Acabei de assistir ao terceiro episódio da primeira temporada do seriado antológico futurista Black Mirror e, como sempre, sinto um gosto amargo na boca, como se tivesse levado um murro na cara. Na história todas as pessoas — ou pelo menos a maioria delas — possuem um dispositivo inserido atrás da orelha que grava suas memórias, que, depois, podem ser reproduzidas, via bluetooth, em aparelhos televisores. A tecnologia, chamada de "memória granular", permite rever tudo aquilo que vivemos, seja para aperfeiçoar-se ou obcecar-se por fatos que já ocorreram. Assim faz Liam, recém-chegado de uma mal-sucedida entrevista de emprego em outra cidade e que começa a ficar obcecado por uma cena que viu numa festa: a esposa Ffion num canto, conversando com outro homem.
Pressionada, a esposa confessa que o homem em questão, Jonas, é um ex-namorado dela. As horas vão passando e Liam fica cada vez mais obcecado. Confrontada com a memória do marido, para quem ela havia dito que o relacionamento em questão durou apenas poucas semanas, ela termina confessando que ele na verdade durou 6 meses. A obsessão crescente de Liam o faz procurar o ex-namorado da esposa para obrigar-lhe a apagar todas memórias que ele tinha de Ffion. É nesse momento que ele descobre, acidentalmente, que Jonas manteve um caso com Ffion recentemente. Ele confronta a esposa que, arrependida, confessa-lhe o adultério. Por insistência do marido, ela mostra-lhe as cenas da traição gravadas em sua memória granular. Isso acaba com o casamento deles.
Foi nesse momento que o seriado britânico tronou-se dolorosamente pessoal para mim. Meu casamento terminou porque eu descobri, através do celular do meu companheiro, que ele estava tendo um caso. No momento em que tentei invadir a privacidade dele, senti-me estúpido. Deixei para lá e dei-lhe minha confiança. Entretanto, quando fui pesquisar algo no Google, vi o nome de uma pessoa que eu não fazia a mínima ideia de que era — o amante dele — entre os itens pesquisados recentemente. Quando finalmente consegui invadir o celular dele, encontrei uma extensa conversa dele com a tal pessoa no WhatsApp, não só planejando a traição como convidando o cara para ir no aniversário de uma prima dele. Revisitei aquele dia na minha memória e percebi que ele me chamou para ir nessa festa após o rapaz negar o convite dele.
O que se seguiu nos próximos meses foi parecido com o que Liam viveu no episódio, embora de maneira menos dolorida. Revisitei minhas memórias — felizmente na minha cabeça mesmo, e não numa televisão — para ficar tentando descobrir o que deu errado. Em que momento o relacionamento desandou, quando ele deixou de me amar, eu poderia ter feito alguma coisa para evitar que ele me traísse... Eram perguntas que eu tentava desesperadamente responder, com a ajuda da minha memória. Torturava-me ao ponto de dizer para as pessoas que seria bom se eu pudesse fazer como o personagem de Jim Carrey em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças e apagar todas as minhas memórias com aquela pessoa. Com o tempo, aprendi que relacionamentos se desgastam pelos mais variados motivos e que cada um reage de uma forma a isso.
Liam retirando a memória granular de si mesmo. |
O fato é que, queiramos ou não, nossas memórias estão gravadas por todos os lugares e isso tem dificultado não só os relacionamentos como o término dos mesmos. Hoje podemos vasculhar a vida de nossos parceiros no Facebook, no Instagram, no Twitter e no WhatsApp e isso nos tornou desconfiados por natureza. Por outro lado, a facilidade com que podemos encontrar — e descartar — pessoas novas na era digital transformou-nos todos em traidores em potencial. Mas a culpa disso, para o bem ou para o mal, não é da tecnologia. Trai quem quer. A tecnologia é neutra. Por mais escravos que possamos ser das novas tecnologias, ainda possuímos livre-arbítrio. O coração não é um aplicativo. E a escolha de entregá-lo para uma só pessoa ainda é única e exclusivamente de cada um de nós.
No final do episódio, Liam decide arrancar o dispositivo da orelha para não mais lembrar-se da ex-esposa. É uma decisão corajosa. Ao mesmo tempo em que não vai mais sofrer ao lembrar de cada instante que passou com uma pessoa a quem amou muito e que lhe decepcionou, cria a possibilidade de fazer tudo diferente da próxima vez. Quero o mesmo para mim. Não quero mais ficar suspeitando de cada passo da pessoa a quem eu escolhi dar meu coração. Quero confiar nela. Não quero dar a mínima para o que ela esteja escrevendo nas mensagens privadas do Facebook, do Instagram e do Twitter. Não quero saber das mensagens que ela troca no WhatsApp ou do que ela pesquisa no Google. Quero confiar nas pessoa, tendo motivos para tal. Quem quer saber de tudo pode não estar pronto para tamanha responsabilidade.