quarta-feira, 2 de novembro de 2016

USexit

Algo surpreendente tem acontecido nos Estados Unidos. Segundo a média das últimas quatro pesquisas (Rasmussen, YouGov/Economist, IBD/TIPP e ABC News/Washington Post) para a eleição presidencial, que ocorre na próxima terça-feira, 8 de novembro, a democrata Hillary Clinton tem 45% das intenções de voto e o republicano Donald Trump tem 44,25%. Gary Johnson, do Partido Libertário, tem 4% e a Dra. Jill Stein, do Partido Verde, tem 2%. Mesmo na única pesquisa em que ainda lidera, a YouGov, Hillary encontra-se em situação de empate técnico com o adversário republicano, ou seja, dentro da margem de erro. O mercado tem reagido negativamente à ascensão de Trump na reta final da campanha. Os pregões da NASDAQ, da S&P e da Dow Jones fecharam em queda nos dois últimos dias. A disputa pela presidência dos EUA também tem causado uma desvalorização do dólar frente às moedas nacionais, embora o Governo Temer deva estar dizendo nas redes sociais que o real se valorizou graças a seus esforços de retomar o crescimento econômico.

É justo culpar os pobres por estarem desesperados por mudança?
Mas o que explica essa arrancada de Trump agora, na reta final da campanha, uma vez que todos os veículos de comunicação previam uma vitória tranquila da candidata democrata até duas semanas atrás? Tenho uma teoria bastante razoável para isso, baseada na minha observação da campanha do referendo que decidiria a continuação do Reino Unido na União Europeia. Como todos nós sabemos, o "Brexit" (a saída da Grã-Bretanha da UE) venceu. No entanto, poucos previam isso até a semana da votação. Minha teoria é que os eleitores "saíram do armário" e declararam sua posição só na reta final da campanha, momentos antes da votação. Além disso, muitos sequer se dão ao trabalho de ir votar, confiantes da vitória de sua opção. Assim como nos EUA, votar não é obrigatório no Reino Unido e não provoca nenhuma penalidade de âmbito legal. Assim sendo, parte dos eleitores, confiantes na vitória de seu candidato ou de sua causa, sequer sai de casa no dia da eleição. Outros farão o "serviço sujo" de votar em Hillary Clinton ou no Remain a member of the European Union para eles.

Essa decisão de última hora dos eleitores se vão votar ou não acaba se refletindo nas pesquisas de opinião. Há, nos EUA, dois tipos de pesquisa. Aquelas realizadas com quem está apto a votar (registered voters — RVs) e aquelas feitas com quem diz que vai votar (likely voters — LVs). O número de LVs é variável e as últimas pesquisas levam em consideração apenas a intenção de voto desse grupo demográfico. Há duas hipóteses que explicam a ascensão de Trump e a queda de Hillary nas pesquisas mais recentes: um contingente grande de RVs está virando LVs para votar em Trump ou um número significativo de LVs que declaravam voto em Hillary está virando RVs. Mas o que teria levado-os ao desencanto com sua candidata? Em parte, aquilo que a mídia vem chamando de October suprise. A "surpresa de outubro" foi a decisão do FBI de retomar as investigações sobre os mais de 16.000 e-mails que Hillary enviou, enquanto secretária de Estado (muitos deles deletados), usando um servidor privado, em violação às diretrizes oficiais do governo norte-americano.

Hillary reagiu da pior maneira possível. Assim como Trump reage às denúncias atacando a credibilidade de seus críticos, a democrata colocou em xeque a parcialidade de James Comey, o diretor-geral da polícia federal dos EUA, nomeado ao cargo em 2013 por seu ex-chefe e maior cabo eleitoral, o atual presidente Barack Obama. A investigação dos e-mails ressurgiu após a denúncia de que o ex-congressista Anthony Weiner, marido de Huma Abedin, assistente de campanha de Hillary, teria utilizado o tal servidor privado para enviar "nudes" para uma jovem de 15 anos de idade. Sempre que o assunto dos e-mails privados de Hillary ressurge na mídia, a disposição do eleitorado em apoiá-la cai. A omissão de verdade praticada por Hillary fazem os eleitores se lembrarem das mentiras de Bill Clinton, a mais famosa das quais quase lhe custou o cargo de presidente. É nessa hora que os eleitores em potencial da democrata deixam de ser LVs e passam a ser apenas RVs. É nessa hora também que os eleitores de Trump sentem-se empoderados para sair do armário.

Antigo Parque Industrial de Detroit, destruído pelo NAFTA.
Mas por que as pessoas votam em Trump para começo de conversa? Por mais que a mídia alerte para os riscos de colocá-lo na Casa Branca, os norte-americanos mais pobres estão cansados do neoliberalismo e sentem que não têm mais nada a perder. A base do eleitorado de Trump é justamente a classe baixa branca, que ficou ainda mais empobrecida nos últimos 20 anos. Votar em Trump ou no "Brexit" é, para as pessoas comuns, votar contra pessoas e causas que representam o modelo econômico que lhes castiga. Nos EUA de 2016, o trumpismo é o movimento que melhor incorpora o antiliberalismo. A culpa é do eleitorado se ele rejeita o neoliberalismo e se a candidata do campo progressista é justamente a esposa do cara que, nos anos 1990, assinou o NAFTA? O NAFTA, ou tratado de livre-comércio da América do Norte, para quem não sabe, fez com que milhares de empregos na indústria americana migrassem para o México, onde é bem mais barato contratar um empregado. A culpa não é do eleitorado por querer romper com esse modelo econômico e ver em Trump a única alternativa a isso.

Embora agora diga-se contrária ao Tratado Transpacífico (TTP), Hillary apoiava o projeto do presidente Obama de expandir a área de livre-comércio dos EUA até meados do ano passado, quando o senador Bernie Sanders entrou na disputa para ser o candidato democrata à presidência. Assim sendo, sua oposição a práticas neoliberais não inspira confiança no eleitorado. Havia, dentro do Partido Democrata, uma alternativa ao neoliberalismo que inspirava o eleitorado mais jovem e que derrotaria Trump com uma vantagem de mais de dez pontos percentuais, mas ela foi minada pela própria direção do partido, que jogou a democracia interna às favas, e agiu como bunker de campanha de Hillary Clinton. Mesmo com vergonha, as pessoas votam em Trump ou no "Brexit" porque elas estão desesperadas com as opções que a política tradicional apresenta-lhes. Trump, assim como Sanders, apresenta-se como forasteiro dos grandes partidos. Ele foi repudiado, inclusive, por Mitt Romney, candidato republicano à presidência em 2012.

Às vezes, na ânsia de ficarmos livre de algo ruim, damos
poder a algo ainda pior.
Assim como os britânicos rejeitaram a União Europeia por enxergarem nela o símbolo do modelo econômico que penaliza-lhes, enquanto concentra renda em 1% da população, o mesmo ocorre com a rejeição a Hillary Clinton. Claro que ela tenta se afastar das medidas econômicas de Bill, mas o sobrenome é o mesmo e evoca muitas lembranças. Tanto que, para se defender das acusações de assédio sexual que surgiram há duas semanas, quando sua campanha já era dada por encerrada, Trump relembrou o longo histórico de acusações contra o ex-presidente. O fato é que a eleição do magnata dos imóveis, caso se confirme, será a versão norte-americana do "Brexit". Atrapalhadamente, os EUA terão dito não ao modelo neoliberal. O "USexit", assim como seu paralelo do outro lado do Atlântico, terá muitos de seus partidários arrependidos logo após a votação. Às vezes, na ânsia de ficarmos livres de algo ruim, damos poder a algo ainda pior. Os brasileiros que estavam batendo panela até abril e que agora encontram-se num silêncio de vergonha sepulcral, que o digam.

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