Essa semana, entrei na página do People's World (atual encarnação do Daily Worker) por acaso. Gostaria de saber se o Partido Comunista dos Estados Unidos – que abandou o leninismo e hoje segue uma linha socialdemocrata – estava acompanhando a atual crise política do Brasil. Depois de ler uma matéria datada de março (muito bem contextualizada, por sinal), me deparei com a seguinte manchete: “Turquia: 30 jovens socialistas foram massacrados em Suruç por homem-bomba”. Como poderia eu – que me considero bem informado sobre a esquerda mundial – não estar sabendo disso?
Segundo a matéria, escrita especialmente para o site, 300 militantes socialistas se encontravam na cidade de Suruç, na fronteira sul do país, para um encontro da Federação de Associações de Jovens Socialistas (SGDF na sigla em inglês). A SGDF é o braço juvenil do Partido Socialista dos Oprimidos (ESP na sigla em turco), de orientação marxista–leninista e que luta pelo estabelecimento de uma república federativa operária/sindical na Turquia e também no Curdistão. Durante o final do encontro, em 20 de julho, os membros da SGDF realizavam uma coletiva de imprensa no jardim do Centro Cultural Amara antes de partirem para Kobani, no norte da Síria, onde ajudariam a população curda a reconstruir suas casas, destruídas pelo Estado Islâmico (EI) após este último grupo ser expulso do local. As duas cidades distam apenas 10 km uma da outra. Foi nesse momento que uma bomba foi detonada, matando 30 jovens. Segundo o Partido Democrático das Regiões, pró-independência curda, a explosão foi causada por um homem-bomba.
Os 30 mártires de Suruç. O Ocidente lhes esqueceu rápido. Espero que os curdos façam diferente. |
O atentado teria sido cometido por um militante do EI. Foi nessa hora que eu pensei: “mas que diabos o EI está fazendo na Turquia se esse país se diz em guerra contra o grupo?”. Foi então que me deparei com um vídeo que está circulando pelas redes sociais em páginas de esquerda que explica os últimos desdobramentos da Guerra Civil na Síria, tendo como foco a expansão da presença militar turca no conflito. Nele, o narrador explica que a Turquia aceitou recentemente deixar que as forças lideradas pelos Estados Unidos usem suas bases aéreas na luta contra o EI. Simultaneamente, o país começou a lançar bombas contra os nacionalistas curdos iraquianos, o que evidencia que a grande preocupação da Turquia não é combater o grupo islâmico que choca o mundo ao perseguir cristãos, xiitas e homossexuais, e sim evitar que um Iraque e uma Síria desestabilizados pela ação dos radicais sunitas do EI venham a favorecer a luta pela independência do Curdistão, cujas fronteiras também se encontram dentro do atual estado turco.
Aí é que veio a grande revelação para mim: a Turquia não fechou suas fronteiras com a Síria, o que só comprova que seu atual foco militar não é combater o EI. Segundo o vídeo, o país compra petróleo do grupo e faz vistas grossas às células terroristas que agem dentro de suas fronteiras no treinamento de novos militantes islâmicos. Nesse cenário, é esperado que membros de partidos como o ESP sejam atacados, uma vez que o EI se opõe ao secularismo que é intrínseco às ideias socialistas e o governo turco tampouco está preocupado em livrar o país do grupo e de suas ideias islamitas. Muito pelo contrário, não é segredo para ninguém que o atual presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, se opõe ao secularismo e está a destruir o legado de Mustafa Atatürk, líder socialdemocrata que transformou a Turquia na primeira democracia laica do Oriente Médiono início do século passado. Portanto, não me causa espanto saber que Erdogan faz vistas grossas ao EI internamente enquanto “condena e amaldiçoa” os assassinos dos 30 jovens pró-curdos perante à comunidade internacional.
Sua decisão de se juntar à coalizão anti–EI visa defender claramente seus próprios interesses políticos. Um deles é limitar a expansão dos grupos nacionalistas curdos ao longo da fronteira turca. Os curdos, que representam 18% da população turca, professam diversas fés, sendo descritos como o povo mais religiosamente diverso do Oriente Médio. E é por isso que políticos islamitas – dos moderados como Erdogan aos radicais como os líderes do EI – se opõem a eles. O medo do crescimento do movimento faz sentido, uma vez que os curdos aproveitaram a fragilidade do governo sírio para tomar o controle de extensas áreas no norte do país, junto à fronteira sul da Turquia. Por esse motivo, Erdogan teria negociado com a coalizão anti–EI o estabelecimento de uma “zona tampão” que adentraria 50 km na província síria de Aleppo e permitiria à Turquia abater todos os aviões que ali circulassem. Isso evitaria que os curdos conquistassem a cidade de Aleppo – a segunda maior da Síria, sob controle do EI –, reafirmando a dominância dos islamitas e garantindo o abastecimento do grupo via Turquia. O acordo, no entanto, foi negado. Mas ele demonstra que a decisão turca de se integrar à coalizão anti–EI tem como propósito garantir que a campanha liderada pelos Estados Unidos evolua de acordo com sua própria agenda.
Considerando tudo isso, não é surpreendente que a mídia ocidental tenha dado pouco destaque ao caso dos estudantes socialistas assassinados em Suruç. Afinal, as forças ocidentais acabaram de ganhar um forte aliado anti–Curdistão na sua campanha contra o EI. Não é – apesar de que deveria ser – através da promoção dos nacionalistas curdos, religiosamente diversos, que o Ocidente pretende vencer o EI. É através da valorização de atores políticos já estabelecidos na região e que visam ainda mais a sua islamização, desde que ela não seja nociva aos interesses do Ocidente. Pelo bem da pluralidade religiosa, espero que as forças curdas ganhem cada vez mais terreno na Síria e que os jovens massacrados em Suruç sejam lembrados como mártires em sua luta por um estado que respeite a diversidade religiosa de seus cidadãos. Que a morte deles não tenha sido em vão!
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