarismo em diversas
ocasiões, diz Weisbrot.
Não há muita pretensão de que a corte seja imparcial. O presidente do tribunal de apelação já louvou a decisão do juiz de sentença de condenar o Sr. da Silva por corrupção como "tecnicamente irrepreensível" e sua chefe de gabinete postou em sua página no Facebook uma petição a favor da prisão do Sr. da Silva.

O juiz de sentença, Sérgio Moro, demonstrou seu próprio partidarismo em diversas ocasiões. Ele precisou pedir desculpas à Suprema Corte em 2016 por revelar escutas telefônicas gravadas entre o Sr. da Silva e a presidente Dilma Rousseff, e seu advogado, e sua esposa, e seus filhos. O juiz Moro montou um espetáculo para a imprensa quando policiais apareceram na casa do Sr. da Silva e levaram-no para interrogatório — embora o Sr. da Silva tivesse dito que se apresentaria de maneira voluntária para ser interrogado.

As provas contra o Sr. da Silva estão bem abaixo do limite do que seria levado a sério, por exemplo, no sistema judiciário dos Estados Unidos.

Ele é acusado de ter aceitado propina de uma grande empresa de construção, a OAS, que foi processada como parte do esquema de corrupção no Brasil investigado através da "Lava-Jato". Este escândalo multibilionário trouxe à tona empresas pagando grandes propinas para funcionários da empresa petrolífera estatal Petrobras para obter contratos a preços altamente inflados.

A propina que supostamente foi recebida pelo Sr. da Silva foi um apartamento de propriedade da OAS. Mas não há nenhuma prova documental de que tanto o Sr. da Silva quanto sua esposa jamais receberam um título de propriedade, alugaram ou sequer ficaram no apartamento nem de que eles tentaram aceitar esse presente.

A evidência contra o Sr. da Silva baseia-se no depoimento de um executivo condenado da OAS, José Aldemário Pinheiro Filho, que teve sua sentença à prisão reduzida em troca de entregar evidências ao estado. Segundo reportagem do proeminente jornal brasileiro Folha de São Paulo, o Sr. Pinheiro teve seu acordo de delação bloqueado quando ele contou a mesma história que o Sr. da Silva sobre o apartamento. Ele também permaneceu cerca de seis meses detido antes de seu julgamento. (Isso é discutido no documento de sentença de 238 páginas.)

Mas essa evidência escassa foi o suficiente para o juiz Moro. Em algo que os americanos considerariam ser um processo judicial canguru¹, ele sentenciou o Sr. da Silva a nove anos e meio de prisão.

O estado de direito no Brasil já havia sofrido um golpe devastador em 2016, quando a sucessora do Sr. da Silva, a Sra. Rousseff, eleita em 2010 e reeleita em 2014, sofreu um impeachment e foi removida do cargo. A maior parte do mundo (e possivelmente do Brasil) acredita que ela foi destituída por causa da corrupção. Na verdade, ela foi acusada de uma manobra contábil que fez com que o deficit do orçamento federal parecesse temporariamente menor do que era de verdade. É algo que outros presidente e governadores haviam feito sem maiores consequências. E o próprio procurador-geral da República concluiu que não se tratava de um crime.

Ainda que houvessem políticos de partidos de todo o espectro político envolvidos em corrupção, incluindo o Partido dos Trabalhadores, não houveram denúncias de corrupção contra a Sra. Rousseff no processo de impeachment.

O Sr. da Silva permanece o líder na eleição de outubro devido a seu êxito e ao êxito de seu partido na reversão de um longo declínio econômico. De 1980 a 2003, a economia brasileira mal se quer cresceu, cerca de 0,2 por cento anualmente per capita. O Sr. da Silva tomou posse em 2003 e a Sra. Rousseff em 2011. Até 2014 a pobreza havia sido reduzida em 55 por cento e a extrema pobreza em 65 por cento. O salário mínimo real aumentou 76 por cento, os salários reais aumentaram 35 por cento, o desemprego atingiu recordes históricos para baixo e a infame desigualdade social do Brasil finalmente havia caído.

A direita aproveitou a recessão de 2014 para orquestrar um
golpe de estado parlamentar, segundo o colunista.
Mas em 2014 uma recessão profunda começou e a direita brasileira foi capaz de tirar vantagem do declínio para orquestrar o que muitos brasileiros consideraram um golpe parlamentar.

Se o Sr. da Silva for barrado de participar da eleição presidencial, o resultado poderá ter muito pouca legitimidade; assim como na eleição hondurenha de novembro que foi amplamente vista como roubada. Uma pesquisa de opinião pública do ano passado descobriu que 42,7 por cento dos brasileiros acreditam que o Sr. da Silva estava sendo perseguido pela mídia e pelo judiciário. Uma eleição pouco crível pode ser politicamente desestabilizadora.

Talvez, mais importante de tudo, o Brasil terá se reconstituído numa democracia eleitoral muito limitada, onde um judiciário politizado pode excluir um líder político popular de concorrer a um cargo público. Isso seria uma calamidade para os brasileiros, para a região e para o mundo.


Mark Weisbrot é co-diretor do Centro para Pesquisa Econômica e Política de Washington e presidente da Just Foreign Policy. É o autor de "Failed: What the ‘Experts’ Got Wrong About the Global Economy".

Uma versão desta coluna apareceu na versão impressa em 24 de janeiro de 2018, na página A10 da edição nacional sob a manchete: A democracia do Brasil encara um abismo.


¹ Um processo judicial canguru ou kangaroo court é, segundo o Wikcionário, "um procedimento judicial ou semi-judicial ou o grupo que conduz tal procedimento, que é feito sem a autoridade adequada, de maneira abusiva e injusta".

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Lula teria 1,6 milhões de votos a mais do que Dilma

A grande mídia adora encomendar pesquisas, mas nunca traduz direito para seu público os números que ela mesma encontra nessas sondagens. Talvez por que não seja do seu interesse fazer uma manchete dizendo "PSDB perde 24 milhões de eleitores em quatro anos". Pois bem, me propus a fazer o serviço que as redações dos grandes jornais não fazem com os dados que têm em mãos. Considerando a média das pesquisas Datafolha (29—30/11), DataPoder 360 (8—11/12) e Paraná Pesquisas (18—21/12), cheguei aos seguintes percentuais de intenção de voto em cada um dos principais candidatos à presidência da República em 2018:

Lula (PT): 30%
Bolsonaro (PSL): 20%
Marina (Rede): 8,5%
Alckmin (PSDB): 7%
Ciro (PDT): 5,5%

Outros nomes testados pelos institutos de pesquisas — como os do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa (sem partido), o do senador Álvaro Dias (Podemos), o do ministro da Fazenda Henrique Meirelles (PSDB), o do presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM) e o do coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto Guilherme Boulos (possível candidato do PSOL) — teriam, juntos, 11,7% dos votos. Isso faria com que uma média de 82,7% dos eleitores pesquisados decidissem pelo voto válido na próxima eleição. A soma de votos brancos e nulos e abstenções chegaria a 17,3% do eleitorado.

Faltou combinar com o povo. Apesar do fim do PT ter sido
anunciado diversas vezes, Lula teria 1,6 milhões de votos a
mais do que Dilma se a eleição fosse hoje.
E, por falar em eleitorado, foi preciso fazer uma estimativa deste para chegar ao número exato de votos que cada candidato a presidente teria caso a eleição de outubro ocorresse hoje. Em 2016, ano das últimas eleições municipais, o Brasil tinha 144.088.912 eleitores, segundo o Tribunal Superior Eleitoral. Este número cresceu 4% em relação àquele de 2014. Se o número de eleitores em 2018 também apresentar um crescimento de 4% em relação ao de 2016, teremos em nosso país, no próximo mês de outubro, 149.852.466 eleitores aptos a votar. Lembrando que este número é uma estimativa. Pode ser maior ou menor no dia da eleição, após os eleitores regularizarem (ou não) sua situação junto à Justiça Eleitoral.

Vamos então aos números. Se as pesquisas estiverem certas e as eleições fossem hoje, teríamos o seguinte resultado no primeiro turno:

Lula (PT): 44.955.740
Bolsonaro (PSC): 29.970.493
Marina (Rede): 12.737.459
Alckmin (PSDB): 10.489.673
Ciro (PDT): 8.241.886


Os demais candidatos teriam, juntos, 17.532.738 votos. Isso significa que 123.927.989 eleitores fariam sua escolha pelo voto válido, o que representaria 82,7% do eleitorado total. Votos brancos e nulos e abstenções seria a escolha de 25.924.477 eleitores ou 17,3% do total.

Fazendo a ressalva de que não é possível, pela metodologia de alguns dos institutos, diferenciar o voto nulo e branco da abstenção, teríamos o seguinte percentual de votos para cada candidato:

Lula (PT): 36,27%
Bolsonaro (PSL): 24,18%
Marina (Rede): 10,28%
Alckmin (PSDB): 8,46%
Ciro (PDT): 6,65%
Outros candidatos: 14,15%

Em relação ao primeiro turno de 2014, teríamos que o candidato do PT teria um percentual menor de votos do que Dilma Rousseff, mas ainda assim Lula teria 1,6 milhões de votos a mais do que Dilma. Marina Silva, por sua vez, reduziria se percentual de votos pela metade e teria 9,4 milhões de votos a menos do que em 2014. Já o candidato do PSDB apresentaria uma queda de 25 pontos em relação ao percentual obtido por Aécio Neves em 2014. Em números absolutos, Geraldo Alckmin teria 24,4 milhões de votos a menos do que o senador mineiro. Não é possível traçar um paralelo entre Ciro Gomes e Jair Bolsonaro, visto que seus partidos não lançaram candidatos em 2014.

Parece ter ocorrido uma pulverização do apoio às forças hegemônicas da política brasileira nos últimos 16 anos — mais acentuado no PSDB do que no PT. Isto se reflete pela grande quantidade de candidatos que se apresentam à população. Esta deve ser a eleição com mais candidatos desde o pleito de 1989, o primeiro após o fim da ditadura militar e que contou com 22 candidatos, inclusive o próprio Lula. Os candidatos de partidos menores conquistariam cerca de 17,5 milhões de votos se a eleição fosse hoje. Um aumento de quase 14 milhões em relação a 2014. Com mais candidatos na disputa, a abstenção e a soma de votos bancos e nulos deve cair, sendo a opção de 13 milhões a menos de eleitores brasileiros em 2018 em relação a 2014.

Num cenário de pulverização dos partidos tradicionais,
Jair Bolsonaro desponta em segundo lugar nas pesquisas.
Contanto, este é um retrato do cenário atual. Embora já tenha voltado suas baterias contra Lula, Bolsonaro e, mais recentemente, Ciro Gomes, a grande mídia ainda não começou sua tradicional campanha a favor do candidato do PSDB ou de qualquer outro partido liberal que lhe agrade ainda mais que o governador paulista Geraldo Alckmin. Este, por sua vez, demonstrou-se demasiadamente fraco no pleito de 2006, uma eleição que, segundo o relato de seu biógrafo Richard Bourne, o próprio Lula considerava perdida para o PSDB. Desanimado, o ex-presidente sequer engajou-se em sua própria campanha, tendo até mesmo faltado aos debates do primeiro turno na televisão.

De qualquer forma, estes dados são interessantes para a confirmação ou negação de algumas hipóteses que tem sido ventiladas desde o início da atual crise sociopolítica no país. A ascensão da extrema-direita de Jair Bolsonaro às custas dos liberais é uma delas. Tucanos e seus aliados atacaram as políticas do Estado brasileiro durante os 13 anos dos governos petistas, imaginando que colheriam os frutos disso, mas pavimentaram o caminho para reacionários que desejam ver implementado o conservadorismo não só na política econômica. O centro político — tanto a centro-esquerda representada pelo PT quanto a centro-direita representada pelo PSDB, passando pelo fisiologismo do PMDB — está em baixa e Bolsonaro parece ter tirado votos até mesmo da moderada Marina Silva. Antes, quem estava cansado da polarização PT—PSDB votava na centrista. Hoje, num precedente perigoso para a democracia brasileira, vota num radical de direita.

Mesmo com a desintegração de partidos e políticos tradicionais, exemplificado pela ascensão de Bolsonaro e diversos candidatos de partidos pequenos, o suposto fim do PT, anunciado diversas vezes na capa da Veja, parece estar longe de ocorrer. Escorado na figura de seu eterno líder, o partido ainda possui o potencial para conquistar quase 45 milhões de votos. Embora acossado por diversas denúncias e uma condenação na Lava Jato que pode lhe tirar da disputa, Lula teria 1,6 milhões de votos a mais do que Dilma se a eleição fosse hoje. Se a ascensão do fascismo ou o favoritismo do PT vão se manter uma vez que a campanha começar e a pregação pró-liberalismo da grande mídia e seus reprodutores nas redes sociais se intensificar são questões que só o tempo dirá. Entretanto, o cenário atual e com o qual políticos e militantes deveriam trabalhar, é o de uma disputa entre Lula e Bolsonaro no segundo turno.