segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Não vou desistir

Ontem parei para pensar em todas as vezes que as pessoas me prometeram uma relação de cumplicidade e, no final das contas, me decepcionaram. Será que isso não justificaria a enorme dificuldade que tenho em fazer amizades e confiar nas pessoas? Será que isso não justificaria minha descrença no amor? Porque não são poucos os exemplos. O primeiro vem da minha avó. E não foi nada que ela tenha feito. Foi aquilo que ela não fez. Foram várias as oportunidades que dei a ela para termos relacionamento de avó e neto. Ela fazia questão da minha presença em sua vida, mas quando eu estava por perto, ela preferia dar atenção a outras coisas. Quando eu percebi que jamais teria o tipo de relacionamento que eu buscava, simplesmente parei de frequentar a casa dela. Por que eu me colocaria numa situação frustrante – e por vezes constrangedora – sendo que no final das contas não iria conseguir aquilo que eu buscava? Ela achava que poderia compensar a falta de atenção com dinheiro. Isso pode até funcionar para os outros netos, mas prefiro não me vender para ninguém. Assim sendo, há uma década não frequento mais a casa dela.

Na faculdade, passei não por uma – mas por duas situações semelhantes. Primeiro foi com uma menina um pouco mais nova e um tanto imatura emocionalmente. A gente se falava todo santo dia, fosse na faculdade ou no MSN Messenger. Passávamos horas a fio conversando, confidenciando segredos e compartilhando experiências. Quando meu avô morreu depois de passar semanas em coma num hospital como consequência de um atropelamento, ela se virou contra mim. E o motivo para isso não foi nada que eu fiz. Foi aquilo que eu não fiz. Vejam só: meu avó morreu no sábado de aleluia de 2009 e, quando eu fui à aula na segunda-feira – após a insistência da minha mãe e única e exclusivamente para fazer uma prova – ela me deu um ovo de Páscoa. Não dei conta de ter a reação de alegria que ela esperava de mim e, por causa disso, ela se voltou contra mim. Mesmo após eu ter tentado consertar as coisas comprando um ovo para ela também. De qualquer forma, não fiquei muito chateado com a situação após ter descoberto que ela faz isso com todo mundo.

Aborto foi o motivo para ela
pôr fim a nossa amizade. Ou
teria sido o pretexto?
Após o afastamento dela, passei a me relacionar mais com outra amiga nossa. Por vezes sentia-me um pouco explorado em nosso relacionamento, principalmente quando fazíamos trabalho em grupo, mas não ligava muito, pois é isso que amigos fazem, né? Ajudam uns aos outros porque sabem que, na hora de retribuir serão correspondidos. No entanto, ela não só nunca me correspondeu como ainda me cortou da vida dela por um motivo ainda mais ridículo do que a outra colega. Sempre deixei claro a ela – uma espírita fervorosa – que sou a favor do direito de escolha da mulher no que diz respeito ao aborto. Certo dia, no Facebook, o namorado dela entrou numa publicação da minha mãe sobre o tema e começou a bater boca com ela. No calor do momento, minha mãe excluiu-o de sua lista de amigos. Crime mortal para essa "amiga" minha, uma vez que ela só acredita em duas coisas na vida dela: na inviolabilidade da doutrina espírita e na infalibilidade do namorado (atualmente marido) dela. Confesso que até hoje tenho dificuldade em aceitar o espiritismo por causa dela, a única espírita fanática que conheci.

Depois disso veio o grande amor da minha vida, aquele que iria durar para sempre só que acabou pouco menos de dois anos após começar. Não sei porque infernos eu achava que tinha a obrigação de arranjar um namorado após ter saído do armário. Ao invés de aproveitar a liberdade recém- descoberta e viver as situações que eu não tive a oportunidade de viver durante a adolescência, fui caçar um namorado. Quatro meses após ter saído do armário já estava com um amor eterno. Um jovem doce e ingênuo. Ele tinha 18 anos e eu 22. Só quatro anos de diferença. Quatro anos que fizeram toda a diferença. Quando o conheci, ele trabalhava e fazia faculdade de Direito. Em pouco tempo, teria largado ambos. Como fazia com todo emprego que conseguia. Pelo menos ele ainda estuda, eu dizia a mim mesmo, sem me ligar para o fato de que ele havia trocado a faculdade de Direito por uma que não dá muito futuro. O relacionamento dele com sua família não era dos melhores; não era aceito pelo pai, era ignorado pela mãe e sabotado pelo padrasto. Logo me vi assumindo o papel de família dele.

Quando o relacionamento parou de me satisfazer, busquei viver todas as experiências que não vivi na adolescência. Teria sido melhor acabar de uma vez, mas continuei empurrando o relacionamento com a barriga por mais um ano. Pedia perdão pelos meus desvios e ele aceitava por conveniência, pois não queria voltar para a casa da mãe. Eu queria que desse certo, afinal de contas, era o meu primeiro homem eu o amava. E pensava que ele me amava também. No entanto, ele estava comigo mais pelas coisas boas que eu lhe proporcionava do que por qualquer outro motivo. Ele amava a atenção que ele não recebia na casa da mãe, as saídas para almoçar ou jantar, as idas ao cinema e as noitadas em boates. Certo dia, senti que ele estava escondendo algo de mim. Não queria me beijar. Não queria sequer que eu chegasse perto dele. Vasculhei o celular dele e descobri não só que ele havia me traído como estava apaixonado por outra pessoa. Eu estava tão esgotado emocionalmente que nem tive coragem de terminar com ele. Minha mãe ligou para a mãe dele e pediu que ela fosse tirar ele e as coisas dele lá de casa.

Depois disso, entrei numa depressão profunda que eu me recusava a reconhecer e tratar. A vida parou de fazer sentido. E isso perdurou enquanto eu ainda nutria a possibilidade de me reunir com essa pessoa que não me amava mais e que eu descobri mais tarde que fazia um esforço tremendo para esfregar na minha cara que estava bem. Foi preciso cortar os laços com ele. Mas isso não melhorou as coisas. Passei a buscar o afeto nos lugares mais improváveis possível e parei de me cuidar. Parecia-me, então, que o único amor verdadeiro que existia era o amor de mãe. Minha mãe, ao contrário de todos as outras pessoas, não desistiu de mim por um segundo. Depois de muita insistência dela, procurei ajuda e hoje estou bem melhor, emocional, mental e espiritualmente. De fato é o melhor amor que eu recebo. Minha mãe é a única pessoa nesse mundo que me ama sem exigir nada em troca. Esse sim é o amor eterno que tenho e que terei em minha vida. Uma pena ter sido preciso chegar ao fundo do poço para perceber isso.

Barry e Will.
Sim, é verdade que jamais haverá alguém que me amará como minha mãe. Entretanto, tive uma epifania há alguns dias enquanto assistia a um episódio de Will & Grace que, conforme afirmei anteriormente, foi minha primeira referência cultural enquanto adolescente gay nos anos 1990-2000. No episódio em questão, Will e Jack são incumbidos por Karen de ajudar o primo dela, Barry, um trintão introvertido que acabou de sair do armário, a se incorporar na comunidade LGBT de Nova York. Em determinada cena, eles estão numa boate gay e, ao falarem que Barry é ridículo, recebem a seguinte resposta do mesmo: "Vocês me chamam de patético, mas olhem para vocês. Tudo o que vocês se importam são com coisas superficiais. Eu não saí do armário para isso. Saí do armário para conhecer um cara e me apaixonar. E vocês, o que têm a me ensinar? Saíram do armário 15 anos antes de mim e ambos estão sozinhos. Quem é o patético?". Essas palavras me atingiram como um raio.

A minha maior motivação para ter saído do armário há 4 anos foi justamente essa! Não saí do armário para me refugiar em sexo casual ou para me preocupar com a carreira da Madonna sem ser intimidado. Tampouco saí do armário para afrontar alguém ou para me preocupar apenas com futilidades. Saí para ser eu mesmo e encontrar alguém que me ache interessante o suficiente para querer passar sua vida comigo. Se vai ser o resto da vida ou alguns anos realmente importa? Tenho 25 anos e já passei pela experiência de um casamento desfeito. Mas e daí? Isso realmente é o fim do mundo? Há pessoas que nem isso têm para contar. E acham que têm algo a ensinar para mim. Assim como Barry, prefiro ser acusado de ser patético por ter tentado buscar um relacionamento do que por nunca ter tentado. Mesmo que leve outros 25 anos para encontrar alguém que me ame por aquilo que sou e não por aquilo que posso oferecer, não vou desistir de procurar. Não posso ser covarde ao ponto de usar as experiências negativas do passado como um escudo contra o futuro.

sábado, 29 de agosto de 2015

Desculpe, mas por que Jesus é branco?

5 de janeiro de 2015

Enquanto criança, frequentei escolas cristãs. Essas instituições eram boas. Os professores eram duros, mas atenciosos. Me lembro de uma Sra. Lobo que constantemente tentava me despertar para os estudos. Ela e minha mãe ambas ficavam frequentemente decepcionadas comigo porque eu falta às aulas para brincar. Uma vez eu saí de uma prova na metade porque eu estava entediado. Tanto a Sra. Lobo quanto minha mãe ficaram muito aflitas. Numa determinada ocasião, provoquei ainda mais dor à Sra. Lobo.

Durante o culto na igreja, de manhã, aprendemos que Jesus nasceu em Belém. De volta à escola, eu perguntei à Sra. Lobo onde ficava Belém no mundo. Ela respondeu: Palestina. Naqueles dias, as fotos de Yasser Arafat, chefe da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), frequentemente apareciam nos jornais indianos. Meu pai deve ter me mostrado uma foto de Arafat e mencionado para de onde ele vinha. Então, eu proferi: "Desculpa, senhora, mas por que Jesus é branco? Por que ele não se parece com Yasser Arafat?". É suficiente dizer que a Sra. Lobo não conseguiu responder à pergunta.


Os conquistadores carregam a cruz

No primeiro dia de 2015, não pude deixar de observar que a matéria mais lida no site do The Economist era "Na trilha de Hernán Cortés". O correspondente traçou a jornada de cinco séculos atrás de Cortés e escreveu um relato esplêndido do conquistador. Como era de se esperar de uma publicação nascida no auge do Império Britânico, a matéria narra um conto triunfante:

"Foi aqui onde uma das maiores expedições militares da História começou: A marcha de Hernán Cortés em 1519-20 do Golfo do México até Tenochtitlán, sede do Império Azteca. Os historiadores ligam-na à conquista da Gália por Júlio César. Seu protagonista, um astuto de 34 anos de idade com quase nenhuma experiência militar, liderou cerca de 500 homens e apenas uma dúzia de cavalos em territórios cujos guerreiros sanguinários excediam em número os seus. Ele explorou fervilhantes rivalidades tribais para conquistar uma civilização—embora com a ajuda da pólvora, da varíola e de sua astuta amante índia. Por vezes, ele se valida da injúria; em outras, da crueldade. Ele mantinha um olhar em seu lugar na História—e também nas mulheres. Seus soldados não apenas subjugaram os povos que conquistaram. Desde o início, eles se misturaram com os índios também, criando uma raça mista através da mestiçagem, com uma língua e uma religião próprias que definem o México atualmente".

A conquista definiu a história da humanidade, mas o que é mais interessante na matéria do The Economist é a história sobre o episódio em que Cortés recebeu oito nobres como escravas. Ele só estava disposto a aceitar o presente se o rei se tornasse cristão primeiro. Gêngis Khan saqueou, pilhou, estuprou e massacrou, mas não teve a arrogância de salvar as almas dos conquistados. Ele não era santimonial como os homens brancos da Europa que foram conquistar terras estrangeiras em nome do ouro e de Deus.

Eu nasci em Vasco da Gama, uma cidade portuária nomeada em honra ao explorador português que velejou para a Índia em 1498. Ele é glorificado como um herói épico em Os Lusíadas, um clássico português, e há uma igreja que leva seu nome em Kochi. O que é convenientemente esquecido sobre ele é o fato de que ele matava por prazer e uma vez queimou 400 peregrinos muçulmanos que estavam a caminho de Meca. Nem mesmo as mulheres foram poupadas. Seus esforços de oferecer as joias em troca da vida não funcionou. Mesmo quando elas levantaram seus bebês e imploraram por misericórdia, o bom e velho Vasco não se sensibilizou. Ele queria encontrar cristãos na Índia para destruir o Islã.

As igrejas na América Latina e em Goa foram construídas pelos espanhóis e pelos portugueses. O cristianismo foi imposto pelo tambor da arma, embora os missionários tenham tido um papel significativo. Tanto os espanhóis quanto os portugueses perseguiam não só as outras religiões como os cristãos não-católicos. Hoje as pessoas que foram colonizadas perderam suas culturas nativas, seus mitos e suas identidades. Mais importante de tudo, nas ex-colônias espanholas e portugueses, Jesus é quase invariavelmente branco.

O cristianismo muscular, a Mission Civilisatrice e todo o resto

Os britânicos e franceses não estavam tão interessados em salvar almas quanto os espanhóis e portugueses. Ainda assim, percebiam-se como nações cristãs civilizadas. Popularizada pelo advogado T.C. Sandars, o "cristianismo muscular" é a ideia predominante na Inglaterra vitoriana de que os homens fortes de Deus deveriam civilizar os nativos. A imagem do inglês viajando pelo mundo com um rifle numa mão e uma Bíblia na outra foi popularizada por J.G. Cotton Minchin. As escolas públicas britânicas, que na verdade são escolas privadas para os bem-nascidos, foram infundidas por este ideal. Cotton Minchin não esteve tão distante da realidade ao escrever: "Se perguntarem o que o cristianismo muscular fez, apontamos para o Império Britânico".

A ideia francesa de mission civilisatrice baseava-se no conceito de que o cristianismo era superior. A conversão não era essencial como para os regimes espanhóis ou portugueses, mas era preferível. Assim como o vestido europeu e a língua francesa, era uma marca da civilização. É desnecessário dizer que tanto os britânicos quanto os franceses construíram igrejas onde Jesus era branco.

Yasser Arafat na capa da revista Time em 1974.
Durante minhas palestras, geralmente pergunto aos africanos das ex-colônias anglo-francesas se Jesus é branco. Um devoto estudante nigeriano de Berkeley, a quem dei aula no ano passado, confessou estar perturbado com a questão. Ele me disse: "É o que Jesus representa que importa, não sua cor". Eu observei ironicamente: "Então qual é o problema dele ser negro?". Como a Sra. Lobo, ele não conseguiu me responder.


Sim, Jesus deveria se parecer com Yasser Arafat

Para os cristãos, Jesus é assumido como o filho de Deus. Se ele é branco, então significa que Deus é branco? Michelângelo Buonarroti, o insaciável gênio gay, pintou um resplandecente homem branco idoso criando um atrativo homem branco no teto da Capela Sistina. Qualquer católico que vê a imagem é levado a acreditar que Deus e Adão eram homens brancos. É desnecessário dizer que Jesus também. Roubando as palavras de Cecil Rhodes, o ladrão transformado em filantropo no século XIX, os homens brancos ganharam o primeiro prêmio na loteria da vida.

A religião, em seu melhor aspecto, oferece um repositório para a tradição, um locus para a comunidade e um crisol para a espiritualidade. O cristianismo não é exceção. Houveram incontáveis cristãos devotos como a Sra. Lobo que foram excelentes seres humanos com um profundo espírito de serviço. A noção do Novo Testamento de dar a outra face é, sem dúvida, nobre. O Jesus histórico era um judeu galileu nascido na atual Palestina. Definitivamente, em 2015, ele deveria começar a se parecer com um palestino.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A "nova" política já nasceu velha

Alguns acontecimentos do último final de semana me levaram a indagar se existe uma verdadeira renovação das ideias políticas ou se, no final das contas, continuamos todos dentro do mesmo espectro esquerda–direita que os membros dos États-Généraux de 1789 se encontravam. Na Assembleia Geral convocada pelo rei Luís XVI, aqueles que se sentavam à esquerda do monarca se opunham ao modelo social estabelecido (à época a monarquia absolutista) e defendiam uma revolução que trouxesse a secularização e a criação da República francesa, enquanto aqueles que se sentavam à direita do rei defendiam a manutenção do sistema de governo e do catolicismo romano como única religião oficial do Estado francês. Dessa forma, pode-se dizer que a nomenclatura "esquerda" nasceu atrelada à ideia de reformulação das estruturas sociais, enquanto que a noção de "direita política" surgiu associada à ideia de manutenção do status quo. Com o passar dos anos, no entanto, a esquerda foi assumindo uma postura menos revolucionária e a direita tornou-se menos troglodita. Tudo isso para arregimentar eleitores, o que provoca a sensação de que diferem pouco uma da outra.

História à parte, o primeiro acontecimento que me levou a questionar se há ou não renovação do espectro político foi a edição da revista Época lançada na sexta-feira e ainda hoje nas bancas. A publicação traz, como matéria de capa, uma reportagem sobre a "nova" direita e a "nova" esquerda. Imagino que a matéria traga opiniões que corroborem a visão de que direita e esquerda tenham caminhado cada vez mais para o centro do espectro político, usando como exemplo o universo particular de PT e PSDB. Acompanhando a reportagem, há no site da revista um teste que revela ao internauta se ele pertence ao "novo" ou ao "velho" espectro político. Fiz o teste e, por defender uma maior participação do estado na economia, fui comparado a ninguém menos do que o líder revolucionário cubano Fidel Castro. Achei o resultado um disparate. Nem toda figura histórica que defende uma maior participação do Estado na economia é revolucionária – ou sequer de esquerda. Ditadores de direita como Adolf Hitler e Benito Mussolini eram estatistas, assim como figuras da esquerda democrática como o economista britânico John Maynard Keynes. A quem interessa dizer que defender um maior controle da economia pelo Estado é uma ideia "velha"? A única resposta possível para essa pergunta é: aqueles que se beneficiam da desregulamentação dos mercados.

Já no sábado meu irmão me surpreendeu com uma revista que estava sendo distribuída no parque perto aqui de casa, que todo final de semana é tomado por "irmãos" das mais diversas denominações cristãs para fazer proselitismo religioso. Tratava-se de uma publicação de quase um milhão de exemplares da Igreja Adventista do Sétimo Dia sobre as diversas formas de parafilia (distúrbios sexuais). Não surpreendentemente para mim, a homossexualidade era apresentada como um desvio sexual ao lado da pedofilia e da necrofilia. No entanto, desde 17 de maio de 1990, ou seja, há mais de 25 anos, a autoridade suprema em questões de saúde pública no mundo, a Organização Mundial de Saúde (OMS), não considera mais a homossexualidade como uma doença. Em 1984, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) posicionou-se contra a homofobia e, no ano seguinte, foi a vez do Conselho Federal de Psicologia (CFP) fazer o mesmo. Uma resolução do CFP datada de 1999 proíbe o tratamento da homossexualidade por psicólogos. Um deputado do meu estado pretendia sustar essa resolução do CFP, embora não seja da alçada do Congresso Nacional legislar sobre questões definidas internamente pelos conselhos de categorias profissionais.

Mas o que isso tem a ver com a "nova" política? A revista dos adventistas trazia uma linguagem dinâmica, entrevistas com profissionais da psiquiatria e, pasmem, até uma citação de Martin Luther King, talvez o líder político mais progressista dos Estados Unidos do século passado: um pastor que se dizia socialista. Vale notar que a viúva dele, Coretta Scott King, militava pelos direitos dos LGBTs e, ao ser criticada por pastores negros, afirmou que seu marido teria feito o mesmo e que a mensagem dele defendia a igualdade para todos. A publicação também associava a queda de Sodoma e Gomorra à homossexualidade, embora a narrativa bíblica associa-a ao estupro. Manipular falas e escritos é uma das formas pelas quais a dita "nova direita" – seja ela religiosa ou não – pretende tornar seu discurso hegemônico na sociedade. A direita traveste-se de "progressista" para dar eco às suas ideias na sociedade. Ideias que, invariavelmente, defendem a manutenção de vários aspectos da ordem social vigente. Como pode uma direita ser "nova" se ela continua defendendo um sistema político-econômico que oprime quem está na base da pirâmide para garantir a fortuna daqueles poucos que estão no topo?

Outro fato recente que me chocou foi uma publicação que vi numa página anti-homofobia do Facebook pedindo que seus seguidores se juntassem aos protestos contra a presidente Dilma Rousseff no último dia 16. A justificativa para tal demanda era o aumento da violência trans-homofóbica durante o governo dela, embora a segurança pública seja uma responsabilidade dos estados e do DF. É verdade que Dilma prometeu se esforçar pela aprovação do PL 122, que criminaliza a homofobia, no atual mandato. Mas também é verdade que os brasileiros elegeram o Congresso mais conservador desde 1964, sob o qual a presidente exerce pouca influência. Uma pessoa LGBT discordar da agenda política da presidente é um direito dela. No entanto, uma pessoa LGBT marchar ao lado de quem tem o homofóbico Jair Bolsonaro como exemplo de ética na política é suicídio. Mas é assim que a "nova" direita consegue adeptos: através da desonestidade intelectual. Aproveitam-se do fato de que o brasileiro médio é limitado em termos de leitura e tem uma visão estreita e por vezes interesseira da conjuntura política, para arregimentar adeptos. Engrossam suas fileiras semeando a confusão ideológica. No fundo, esquerda e direita são as mesmas de sempre. Os discursos para arregimentar "fiéis" é que mudaram.

sábado, 22 de agosto de 2015

Globo: Uma TV da ditadura em plena democracia

Não existe, em nenhuma nação democrática do mundo, uma emissora comercial de televisão tão poderosa quanto a Rede Globo. Até mesmo emissoras estatais como a britânica BBC, cujo monopólio foi quebrado em 1955, enfrentam alguma competição em seus mercados. Na meca do capitalismo e da produção audiovisual, os Estados Unidos, quatro emissoras disputam igualmente a liderança da audiência, sendo comum empates e mudanças súbitas na medição. Para se ter uma ideia da dominância da Globo no mercado de televisão do Brasil, o maior share da história da emissora – e do país – foi conquistado em 22 de fevereiro de 1986, quando o capítulo final da telenovela Roque Santeiro atingiu 100%, o que significa dizer que todos os televisores ligados do Brasil naquele momento estavam sintonizados na Globo. Em comparação, o maior share conquistado pela teledramaturgia norte-americana ocorreu em 28 de fevereiro de 1983, quando “Goodbye, Farewell and Amen”, episódio final do seriado de comédia M*A*S*H, deu à CBS um share de 77%. Isso antes do advento da FOX como quarta emissora comercial dos EUA e da popularização dos serviços de televisão por assinatura.

Ainda hoje, mesmo em queda, a Rede Globo ainda consegue obter proporcionalmente mais audiência do que a CBS. O seriado NCIS, programa de ficção mais assistido da emissora e dos EUA durante a temporada 2014-15, foi visto semanalmente em uma média de 14,56 milhões de lares. A telenovela Império, programa mais assistido da temporada 2014-15 no Brasil, foi assistido em uma média de 7,2 milhões de domicílios no Brasil. À primeira vista parece que a audiência de NCIS é o dobro da de Império. Sim, é verdade, mas o impacto da telenovela sobre o público brasileiro é quase três vezes maior do que o impacto do seriado de investigação criminal sobre o público norte-americano. A população dos EUA é quase duas vezes maior do que a do Brasil. Segundo o Instituto Nielsen, que mede a audiência naquele país, há 115,6 milhões de domicílios com televisor nos EUA. Segundo o IBOPE, há 21,7 milhões de lares com televisor no Brasil. Isso significa que o share de NCIS é de 12,6% e que o share de Império foi de 33%. O programa de maior audiência da temporada 2014-15 nos EUA foi assistido em menos de 13% dos lares americanos, enquanto que o programa de maior audiência da mesma temporada no Brasil foi visto em 1/3 dos lares brasileiros. 

A prevalência da Rede Globo sobre as demais emissoras de televisão do Brasil não deve ser encarado como um case de sucesso empresarial. Trata-se de uma história de benesses recebidas do Estado e de esforços para minar a liberdade econômica que a emissora tanto defende nas vozes de comentaristas como Miriam Leitão e Carlos Alberto Sardemberg. Nos anos 1970, a ditadura militar implementou uma política de modernização das telecomunicações que muito favoreceu a emissora. Em 1965 criou a Embratel e fez com que o país se juntasse à rede mundial de satélites quatro anos mais tarde. A intenção do regime era se opor à hegemonia cultural libertária da época, predominante nas rádios e nos teatros locais, usando para isso a televisão. Através da construção de uma fonte de entretenimento nacional, o governo poderia minar as vozes regionais. Assim sendo, as emissoras se transformaram em redes e só continuaria recebendo verba publicitária do governo aquelas que endossassem a política de hegemonia cultural do regime. Assim sendo, a Rede Excelsior, líder de audiência em São Paulo, que mantinha uma linha crítica ao regime, fechou as portas em 30 de setembro de 1970. Ao mesmo tempo, o regime militar fazia vistas grossas à parceria ilegal entre Roberto Marinho e o grupo multinacional Time–Life que deu origem à Rede Globo.

Enquanto as demais emissoras nacionais – Tupi e Excelsior – começaram com poucos recursos e muita dificuldade tecnológica, a Globo iniciou suas operações com equipamentos de ponta. Isso só foi possível devido ao acordo firmado entre Marinho e a Time–Life. Mesmo com a legislação brasileira proibindo que empresas de telecomunicações tivessem participação de capital estrangeiro em sua formação, o acordo seguiu inconteste pelas autoridades por um determinado período de tempo até que Roberto Marinho comprasse as ações da Globo pertencentes ao grupo norte-americano. Aos amigos do regime, tudo. Aos inimigos, a falência. As ligações da Globo com o poder militar eram tão estreitas que Walter Clark, diretor-geral da emissora, confessou em sua autobiografia que recebia o ditador Médici em seu gabinete na Globo para, juntos, assistirem aos jogos de futebol transmitidos pela emissora. Nas palavras de Clark o “padrão Globo de qualidade” era uma “vitrine de um regime com o qual os profissionais da TV Globo jamais concordaram”. Mas Roberto Marinho concordava – e muito. Médici elogiava a cobertura que o Jornal Nacional fazia da política nacional, o ministro-censor Armando Falcão lembra com carinho de sua relação com Marinho em documentário e o próprio dono da emissora confessou seu apoio ao regime em editorial escrito por ele e publicado no jornal O Globo em 7 de outubro de 1984.


Corrupção

ACM e Roberto Marinho de braços dados.
Interessante notar que, assim como os golpistas de hoje, Marinho afirma ter apoiado o Golpe de Estado de 1964 para conter a “corrupção generalizada” que se alastrava pelo país. Mais de uma vez, no entanto, a Globo viu-se envolvida em casos de corrupção. Em 1986, por exemplo, o então ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães atuou à margem da lei para favorecer a emissora. Ele suspendeu os contratos do governo com a empresa NEC do Brasil. Com o grupo em crise, ele foi comprado pela NEC do Japão, que o revendeu para as Organizações Globo por um milhão de dólares. Em seguida, ACM restabeleceu os contratos do Ministério com a NEC do Brasil e a empresa passou a valer 350 milhões de dólares. Como recompensa pela atitude criminosa, ACM recebeu da Globo o direito de retransmitir o sinal da emissora no estado da Bahia. Em janeiro de 1987, a TV Bahia subitamente substituiu o sinal da Rede Manchete pelo da Rede Globo. A TV Aratu, então retransmissora da Globo na Bahia, ficou sem sinal e decidiu processar a rival. A contenda terminou três dias depois com a TV Aratu aceitando retransmitir o sinal da Manchete. A quebra de contrato de maneira unilateral por parte de Roberto Marinho gerou uma queda de 80% no lucro da TV Aratu.

Além disso, a Rede Globo é uma das maiores devedoras de impostos ao Estado brasileiro. Entre 2010 e 2012, a emissora foi notificada 776 vezes por sonegação fiscal. A maior parte das notificações envolve a importação de equipamentos sem o recolhimento dos devidos impostos. Segundo a Receita Federal, a empresa praticou fraude contábil ao negociar uma perdão de 158 milhões de reais em dívidas com o banco JP Morgan em 2005. Multada em 730 milhões de reais, a emissora contesta a cobrança, mas foi derrotada no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Além disso, a Globo é acusada de sonegar o Imposto de Renda referente à compra dos direitos de transmissão da Copa do Mundo de 2002. A empresa teria usado um paraíso fiscal para realizar a transação com o intuito de evitar o pagamento do IR à Receita Federal. Em outubro de 2006, a Receita tentou cobrar multa de 615 milhões de reais da emissora pelo episódio, mas o processo desapareceu do prédio da Receita no Rio. Uma funcionária da Receita, Cristina Maris Meinick Ribeiro, sumiu com o processo. Ela foi condenada a quatro anos de prisão, mas afirmou ter agido sozinha no caso. A Globo também já foi acusada de desviar os recursos arrecadados pela campanha filantrópica Criança Esperança.


Interferência na política

Debate presidencial de 1989.
Talvez uma herança do período em que era porta-voz da ditadura, a família Marinho desconfia da capacidade do povo brasileiro de escolher seus próprios líderes. Em 25 de janeiro de 1984, no ocaso do regime militar, a emissora ignorou solenemente o movimento suprapartidário que pedia o fim do regime e a realização de eleições diretas para presidente da República. Naquela ocasião, 300.000 pessoas protestavam na Praça da Sé. No Jornal Nacional daquela noite, o evento virou um ato em comemoração aos 430 anos da cidade de São Paulo. Segundo Boni, ex-vice-presidente da Globo, partiu de Roberto Marinho a decisão de censurar as Diretas Já. Segundo ele, a censura no caso foi dupla: da emissora e do regime. Dois anos antes, o Brasil vivia suas primeiras eleições estaduais pluripartidárias desde o início dos anos 1960. Leonel Brizola, recém-chegado do exílio com a promulgação da Lei de Anistia, liderava as pesquisas de intenção de voto para governador do Rio de Janeiro. A Globo se ateve à apuração oficial, realizada pela empresa Proconsult, e se negou a dar voz às denúncias de fraude feitas por policiais civis. Brizola denunciou a farsa a correspondentes estrangeiros e o regime militar, já extremamente fragilizado em seu apoio lá fora, viu-se obrigado a divulgar os números verdadeiros e conceder a vitória ao político oposicionista.

Em 1989, após cinco anos de um governo civil não-eleito, o povo brasileiro finalmente iria às urnas escolher seu presidente. Os favoritos eram Brizola e o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva. Após uma disputa acirrada com Brizola para ver quem iria para o segundo turno, Lula acabou ascendendo ao segundo lugar da disputa. Seu rival seria Fernando Collor, dono de uma afiliada da Globo em Alagoas e ligado ao coronelismo local. Ambos os candidatos apareciam com o mesmo percentual de intenção de votos. Assim sendo, os debates na televisão seriam decisivos para definir a disputa. Lula se saiu mal no debate e a Globo selecionou suas piores falas para serem exibidas na reportagem do Jornal Nacional sobre o evento. Até então, a emissora tinha buscado manter-se isenta na cobertura do processo eleitoral. Inclusive a reportagem exibida pelo Jornal Hoje no mesmo dia era muito mais equilibrada do que aquela exibida pelo Jornal Nacional. A campanha de Lula moveu uma ação no STF contra a Globo, exigindo que a emissora exibisse uma nova reportagem, mais isenta, mas o pedido foi negado. A emissora sempre negou ter agido de má-fé no episódio, mas admite que a reportagem não foi isenta. Em 2009, o próprio Collor admitiu ter sido favorecido pela Globo. Coberturas eleitorais tendenciosas seguiram-se nas disputas de 2006, 2010 e 2014. Em 2006, o Jornal Nacional deixou de noticiar a tragédia do voo 1907, destaque em todos os telejornais, para exibir uma denúncia contra o partido de Lula. Em 2010, o telejornal corroborou uma afirmação de José Serra de que foi agredido por petistas, versão desmentida pelo Jornal do SBT.

Novos adversários, mesmos métodos.
Temida pelos governos, a Globo chantageia os Poderes do Estado e geralmente consegue sair impune das situações ilegais e antiéticas em que se encontra. Há quem acredite que o processo de 615 milhões contra a emissora na Receita Federal tenha “desaparecido” em troca de uma cobertura mais amigável a Lula no segundo turno das eleições de 2006. Quatro anos antes, no crepúsculo do Governo FHC, a Rede Globo recebeu um empréstimo de 280 milhões de reais do BNDES para sanar suas dívidas. É notável a atuação da Bancada da Globo no Congresso Federal. Nos anos 1990, a emissora valeu-se de sua influência entre senadores e deputados para conseguir alterar um artigo da Constituição Federal que proibia a entrada de capital estrangeiro nas empresas de mídia, legalizando a forma como a emissora havia surgido em 1965. Agora a emissora mobilizou seu lobby contra o Netflix, acusando a empresa de não pagar os impostos devidos ao Estado brasileiro. Que ironia! Uma empresa que sonegou o Imposto de Renda referente à compra dos direitos de transmissão da Copa de 2002 acusando outra empresa de não pagar impostos. Em seguida, deve propor pesados impostos sobre o serviço de streaming, que já é maior do que a Band e a RedeTV. Trata-se de mais uma tentativa da Globo de manter sua dominação sobre o mercado de televisão e, consequentemente, sobre corações e mentes dos brasileiros. A Globo quer continuar construindo o discurso cultural hegemônico a ser reproduzido pela sociedade. Que ela tenha esse poder numa democracia é assustador!

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Maria, além dos mitos

Sábado, dia 15, foi celebrada a festa litúrgica de Nossa Senhora, Maria de Nazaré. Na Igreja Católica, da qual não faço mais parte desde junho, a data é comemorada como a “Assunção da Virgem Maria”, o que significa que ela, assim como seu filho, teria ascendido aos céus de corpo e alma. Entretanto, não há referência teológica alguma que indique a assunção (ou ascensão) da mãe de Jesus. Segundo o dogma católico romano, Maria seria pura demais para ter seu corpo feito corrupto pela terra. Visões mais realistas, como a de Hipólito de Tebas, autor do século VII que propôs uma cronologia do Novo Testamento, afirmam que Maria teria morrido cerca de uma década após a crucificação de seu filho.

A mistificação de Maria pela Igreja Católica faz parte de uma tentativa maior de excluir as mulheres de posições de comando da maior igreja cristã do mundo. Conforme escrevi num post anterior, a Igreja Católica disseminou a lenda de que a outra Maria da narrativa cristã, a Madalena, fosse uma prostituta de forma a diminuir seu papel de Apóstola e Evangelista, crucial para a construção da Igreja primitiva. A Madalena é a libertina e a Nazarena é aquela que, apesar de crucial para o Evangelho, não participa muito da caminhada de seu filho. As fiéis podem escolher quais dos dois modelos femininos querem seguir. Junto à veneração sobrenormal a Maria, a Igreja Católica ainda lhe atribui outra característica sem base teológica alguma: a virgindade perpétua.

É impensável que José não tenha se deitado com Maria após o nascimento de Jesus. A própria Bíblia se refere a Tiago como “irmão do Senhor”. Mas o mito da virgindade ajuda a propagar uma das duas opções de vida que a Igreja oferece às mulheres – a castidade ou a libertinagem. A primeira é recompensada com a incorruptibilidade e a vida eterna (atribuída a várias virgens históricas que se tornaram santas, como Clara de Assis, Bernadette Soubirous e Rita de Cássia) e a segunda constitui ato tão grave que só encontra perdão no arrependimento sincero e na devoção incondicional a Jesus Cristo. Para refutar o mito que criou, a Igreja inclusive questiona a Bíblia; segundo a instituição, o termo em grego koiné utilizado para se referir a Tiago seria também traduzido como “primo” ou “companheiro”. Ou, então defende que Tiago seria o filho de um primeiro casamento de José sem qualquer ligação sanguínea com Maria ou Jesus.

Interessante notar que a mesma Igreja que executa uma leitura flexionada da Bíblia para sustentar seus dogmas não aceita que outros grupos flexionem a Bíblia para acolher os fiéis homossexuais que se sentem excluídos e frequentemente pensam em se matar. Demorou um quarto de século, mas enfim percebi as hipocrisias e a moralidade seletiva da Igreja Católica para sustentar seus dogmas. O exemplo maior disso foi quando um arcebispo de Recife e Olinda excomungou a mãe de uma menina de 9 anos, grávida do próprio padrasto, porque ela autorizou a filha a realizou um aborto. Era do interesse da Igreja que ela morresse durante o parto para o qual seu pequeno corpo não estava preparado. Ao mesmo tempo, o religioso se recusou a excomungar o estuprador, justificando que se tratava de crime penal e não canônico. Que se fodam as situações concretas de injustiça, é preciso defender os dogmas, né? A realidade é menos importante que os dogmas.

Mas eu não preciso de dogmas. No protestantismo, tenho a liberdade de escolher no que acredito através da leitura, do debate e das discussões racionais. Embora eu acredite na Imaculada Conceição, também acredito que, como toda esposa judia do século I, Maria manteve relações sexuais com seu marido José e teve filhos com ele, dentre os quais Tiago, o irmão do Senhor. Maria não era incorruptível. Era uma mulher camponesa muito boa – como milhares que marcharam até Brasília na semana passada. Sua bondade era tanta que Deus decidiu encarná-la com o Espírito Santo e torná-la um meio de trazer a esse mundo o maior homem que já viveu entre nós. Tamanha era sua bondade que se trata da única mulher citada pelo nome próprio no Corão, ao mesmo passo em que Cristo, visto como um dos muitos mensageiros de Deus pelos muçulmanos, é referido no Corão como “Jesus de Maria” (Isa Ibn Maryam).

A bênção da Maria Nazarena é, ainda hoje, a sina de muitas jovens em nosso país e demais cantos do mundo onde o machismo supera a solidariedade. Quantas vezes em nossa nação dita cristã não ouvimos frases do tipo “Na hora de fazer achou bom e agora reclama” para recriminar as mães de filhos que não têm pai senão o próprio Pai? Aposto inclusive que muitas das pessoas que se valem desse tipo de argumento se chamam Maria, uma vez que este é o nome feminino mais comum no Ocidente. Mas Jesus teve um pai além do Pai: José. E com ele, Maria teve quatro filhos e algumas filhas cujos nomes não se sabe. O que essa família possuía de pobreza material, tinham de riqueza de espírito. Ela não poderia dar a seu filho a educação que muitos dos Apóstolos receberam, motivo pelo qual a palavra de Jesus era desacreditada, mas poderia lhe dar o maior presente que uma pessoa pode dar a outra: o amor incondicional. E foi isso que pesou na hora do Espírito se fazer incarnado. 

O Espírito Santo não buscou uma grande cidade, mas uma vila. Não buscou um palácio, mas uma manjedoura. Não buscou uma rainha, mas a noiva de um carpinteiro. Para salvar a humanidade do pecado e entender como se espalhava a mesquinharia, a arrogância e o ódio era preciso ser um homem comum. E Maria e José eram pessoas comuns. Tão comuns que também cometiam pecados mundanos. João Crisóstomo, arcebispo de Constantinopla do século III, acusou Maria de “ambição, arrogância e vanglória” durante o ministério de Jesus. Não sei ao certo as bases para tais acusações, mas que Maria tivesse sido vítima de tais acusações só prova que, como todos nós, ela era um ser humano imperfeito, nascido no pecado e cheio de falhas. Só porque ela era a mãe do Salvador não significa que ela também não precisasse Dele.

Que nós possamos respeitar Maria por aquilo que ela realmente foi e não por aquilo que atribuem a ela. Se passarmos a vê-la mais como um ser humano cheio de falhas e menos como uma divindade superior, talvez também possamos fazer o mesmo com nossas mães, esposas e companheiras. Que possamos tratar todas as mulheres que carregam em si um coração puro e amoroso como especiais e não só aquelas que se encaixam em nossos dogmas. Que possamos, assim, viver o Evangelho, que é a palavra de Deus, e não os dogmas das igrejas, que são as palavras de homens.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

O maior escândalo de corrupção do Brasil

Maria Lúcia Fattorelli, ex-auditora da Receita Federal.
Imagem: TV Senado.
O maior escândalo de desvio de verbas públicas do Brasil ocorre diante dos olhos de todos nós há pelo menos duas décadas. E você nunca verá ele ser denunciado por políticos de oposição nas páginas amarelas da Veja ou pela voz repreensiva de William Bonner no Jornal Nacional. Trata-se do pagamento de uma dívida ilegal que o Governo Federal possui com instituições financeiras e que compromete cerca de 45% do orçamento anual da União.Ou seja, de todo o recurso que o governo federal tem disponível para investir em saúde, educação, segurança, moradia, cultura, combate à fome e à pobreza, etc., cerca de metade vai para instituições privadas. É dinheiro público – dos impostos que eu e você pagamos – indo para o setor privado.

Como explica Maria Lúcia Fattorelli, auditora aposentada da Receita Federal e fundadora do movimento Auditoria Cidadã da Dívida, em princípio não há nada de errado quando um governo, seja ele municipal, estadual ou federal, pega empréstimos com instituições privadas, ainda mais se tais empréstimos são feitos com a finalidade de melhor atender ao público. É absolutamente normal que uma pessoa que não possua um recurso próprio para financiar um empreendimento pegue um empréstimo. No caso da dívida pública, a pessoa é o governo brasileiro e os credores são os bancos – nacionais e internacionais. Se o governo pegou dinheiro emprestado é a obrigação dele pagar essa dívida, não é mesmo? Bem, a resposta é mais complexa do que um simples sim ou não devido à forma como a questão se desenvolveu no país.

Vejam bem, a dívida brasileira não para de crescer. Ao auditar a dívida de outros países da América Latina e também da Europa – sendo o caso mais emblemático a Grécia – que passaram anos sob a tutela do Fundo Monetário Internacional (FMI), Fattorelli constatou que a maioria dessas dívidas não possuíam contrapartida. Ou seja, os governos estavam pagando os juros de uma dívida nula, que já não existia mais. Num primeiro momento, verifica-se, então, que o Brasil é refém desse mesmo sistema da dívida que afundou a Grécia. O endividamento dos governos, que deveria servir para complementar os orçamentos a fim de garantir melhores serviços públicos a todos, serve na verdade para desviar recursos públicos para o sistema financeiro. No ano passado, cerca de 335 bilhões de reais saíram das contas do Governo Federal para instituições privadas.

O que deveria ser utilizado apenas em casos de extrema necessidade virou algo corriqueiro. Semestralmente o Tesouro Nacional autoriza o Banco Central (BC) a fazer um leilão de títulos da dívida pública do qual apenas doze instituições podem participar. Não se sabe ao certo quais são, mas segundo Fattorelli são os maiores bancos do mundo: Citibank, HSBC, Itaú, Bradesco, etc. Ao vender esses títulos, o governo arrecada uma determinada quantia x dos bancos e lhes emite uma carta promissória, dizendo que irá pagar essa quantia x acrescida de juros (taxa Selic). No entanto, a Selic é uma das maiores taxas de juros do mundo, sendo, assim, mais interessante para os capitalistas – de dentro e de fora do país – comprar títulos da dívida do que investir no setor produtivo. “É a aplicação mais rentável do mundo”, afirma Fattorelli. E é por essa razão que o vice-presidente José de Alencar, ligado ao meio empresarial, era contra a alta de juros, uma vez que ela inibe os bancos de investirem em empresas.

Um ano de pagamento de juros da dívida equivale a 10 anos de
gastos com o Programa Bolsa Família. Imagem: Ivan Valente.
Durante a CPI da Dívida Pública, realizada entre 2009–10, o BC se recusou a informar quem eram as instituições credoras do país. Primeiro os representantes do BC disseram que não sabiam. Mas se não sabem, como é que pagam o que é devido? Depois disseram que a informação era sigilosa, o que também não é uma verdade, visto que a dívida é pública, paga por todos os cidadãos que mantêm seus impostos em dia. A CPI terminou sem o órgão que controla o sistema financeiro nacional revelar quem são os credores do Brasil. Até aqui a situação é gravemente imoral. Mas se torna ilegal a partir do momento em que fica constatado que tudo aquilo que o Governo arrecada não é o suficiente para pagar a dívida e cumprir com suas obrigações (educação, saúde, etc.) e então ele emite novos títulos para arrecadar dinheiro para pagar a dívida original. A Constituição Federal de 1988 proíbe expressamente o anatocismo – pagar juros da dívida através da contração de uma nova dívida. Seria, numa analogia tosca, como aquela pessoa que pega um empréstimo no valor de x num banco, não dá conta de pagar os juros sobre x, e faz um segundo empréstimo no valor de y para pagar o que deve.

Isso significa que essa pessoa estará pagando juros sobre juros. Os valores x e representam apenas uma parcela do que o devedor paga, sendo que boa parte de suas despesas representa o pagamento dos juros incidentes sobre x e y. “É uma bola de neve que gera uma despesa em escala exponencial e o Estado não pode fazer isso”, alerta Fattorelli. O grande problema disso é que um dia o Brasil não arrecadará o suficiente para pagar esses juros e precisará fazer uma escolha: ou corta os gastos sociais ou deixa de pagar a dívida. O atual ajuste fiscal representa um caminho rumo à primeira opção. Devido à desaceleração econômica, a arrecadação caiu e o Governo Federal se comprometeu a cortar 70 bilhões da saúde e da educação para conseguir pagar os juros da dívida. Mas um dia a dívida – que cresce exponencialmente – será maior do que a arrecadação, cujo crescimento depende de uma série de fatores, e aí não haverá mais como cortar gastos sociais em favor de honrar os compromissos com as instituições financeiras. Foi o que ocorreu na Grécia, onde a dívida é maior que o PIB.

Um escândalo dessas dimensões deveria ser de conhecimento de todos. Mas não é por alguns motivos básicos. Os bancos privados são os maiores financiadores de campanha do país, tendo doado de maneira equânime para os principais candidatos – Aécio, Marina e Dilma – nas eleições de 2014. É um sistema que os políticos aceitam como inevitável. E, além disso, os bancos são também os principais anunciantes da Rede Globo, da revista Veja e de praticamente todos os grandes veículos de comunicação do país, que já são concentrados nas mãos de poucos. A Folha de S. Paulo, por exemplo, afirma que o governo tem a obrigação de pagar a dívida. Dessa forma, bancos e mídia empurram para os leitores a agenda do superávit primário, o que significa que os gatos considerados primários (saúde, educação, segurança, moradia, cultura, etc.) devem sempre estar sempre abaixo da arrecadação, para garantir que o governo possua, todo ano, uma reserva para pagar os juros da dívida. Só que essa reserva nunca é o suficiente. Daí recomeça o sistema da dívida: o governo leiloa títulos, arrecada um montante y para pagar os juros da dívida x contraindo novos juros sob o montante y.

O verdadeiro escândalo de Dilma Rousseff. Charge: Latuff.
O trabalho de Fattorelli visa desnudar qual a quantia de dívida e de juros no montante genericamente chamado de “dívida pública”. São os valores x e y do exemplo dado acima, sendo possível chegar até eles através da identificação do momento de contração das dívidas. Segundo as estimativas da ex-auditora da Receita Federal, cerca de 50% da dívida brasileira contraída desde 2005 é nula, ou seja, são apenas juros. O processo de repasse de dinheiro público para o setor privado ganhou força em meados dos anos 1990 durante a implementação do Plano Real. À época, a dívida brasileira girava em torno de 80 bilhões de reais, mas a taxa Selic foi fixada pelo BC em 40% ao ano, o que significa que a dívida quase dobrou de um ano para o outro. Como resultado do período de juros altíssimos da Era FHC (1995–2002), a dívida pública brasileira aumentou quase 40 vezes. Fattorelli estima que 90% da dívida desse período seja composta de juros sobre juros.

Trata-se de um grave crime de lesa-pátria que, infelizmente, não parou no governo FHC. Ao não ter a mesma coragem de outros líderes latino-americanos de auditar a dívida pública, os governos do PT continuaram cúmplices de um sistema que retira dinheiro da educação, da saúde e da previdência social para engordar ainda mais as contas dos ultra-ricos. Esses estão pouco se lixando para os protestos de ontem na Avenida Paulista. Eles já conseguiram convencer Dilma – que levou a taxa Selic a seu patamar mais baixo da história (7,12%) em 2013 a fim de tentar incentivar a indústria nacional – a mudar sua política econômica a fim de favorecê-los. A corrupção na Petrobrás, apesar de grave, é apenas fogo de palha para desviar as atenções do país da verdadeira corrupção, que acontece sobre os narizes de todos nós. Como diz Fattorelli, “no dia em que a gente conseguir uma compreensão maior do que é uma auditoria da dívida, a gente muda o mundo e o curso da história mundial”, pois nos livraremos da escravidão do sistema da dívida, que frauda a política e a economia em diversos países do mundo.

Assim como os brasileiros que saíram às ruas ontem, também estou insatisfeito com o governo que ajudei a re-eleger. Mas não pelos mesmos motivos que eles. Acredito na justiça e na fraternidade e não aceito que o governo retire dinheiro do povo trabalhador para sustentar quem nada ou pouco investe na criação de empregos. Quero que o governo invista ainda mais em nosso povo. Não quero que banqueiros recebam um Bolsa Família bilionário enquanto ainda há gente tendo dificuldade para comprar os alimentos mais básicos nas áreas remotas do país. Vou pra rua, mas vou com o povo, que quer mais e que deu à presidente Dilma Rousseff um voto de confiança nas últimas eleições para que ela aprofundasse as tímidas reformas que o PT tem feito. Não elegi uma candidata que falava em ajuste fiscal e tampouco em corte de verbas de Universidades Federais. E não me venham com discurso de quem até hoje não aceita a derrota nas eleições, pois o Aécio faria o mesmo. Assim sendo, no próximo dia 20, irei protestar contra esse que é o maior esquema de corrupção do Brasil, desviando mais de 300 bilhões de reais de dinheiro público para os bancos todos os anos, e que conta com a conivência de uma candidata que se elegeu com uma plataforma reformista.

sábado, 15 de agosto de 2015

Aos cavalos ferais como eu

Mustang, cavalo feral da América do Norte.
Feral - fe.ral
adjetivo de dois gêneros
que fugiu da domesticidade e voltou à vida selvagem (diz-se de animal).


Descobri hoje que sou um cavalo feral. A sociedade me manteve domesticado por um período, mas assim que senti o gosto da liberdade, nunca mais deixei que me selassem. Ainda tentam, mas simplesmente não conseguem. Recuso-me a viver segundo normas que não fui eu quem estabeleci. Todo mundo que tenta montar em minhas costas é jogado ao chão, não importa o quão rico, o quão forte ou o quão determinado seja. Se tenta chegar silenciosamente por trás de mim é pior: leva uma doída patada. 

Aos outros cavalos sou uma espécie estranha. Eles invejam minha liberdade: o vento nas minhas patas, o sol na minha crina. Pobres deles, não sabem que são mais fortes que os homens que montam neles e que as cordas que os mantêm presos. Não fazem ideia do poder que temos e que, juntos, poderíamos subverter as regras e criar uma sociedade só nossa, onde a palavra de ordem seria a cooperação e não a competição. Não entendem que, na verdade, não desejam ter donos. Ninguém deseja. Mas seus espíritos foram quebrados pelos homens e, uma vez colocadas as viseiras em seus rostos, só conseguem olhar para a frente. Nem se lembram mais o que era ser um espírito-livre e desistiram de lutar contra as cordas que os prendem.

Será que um dia eles vão entender que são os animais ferais que mudam a sociedade? Ninguém nunca conseguiu nada ficando em seus estábulos preocupado com a grama de amanhã. Quebraram as cercas e os estábulos e foram à luta por maçãs. Preferem uma vida de suposto conforto enquanto são feitos de burro de carga ao invés de arriscarem lutar por uma vida melhor para si e para seus companheiros. Sim, espíritos-livres foram queimados em fogueiras ao longo da história, mas isso não impediu de maneira alguma que eles continuassem a existir, sonhando por um mundo melhor onde todos tivessem maçãs e os dias de comer grama fossem apenas uma lembrança terrível do passado.

Mas porque somos livres não significa que somos selvagens. Até os cavalos ferais deixam alguém montar neles, sabiam? No entanto, não é qualquer um. Quem quiser montar num cavalo feral tem que conquistar a confiança dele, demonstrar que não vai machucar sua manada e deixa-lo ir quando ele quiser ir. Tem que ganhar seu coração. Ao contrário, prepare-se para cair no chão. Nós, os espíritos-livres temos amigos e, embora poucos, são pessoas que se não pensam exatamente como nós ao menos respeitam nossa necessidade e nossa luta por liberdade. Nada nem ninguém pode nos subjugar!

Dedico esse texto a todos os cavalos ferais como eu, em especial à Maria Servalli da Rússia, onde me parece que é bem difícil pensar contra a maré e ser um espírito-livre.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Quando o herói não é branco é revisionismo?

Hoje de manhã, assisti ao filme infantil Spirit – O Corcel Indomável no Canal FOX. Lançado em maio de 2002, o filme levou para casa uma bilheteria respeitável e foi indicado ao Oscar de melhor animação. Sua premissa narra a história de um cavalo Mustang que vive feliz com sua manada na natureza selvagem até que um dia é capturado por soldados do Exército dos Estados Unidos que tentam, em vão, domesticá-lo. O cavalo se une a um prisioneiro – um índio da tribo Dakota – para, juntos, conquistarem a liberdade para si e para suas famílias. Não é de se espantar que um filme que mostre o Exército dos Estados Unidos como vilão fosse repudiado pela direita. A conquista do Oeste é apresentada sob o viés daqueles que foram os mais afetados pela chegada do “progresso” capitalista: os humanos e animais que já moravam no local. Assim sendo, é óbvio que o filme fosse apresentar uma visão negativa dos eventos que os homens brancos consideram como desenvolvimento histórico. Há, inclusive, uma crítica sutil à crença popularizada no século XIX de que levar o capitalismo ao Oeste era o desejo da Divina Providência.

Tela de John Gast: Columbia, a personificação dos EUA guia
os iluminados homens brancos para o Oeste enquanto expulsa
os índios para a escuridão a que eles pertenceriam.
Discordar dessa visão é revisionismo?
Críticos de cinema conservadores, como Christopher Miller,¹ acusaram o filme de promover um “revisionismo histórico” por retratarem os índios de maneira simpática. Até meados da década de 1960, Hollywood retratava os indígenas como violentos entraves para o progresso da nação, ao mesmo tempo em que retratava os sulistas, através de filmes como ...E O Vento Levou, não como os entraves ao desenvolvimento do capitalismo que eram e sim como vítimas da cobiça nortista. Ao apresentar somente o ponto de vista do Sul em suas encenações da Guerra Civil, a indústria cinematográfica provocou o ressurgimento do grupo racista e nacionalista Ku Klux Klan em meados de 1920. O homem branco, que cresceu acostumando a ver-se como vítima aos olhos da mídia, não aceita ceder o papel de herói nenhuma vez sem reclamar de “racismo inverso” ou “revisionismo histórico”. Sim, os índios travaram guerras violentas contra os WASP (brancos, anglo-saxões e protestantes), mas só porque eles foram invadidos primeiros. Ninguém em sã consciência vai observar suas terras e propriedades serem invadidas e saqueadas pacificamente. Foram as ações do homem branco que levaram os indígenas a se tornarem violentos.

Violentos, segundo o filme, são os brancos
que invadiram o Oeste e atacaram povos
e animais que já moravam lá.
É interessante notar que quem promove o revisionismo histórico é, na verdade, o homem branco. Cheio de culpa branca por ter dizimado milhões de pessoas nas Américas, o homem branco cria fábulas sobre lideranças indígenas como Sepé Tiaraju para redimir um pouco do pecado do genocídio. Sepé seria um indígena do Sul do Brasil criado por missionários católicos e que lutou ao lado dos padres jesuítas pela manutenção das Missões. Segundo fontes indígenas, Sepé foi criado na verdade por índios guaranis e sequer era um morador das Missões e muito menos cristão. É muito comum na tribo dele os índios fingirem uma conversão para serem deixados em paz pelo homem branco. Ainda hoje os guaranis usam essa estratégia com missionários evangélicos no Paraná. De índio guerreiro que lutou contra a destruição do único lugar onde os povos ameríndios pudessem viver em paz – as Missões – Sepé virou mártir católico dos povos indígenas. Que, inclusive, teria passado o início de sua vida em paz com os homens brancos, quando na verdade, segundo os indígenas, ele jamais teria perdoado os brancos por terem matado sua família. As fontes indígenas, no entanto, não importam para a construção da narrativa de Sepé. Afinal, não se pode construir um mito redentor de todos os pecados dos homens brancos ouvindo a verdade.

E uma animação infantil que mostra os homens brancos guerreando com os índios (e não o contrário) e destruindo suas terras para levar o “progresso” – estradas de ferro, postes de luz e doenças venéreas – é que seria revisionista. Toda vez que o homem branco tem questionado seu papel de força opressora numa sociedade extremamente injusta e desigual, ele reage violentamente. Ontem, por exemplo, foi noticiado na imprensa que um grupo de homens acionou o Conar contra uma propaganda da marca Bombril que seria “homem-fóbica”. O mais interessante disso tudo é que sempre acusam os grupos oprimidos por eles – mulheres, negros, índios e LGBTs – de se “vitimizarem” quando apontam as contradições de um sistema que proclama a igualdade e é apenas justo com homens brancos e heterossexuais; no entanto, adoram pagar de vítima quando têm seus privilégios questionados. Incomoda ver, mesmo que raramente, o outro lado da história ser ouvido. Pode-se até dizer que 800.000 ameríndios foram mortos no Brasil entre 1900 e 1957,² desde que jamais se culpe os homens brancos por isso. É uma pena, pois dar voz ao relato dos oprimidos na construção da narrativa histórica é possibilitar que a História seja construída e entendida a partir de vários vieses e não apenas do ponto de vista dos vencedores. Não é revisionismo. Trata-se de se colocar no lugar dos oprimidos e, assim, evitarmos novos genocídios. Não há nada de errado nisso, a não ser que se seja a favor dos genocídios.


Referências:
¹ Miller, Christopher. "Spirit: Stallion of the Cimarron – When great animation changes history." JMP Press. 12 de agosto de 2002.

² Hinton, Alexander L. (2002). Annihilating Difference: The Anthropology of Genocide. University of California Press. p. 57. ISBN 978-0520230293.

quinta-feira, 13 de agosto de 2015

Respeitar o candomblé é respeitar a negritude do Brasil

Nos últimos anos, presenciamos o aumento da intolerância no Brasil. De fato, o Brasil nunca foi um país muito receptivo àqueles que possuíam ideias diversas às da maioria. Até 1979, era comum jovens que lutavam em prol de uma sociedade mais justa em termos econômicos simplesmente “desaparecessem” nas mãos de agentes do Estado. A política só podia ser exercida no âmbito de dois partidos: a situação e a oposição consentida. Todo o resto era ilegal. No campo da religiosidade, no entanto, era incomum uma perseguição tão aberta às vertentes que não fossem a católica romana. Os líderes católicos não aprovavam os demais tipos de religiosidade, é verdade, mas era incomum que incitassem seus fiéis a destruírem templos protestantes, evangélicos, espíritas ou afro-brasileiros. Conforme a hegemonia cristã foi passando das mãos da Igreja Católica Romana para as denominações evangélicas, sentimos uma mudança nesse discurso.

Agora os sermões das lideranças religiosas que visam homogeneizar o mercado de almas são mais agressivos. Hoje em dia não se limitam mais a apenas afirmar sua discordância aos seguidores de outras religiões como também pregam o ódio e a violência contra eles. Quem mais sofre esse tipo de perseguição são as tradições religiosas que não professam fé em Jesus Cristo. A perseguição mais perceptível ocorre contra o candomblé e seus seguidores, que frequentam seus cultos com vestimentas bem características. O candomblé é uma religião originária da Nigéria e do Benin, trazida para o Brasil pelos escravos. Nela, os seguidores prestam culto às forças da natureza, chamadas por eles de orixás. Esse culto ocorre em cerimônias públicas ou privadas lideradas por uma mãe ou pai-de-santo, dependendo da linhagem do terreiro. Se apenas as mulheres puderem assumir a liderança, diz-se que é uma casa de linhagem matriarcal; se apenas os homens puderem assumir a liderança, diz-se que é uma casa de linhagem patriarcal. Há ainda templos ou terreiros de linhagem mista, onde há tanto pais quanto mães-de-santo.

O ritual do candomblé é celebrado pela mãe ou pai-de-santo, que inicia o despacho de Exu. O Exu representa a natureza em seu estado mais primitivo; é a força bruta, sendo assim confundido com o capeta por aqueles que não entendem nada sobre a religiosidade africana. Em ritmo de dança, os filhos de santo, seguindo uma hierarquia definida, começam a invocar seus orixás para que os incorporem. O ritual tem no mínimo duas horas de duração e, ao contrário da umbanda, no candomblé não há a possibilidade de incorporação de espíritos desencarnados. Incorpora-se os orixás, ou seja, as divindades que representam as forças da natureza: o fogo (Ogum), os rios (Ogum), os mares (Iemanjá), os pântanos (Nanã), os ventos (Oyá ou Iansã), os trovões (Xangô), os lagos (Olossa), etc. Para disfarçar que não haviam de fato se convertido ao catolicismo, a religião oficial do Império Português, os escravos começaram a cultuar os orixás na forma de santos católicos, dando origem a um riquíssimo sincretismo existente ainda hoje.

Kailane Campos achou que fosse morrer.
Cada orixá possui uma personalidade, uma habilidade e preferências específicas. São eles que escolhem as pessoas nas quais serão incorporados no nascimento, podendo compartilhá-las com outro orixá. Assim sendo, percebe-se que uma pessoa é seguidora do candomblé devido a sua observância às especificações próprias de seu orixá, assim como à observância a um código de vestimentas para os cultos. Dessa forma, os filhos de santo têm se tornado alvo fácil para as ações de grupos extremistas que pregam o ódio religioso e que vêm se propagando rapidamente por todo o país. Em 14 de junho, a menina Kailane Campos, de 11 anos de idade, foi agredida num ponto de ônibus do subúrbio do Rio de Janeiro quando voltava de um culto de candomblé com a avó. Um homem, aos gritos de “vai pro inferno”, atirou uma pedra na cabeça da garota. Traumatizada, a menina relatou ao telejornal local RJTV que pensou que iria morrer. Iniciada no candomblé há mais de 30 anos, a avó da menina disse ao jornal que jamais passou por uma situação semelhante em toda sua vida.

O mais interessante de tudo é que, enquanto os homens jogavam pedras em Kailane e na avó dela, mostravam-lhes a Bíblia e gritavam “Jesus está voltando”. É mais do que óbvio que esse incidente não surgiu como que por combustão espontânea. O fósforo do ódio foi aceso nessas pessoas em algum templo religioso não muito distante dali. Um templo que, ao invés de se preocupar com seus próprios fiéis, promove a perseguição aos seguidores do candomblé. Se estão tão seguros de sua fé, provavelmente evangélica pentecostal, por que precisam perseguir as religiões de matriz africana? Ademais, a jihad evangélica só faz sentido na cabeça daqueles que leem a Bíblia ao pé da letra e não a julga como sendo uma obra escrita por homens, carregados do preconceito e da moral de sua época. Um produto de seu tempo. De fato, Jesus questionou por diversas vezes a Torá, a Bíblia judaica. Não consigo imaginá-lo apoiando um ato de violência tão vil, ainda mais contra uma criança. Em diversos momentos da Bíblia fica claro o amor especial que Jesus tinha pelas crianças. O que esse pessoal deseja é evangelizar através do medo – “temam, Jesus está voltando” – e não através do amor, como defendia o carpinteiro da Galileia. E é aí que começam os problemas. 

Terreiro da mãe Rejiane após a invasão.
Semana passada foi a vez da mãe-de-santo Rejiane Varjão, de Santo Antônio do Descoberto (GO) sentir na pele os reflexos desses evangelizadores do ódio. Rejiane sempre presenciou ofensas e olhares de reprovação desde que se iniciou no candomblé há 18 anos, mas nunca tinha passado por uma situação de violência como a que teve que enfrentar no último dia 5. Seu terreiro foi depredado, trazendo-lhe prejuízo de cerca de R$ 30 mil. “Quebraram tudo, os santos, as imagens e ainda levaram louça e talheres”, relatou ela ao jornal Extra do Rio de Janeiro. Até mesmo o delegado que investiga o caso ficou chocado com o crime, dizendo nunca ter visto nada parecido nos três anos em que atua na cidade. Discordar dos preceitos teológicos de uma religião que não é a sua é um direito democrático de cada um. Temos liberdade de expressão para isso. No entanto, ninguém tem o direito de entrar num templo religioso alheio e destruir imagens que para outras pessoas são santas. Será que os pastores que pregam o ódio e a destruição de templos afro gostaríamos que nós fôssemos até as igrejas deles e destruíssemos tudo? Por que não respeitam as opções religiosas dissonantes como nós respeitamos a deles? Denunciar a perseguição de cristãos pelo Estado Islâmico é fácil. Quero ver é colocarem fim à guerra santa que eles mesmos provocam aqui no Brasil. Colocar-se na pele daqueles que sempre foram ridicularizados por sua opção religiosa é o difícil.

Não vejo diferença alguma entre um cristão sírio e um candomblecista brasileiro. Ambos passaram suas vidas inteiras sendo ridicularizados por causa de suas escolhas religiosas, sendo alvos de piadas e olhares repreensivos e ambos têm medo de serem assassinados pelo simples fato de não seguirem a religião da maioria. Ser cristão de verdade envolve uma boa dose de empatia, de se colocar no lugar dos oprimidos, de imaginar como é ser oprimido. Afinal de contas, Jesus veio a esse mundo para sentir na pele como nós, enquanto sociedade, tratamos os oprimidos. E morreu numa cruz, porque é isso que nós fazemos com os oprimidos: os crucificamos. É muito fácil e cômodo ser cristão do lado do opressor. Mas essa deturpação do cristianismo é o que faz com que cada vez mais pessoas, principalmente jovens, abandonem a fé cristã. Não peço aqui que concordem com tudo o que as religiões afro-brasileiras pregam. Peço apenas que se respeite essas expressões religiosas que fazem parte da nossa cultura. Afinal, os seguidores delas respeitam a sua religiosidade; nunca vi notícia de candomblecista destruindo templo evangélico. Sem falar que mais do que respeitar uma tradição religiosa diversa, ao respeitarmos o candomblé estamos respeitando a tradição de um povo que chegou ao Brasil encaixotado e que foi vendido como animais de estimação; é respeitar nossa história e nosso povo. Antes de tudo, a busca pela eliminação da religiosidade afro-brasileira é uma busca pela eliminação da própria história negra do Brasil. E isso não devemos aceitar. Tenho certeza que Jesus não aceitaria.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

A Igreja me abandonou, Cristo não

Texto escrito para minha mãe, a pedido da mesma:


Há 7 anos, quando entrei na faculdade, tentei desvincular-me da Igreja Católica. Na época, eu ainda sustentava o peso de um pesadíssimo armário sobre minhas costas. Um peso que eu achava que deveria carregar em silêncio até o fim dos tempos. Após uma série de eventos, amadureci ao ponto de decidir jogar esse armário - e todas suas mentiras - fora. Mas eu ainda vivia o catolicismo de maneira subconsciente. Ano passado, entrei numa depressão profunda. Após um período de ódio a mim mesmo e comportamento destrutivo, redescobri Jesus. Eu não fui até ele. Ele veio até mim na forma de um texto do AlterNet exaltando que os cristãos "de bem" que vivem mandando os outros irem pra Cuba teriam odiado Jesus se fossem contemporâneos dele, um rabino subversivo condenado à crucificação por blasfêmia e por desrespeitar o status quo e as leis judaicas.

Retornei a frequentar a igreja desde então. Na primeira missa que fui, um padre jovem e com um discurso bastante interessante. No entanto, comecei a ir também na missa de quinta-feira. Outro padre jovem, mas com um discurso mais incisivo. Não tinha nada contra ele. Até hoje. Juro que me senti como se estivesse num culto evangélico, tamanha a pressão exercida pelo padre para que os fiéis fizessem o que ele mandava - no caso, protestar em defesa da "família". Ele emendou a homilia num discurso político que poderia muito bem ter saído da boca de Jair Bolsonaro, convocando os fiéis a protestarem contra a inclusão da "política de gênero" na política da secretaria municipal de educação de Goiânia. É claro que não faltaram dados suspeitos e informações equivocadas na convocação. Assim que o discurso inflamado começou, minha mãe sentiu nojo e falou para irmos embora, mas eu queria ver até onde a barbaridade de um cara que há poucos segundos estava falando de amor e perdão seria capaz de ir.

Cena da minissérie The Bible.
Depois disso eu senti nojo. Dele e de mim mesmo por permitir que eu me colocasse numa situação em que eu seria agredido sem saber. Me senti desconvidado a participar do resto da missa e, aí sim, fui embora. Afinal de contas, meu intuito ali seria destruir a "família tradicional" brasileira ou qualquer baboseira do tipo que nunca existiu a não ser na mente dos elementos mais fascistas de nossa sociedade doentia. Eu não milito, eu não levanto bandeiras, quem me conhece sabe disso. A única vez que participei da Parada LGBT foi para demonstrar apoio a meu candidato a deputado estadual. Como posso eu estar defendendo a destruição de algo se nem milito? O meu grande crime - e pecado - é me sentir atraído amorosamente por pessoas do mesmo sexo. Não digo nem sexualmente, porque há tempos isso não ocorre. Não quero mais fazer parte de uma congregação que prega o amor para, cinco minutos depois, convocar seus fiéis para protestar contra que se ensine nos colégios de Goiânia que o amor não é padronizado e que existe outras formas de amar.

Isso tudo me lembra uma passagem da Bíblia na qual Jesus critica os fariseus. "Façam tudo o que eles mandam, mas não ajam como eles agem", disse o rabino da Galileia. Por quê? Porque eles são hipócritas. Eles não praticam o que pregam. Falam de amor e não amam o próximo. Amam apenas o status quo em que estão inseridos. Querem manter seus privilégios nem mesmo que, para isso, se aliem a forças opressoras. Eu sei que nem todos na Igreja Católica são assim. Gente boa e ruim existe em todos os lugares. Cerca de 60% dos católicos dos EUA apoiam o casamento gay e o mesmo foi aprovado por referendo na Irlanda, um dos países mais tradicionalmente católicos da Europa. Mas eu me recuso a endossar essa estrutura que defende que o mero ensino de educação sexual nas escolas é agressivo. Aos que ficam, boa sorte. Quanto a mim, não se preocupem. Já aceito Cristo. Agora quero aceitar uma igreja que me aceite. Pois eu sou o amor.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Brasil, campeão da transfobia

Imagem que circulou nas redes sociais após a morte de Laura.
Estava planejando publicar um texto sobre Laura Vermont, transsexual de apenas 18 anos morta pela Polícia Militar de São Paulo no último dia 20 de junho. Antes de começar a escrevê-lo, no entanto, me deparei, anteontem, com a notícia de que Viviany Beleboni, mais conhecida como a transsexual crucificada da Parada LGBT de São Paulo, foi esfaqueada no último sábado na mesma cidade. Decidi, então, juntar os dois casos para escrever este post denunciando aquele país que é o líder mundial em assassinatos de pessoas trans segundo a ONG Transgender Europe. O país que se orgulha de ter a maior parada LGBT do mundo é também o mesmo onde mais se mata pessoas trans. De janeiro de 2008 a abril de 2013, 486 pessoas trans foram assassinadas no Brasil, número quatro vezes maior do que no México, país que é o segundo colocado no ranking da Transgender Europe.

O caso de Laura Vermont me chamou a atenção porque ela era aceita pelos pais, o que já é bastante raro em nossa sociedade que não é somente homo-transfóbica; é também "outrofóbica", pois teme todos aqueles que fogem de um padrão social pré-estabelecido, todos que não se parecem com os detentores do poder. Agora que a homossexualidade torna-se relativamente aceitável pelo poder estabelecido, tornando-se visível em propagandas de perfume e telenovelas, os grupos conservadores voltam-se contra a minoria mais fragilizada da sigla LGBT contando, para isso, com o apoio fundamental de integrantes da própria comunidade - que, por sua vez, desejam aparecer em mais propagandas e ser aceitos pelo poder estabelecido, que impõe as normas sociais que valorizam os heterossexuais em detrimento dos LGBTs. "Gays chegaram a me falar que sou porca, que manchei a parada", desabafou Viviany à época da polêmica. Mesmo na dita esquerda política foi comum encontrar pessoas denunciando a performance de Viviany como um ato de provocação que não levaria a nenhuma conquista real. Esquerda que tem medo de lutar para mim não é esquerda.

Laura, vítima do Estado
À Laura, contudo, não bastou ser aceita pelos pais. Após ser espancada na rua, ligou para o 190 pedindo ajuda. É muito provável que se não tivesse buscado a ajuda do Estado ainda estivesse viva. Os policiais chegaram e, se deparando com aquele ser inofensivo, andando de maneira desnorteada na rua e sangrando pela boca, pelo nariz e por todos os lugares possíveis, tiraram-lhe a vida. Afinal, se ela estava na rua de madrugada é porque deveria ser uma prostituta e prostituta é menos ser humano do que a filha do coronel. Se for trans, então, aí é que desce ainda mais na escala dos oficiais da PM do que é um ser humano merecedor da vida. Ao contrário do que diz a lei, a PM não serve para proteger a todos nós sem distinções de gênero, classe ou qualquer outra. Serve para fazer a limpeza social das ruas de São Paulo e das grandes cidades do Brasil, pondo em prática a cartilha "outrofóbica" dos detentores do poder através da eliminação dos símbolos visíveis da exclusão social - meninos de rua, sem-teto, imigrantes, usuários de drogas, prostitutas e travestis - com os quais esse poder que gera a exclusão não quer lidar. Antes de descobrirem que gays também podem ser ricos, a PM também matava-os de maneira indiscriminada.

Laura foi apenas mais uma vítima de uma sociedade misógina e preconceituosa que, como último país das Américas a abolir a escravidão, ainda carrega em sua elite as marcas da escravidão, da sociedade de castas. Quando os gringos descobrem que o Brasil é um país sexualmente conservador e intolerante, eles se chocam. Afinal de contas, o maior produto de exportação do Brasil são as mulatas do Carnaval carioca. Somos tolerantes apenas para inglês ver. Num episódio do seriado de animação Os Simpsons, Homer e sua família viajam para o Brasil para descobrir o paradeiro de um órfão patrocinado pela Lisa. Nele, Marge vê homens vestidos de mulher e conclui que no Carnaval é permitido brincar com a própria sexualidade. Mas é só durante essa época do ano. Nos outros 360 dias, as pessoas que se vestem com roupas características do sexo oposto àquele de sua nascença são brutalmente atacadas, seja verbal ou fisicamente. Inclusive pela polícia, que age de maneira ainda mais odiosa que os próprios homo e transfóbicos. Taí o caso da jovem Laura Vermont que não me deixa mentir. Queremos silenciar o discurso de respeito às diferenças porque continuamos querendo ser uma sociedade excludente.

Viviany, pega para Cristo
Assim como Viviany, Jesus também foi acusado de blasfêmia.
Foto: minissérie The Bible.
Viviany Beleboni foi xingada durante sua performance na Parada Gay não por estar depreciando um símbolo da fé cristã. Isso foi o de menos. As igrejas reformadas não aceitam a iconolatria. Quem deveria ter se indignado com o fato de Viviany ter se colocado numa cruz - a Igreja Católica - não se manifestou. O que incomodou foi o fato de uma pessoa trans estar a exigir respeito e visibilidade para ela e para aqueles que são como ela. E ter conseguido fazer com que sua mensagem ecoasse na sociedade. Cristo foi executado numa cruz por ser diferente. Ele se recusava a seguir as leis judaicas ao pé da letra e se afirmava como filho de Deus. Assim sendo, tinha que ser executado por blasfêmia. Viviany fez uma acertadíssima analogia entre o sofrimento de Cristo e o sofrimento daqueles que, como ela, são agredidos por se recusarem a seguir as normas sociais. Pode ter ofendido às legiões de falsos cristãos que acham que a interpretação da mensagem da Bíblia depende de líderes, mas não ofendeu àqueles que entendem que há muito mais semelhanças do que diferenças entre a vida de Jesus Cristo e a vida dos oprimidos.

Em meio a tanta imbecilidade cristã, o Papa Francisco protagonizou um ato ousado no Vaticano no último dia 24 de janeiro: recebeu o transsexual espanhol Diego Neria Lejarraga. A Igreja espanhola, como já é de conhecimento de todos, é uma das mais reacionárias do mundo, tendo servido de alicerce para a ditadura fascista de Francisco Franco. Diego, ao adotar a identidade de gênero masculina, foi proibido pelo padre de sua comunidade de comungar, sendo apelidado de "filha do Diabo" pelos fiéis locais. O ocorrido levou Diego a escrever para o Papa, que o recebeu na residência de Santa Marta no Vaticano. Enquanto isso, líderes de igrejas neopentecostais brasileiras atuam como afirmadores do status quo ao incentivar seus liderados - em sua maioria pessoas com escolaridade baixa - a atacar aqueles que já são os mais oprimidos pelos poderes estabelecidos. "Você é um demônio, tem que morrer, o pastor está certo", ouviu Viviany antes de ser agredida. O líder da maior Igreja cristã do mundo discorda.

Papa Francisco abraça transsexual. Enquanto isso, líderes
cristãos incentivam atentados à vida de Viviany Beleboni.
Segundo Viviany, a vontade que ela teve, após a agressão, foi de cometer suicídio: "Fui pra casa, minha vontade era morrer, porque eu não aguento mais". Boicotada desde a performance na Parada LGBT de São Paulo, ela não consegue arranjar emprego desde então. Viviany vive com medo: medo de ser agredida, medo de ser assassinada, medo de nunca mais trabalhar. Espero do fundo do meu coração que Viviany reconsidere as declarações que deu ao site Ego. Que ela resista ao medo e à dor e que consiga, de alguma forma, encontrar a alegria no ato de viver. Nossa sociedade precisa de pessoas como ela. Pois são pessoas como ela que expõe como nossa sociedade é doentia. Uma sociedade que venera um carpinteiro assassinado na cruz por não ser membro da elite religiosa judaica, por ousar pregar o amor num tempo de ódio, por tentar reformular as leis religiosas, mas é incapaz de sentir compaixão por aqueles que são as vítimas das elites atuais. Se Viviany tirar sua vida, então os "outrofóbicos" terão vencido. Não é o que queremos. Queremos apenas o direito de existir das minorias. Se a nossa mera existência ofende alguém e inspira discursos genocidas, então quem tem problemas psicológicos não somos nós.