Nos últimos anos, presenciamos o aumento da intolerância no Brasil. De fato, o Brasil nunca foi um país muito receptivo àqueles que possuíam ideias diversas às da maioria. Até 1979, era comum jovens que lutavam em prol de uma sociedade mais justa em termos econômicos simplesmente “desaparecessem” nas mãos de agentes do Estado. A política só podia ser exercida no âmbito de dois partidos: a situação e a oposição consentida. Todo o resto era ilegal. No campo da religiosidade, no entanto, era incomum uma perseguição tão aberta às vertentes que não fossem a católica romana. Os líderes católicos não aprovavam os demais tipos de religiosidade, é verdade, mas era incomum que incitassem seus fiéis a destruírem templos protestantes, evangélicos, espíritas ou afro-brasileiros. Conforme a hegemonia cristã foi passando das mãos da Igreja Católica Romana para as denominações evangélicas, sentimos uma mudança nesse discurso.
Agora os sermões das lideranças religiosas que visam homogeneizar o mercado de almas são mais agressivos. Hoje em dia não se limitam mais a apenas afirmar sua discordância aos seguidores de outras religiões como também pregam o ódio e a violência contra eles. Quem mais sofre esse tipo de perseguição são as tradições religiosas que não professam fé em Jesus Cristo. A perseguição mais perceptível ocorre contra o candomblé e seus seguidores, que frequentam seus cultos com vestimentas bem características. O candomblé é uma religião originária da Nigéria e do Benin, trazida para o Brasil pelos escravos. Nela, os seguidores prestam culto às forças da natureza, chamadas por eles de orixás. Esse culto ocorre em cerimônias públicas ou privadas lideradas por uma mãe ou pai-de-santo, dependendo da linhagem do terreiro. Se apenas as mulheres puderem assumir a liderança, diz-se que é uma casa de linhagem matriarcal; se apenas os homens puderem assumir a liderança, diz-se que é uma casa de linhagem patriarcal. Há ainda templos ou terreiros de linhagem mista, onde há tanto pais quanto mães-de-santo.
O ritual do candomblé é celebrado pela mãe ou pai-de-santo, que inicia o despacho de Exu. O Exu representa a natureza em seu estado mais primitivo; é a força bruta, sendo assim confundido com o capeta por aqueles que não entendem nada sobre a religiosidade africana. Em ritmo de dança, os filhos de santo, seguindo uma hierarquia definida, começam a invocar seus orixás para que os incorporem. O ritual tem no mínimo duas horas de duração e, ao contrário da umbanda, no candomblé não há a possibilidade de incorporação de espíritos desencarnados. Incorpora-se os orixás, ou seja, as divindades que representam as forças da natureza: o fogo (Ogum), os rios (Ogum), os mares (Iemanjá), os pântanos (Nanã), os ventos (Oyá ou Iansã), os trovões (Xangô), os lagos (Olossa), etc. Para disfarçar que não haviam de fato se convertido ao catolicismo, a religião oficial do Império Português, os escravos começaram a cultuar os orixás na forma de santos católicos, dando origem a um riquíssimo sincretismo existente ainda hoje.
Kailane Campos achou que fosse morrer. |
Cada orixá possui uma personalidade, uma habilidade e preferências específicas. São eles que escolhem as pessoas nas quais serão incorporados no nascimento, podendo compartilhá-las com outro orixá. Assim sendo, percebe-se que uma pessoa é seguidora do candomblé devido a sua observância às especificações próprias de seu orixá, assim como à observância a um código de vestimentas para os cultos. Dessa forma, os filhos de santo têm se tornado alvo fácil para as ações de grupos extremistas que pregam o ódio religioso e que vêm se propagando rapidamente por todo o país. Em 14 de junho, a menina Kailane Campos, de 11 anos de idade, foi agredida num ponto de ônibus do subúrbio do Rio de Janeiro quando voltava de um culto de candomblé com a avó. Um homem, aos gritos de “vai pro inferno”, atirou uma pedra na cabeça da garota. Traumatizada, a menina relatou ao telejornal local RJTV que pensou que iria morrer. Iniciada no candomblé há mais de 30 anos, a avó da menina disse ao jornal que jamais passou por uma situação semelhante em toda sua vida.
O mais interessante de tudo é que, enquanto os homens jogavam pedras em Kailane e na avó dela, mostravam-lhes a Bíblia e gritavam “Jesus está voltando”. É mais do que óbvio que esse incidente não surgiu como que por combustão espontânea. O fósforo do ódio foi aceso nessas pessoas em algum templo religioso não muito distante dali. Um templo que, ao invés de se preocupar com seus próprios fiéis, promove a perseguição aos seguidores do candomblé. Se estão tão seguros de sua fé, provavelmente evangélica pentecostal, por que precisam perseguir as religiões de matriz africana? Ademais, a jihad evangélica só faz sentido na cabeça daqueles que leem a Bíblia ao pé da letra e não a julga como sendo uma obra escrita por homens, carregados do preconceito e da moral de sua época. Um produto de seu tempo. De fato, Jesus questionou por diversas vezes a Torá, a Bíblia judaica. Não consigo imaginá-lo apoiando um ato de violência tão vil, ainda mais contra uma criança. Em diversos momentos da Bíblia fica claro o amor especial que Jesus tinha pelas crianças. O que esse pessoal deseja é evangelizar através do medo – “temam, Jesus está voltando” – e não através do amor, como defendia o carpinteiro da Galileia. E é aí que começam os problemas.
Terreiro da mãe Rejiane após a invasão. |
Semana passada foi a vez da mãe-de-santo Rejiane Varjão, de Santo Antônio do Descoberto (GO) sentir na pele os reflexos desses evangelizadores do ódio. Rejiane sempre presenciou ofensas e olhares de reprovação desde que se iniciou no candomblé há 18 anos, mas nunca tinha passado por uma situação de violência como a que teve que enfrentar no último dia 5. Seu terreiro foi depredado, trazendo-lhe prejuízo de cerca de R$ 30 mil. “Quebraram tudo, os santos, as imagens e ainda levaram louça e talheres”, relatou ela ao jornal Extra do Rio de Janeiro. Até mesmo o delegado que investiga o caso ficou chocado com o crime, dizendo nunca ter visto nada parecido nos três anos em que atua na cidade. Discordar dos preceitos teológicos de uma religião que não é a sua é um direito democrático de cada um. Temos liberdade de expressão para isso. No entanto, ninguém tem o direito de entrar num templo religioso alheio e destruir imagens que para outras pessoas são santas. Será que os pastores que pregam o ódio e a destruição de templos afro gostaríamos que nós fôssemos até as igrejas deles e destruíssemos tudo? Por que não respeitam as opções religiosas dissonantes como nós respeitamos a deles? Denunciar a perseguição de cristãos pelo Estado Islâmico é fácil. Quero ver é colocarem fim à guerra santa que eles mesmos provocam aqui no Brasil. Colocar-se na pele daqueles que sempre foram ridicularizados por sua opção religiosa é o difícil.
Não vejo diferença alguma entre um cristão sírio e um candomblecista brasileiro. Ambos passaram suas vidas inteiras sendo ridicularizados por causa de suas escolhas religiosas, sendo alvos de piadas e olhares repreensivos e ambos têm medo de serem assassinados pelo simples fato de não seguirem a religião da maioria. Ser cristão de verdade envolve uma boa dose de empatia, de se colocar no lugar dos oprimidos, de imaginar como é ser oprimido. Afinal de contas, Jesus veio a esse mundo para sentir na pele como nós, enquanto sociedade, tratamos os oprimidos. E morreu numa cruz, porque é isso que nós fazemos com os oprimidos: os crucificamos. É muito fácil e cômodo ser cristão do lado do opressor. Mas essa deturpação do cristianismo é o que faz com que cada vez mais pessoas, principalmente jovens, abandonem a fé cristã. Não peço aqui que concordem com tudo o que as religiões afro-brasileiras pregam. Peço apenas que se respeite essas expressões religiosas que fazem parte da nossa cultura. Afinal, os seguidores delas respeitam a sua religiosidade; nunca vi notícia de candomblecista destruindo templo evangélico. Sem falar que mais do que respeitar uma tradição religiosa diversa, ao respeitarmos o candomblé estamos respeitando a tradição de um povo que chegou ao Brasil encaixotado e que foi vendido como animais de estimação; é respeitar nossa história e nosso povo. Antes de tudo, a busca pela eliminação da religiosidade afro-brasileira é uma busca pela eliminação da própria história negra do Brasil. E isso não devemos aceitar. Tenho certeza que Jesus não aceitaria.
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