Hoje a blogosfera progressista repercutiu bastante (veja aqui) a redescoberta de um documentário muito comentado nos meios acadêmicos e que julgava-se perdido. Trata-se de Brazil, the troubled land (Brasil, terra turbulenta, numa tradução livre), dirigido e produzido pela jornalista estadunidense Helen Jean Rogers e transmitido em junho de 1961 pela rede de televisão americana ABC. Na película, de quase meia-hora de duração, a jornalista busca explicar as razões por trás do apelo do comunismo entre camponeses da Região Nordeste do Brasil no período imediatamente anterior ao golpe de Estado de 1964. Alinhado à política externa do breve governo Kennedy, defende uma reforma agrária dentro das estruturas capitalistas, o que encontrou a resistência da elite local.
Se na Europa Ocidental o avanço do comunismo foi contido a partir da união da burguesia local com a burguesia americana para a criação de um Estado de bem-estar social que se tratava de uma tentativa de aplacar os movimentos revolucionários a partir de concessões da plutocracia à classe trabalhadora, na América Latina os movimentos revolucionários foram contidos basicamente através da força. No momento em que o documentário foi produzido, no entanto, o governo de John F. Kennedy, eleito com a bandeira de conter o comunismo e melhorar a qualidade de vida de seu povo, debatia se a melhor maneira de conter movimentos como os de Che Guevara no continente americano era recorrer ao incentivo ao desenvolvimento ou às armas.
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Captura de tela do documentário. |
Numa reunião na sede do Partido Socialista Brasileiro (muito diferente do atual PSB), o então deputado estadual Julião dá conselhos legais para os camponeses que tinham problemas com seus arrendadores ao mesmo tempo em que doutrinava-os para suas teses marxistas. As Ligas Camponesas assumiam o papel que deveria ser de defensores públicos e, de uma maneira geral, do Estado, executando "ações simples que demonstram fé nos 20 milhões [de camponeses]". Analfabetos em sua maioria, ganhando US$ 0,25 por dia e morando em com suas famílias inteiras em pequenos casebres de barro, os camponeses se vêem seduzidos por um discurso que lhes promete liberdade e educação para seus filhos.
Severino, um dos camponeses acompanhados pela jornalista estadunidense, têm seis filhos, um dos quais teve paralisia nas pernas devido à desnutrição. Seus filhos "vivem num mundo onde há apenas um brinquedo" e apenas um deles frequentava a escola, o que ajuda a perpetuar o regime de semiescravidão em que vivia, visto que o direito ao voto era garantido apenas aos cidadãos alfabetizados. Segundo seu contrato, Severino tem o direito de usar uma porção de terra, "não a melhor", para cultivar milho e feijão. Sua pobreza contrasta com a riqueza de seu arrendador, o ex-governador Constâncio Maranhão, que possui uma luxosa casa na fazenda. Sua família explora as terras pernambucanas há 400 anos.
O "senhor" de Severino (palavras do documentário) usa um anel de 15 quilates de ouro e diz que seus arrendatários são felizes, ricos e gordos. "O 38 é a lei aqui, ele decide tudo. Não é a polícia nem a lei, mas a minha arma", diz sorridente o ex-governador do estado enquanto aponta sua arma para o cinegrafista e atira ao redor dele, numa tentativa patética de demonstrar quem é o macho aos que ousam vir do norte questionar-lhe sobre as injustiças que ele perpetua. "As coisas sempre foram assim, meus camponeses são preguiçosos e se alguém tentar vir aqui e organizá-los, eu o mato". Parece um discurso bastante atual, não é mesmo?
Enquanto isso, na casa de Severino, um dos 20 milhões de brasileiros que viviam sob o fantasma da fome, a família se alimenta de uma única refeição diária composta de arroz, milho e feijão. As crianças não tomam leite e nunca comeram carne. Jamais sentiram o gosto dessa fonte de proteína. "A terra que faz crescer açúcar não pode ser desperdiçada com comida", conclui o narrador. Severino, em discussão com a esposa, diz que não aguenta mais esperar as coisas melhorarem. Afinal de contas, "US$ 0,25 por dia não é o caminho para a riqueza nem para um pedaço de terra". Mas, para os que tiveram o azar de nascerem Severinos e não Costâncios tem sido assim desde o dias da escravidão.
Na loteria genética do "retrógrado Nordeste", apenas 5% do povo detinha 65% da terra (se brincar esse número continua o mesmo ainda hoje, mais de cinco décadas após a exibição do documentário). Os camponeses, em sua maioria analfabetos, têm na figura do trovador um importante comunicador. "Os violeiros são parte importante da vida camponesa, uma instituição tão velha quanto a terra", diz o narrador. No início dos anos 1960, no entanto, as canções mudaram. Agora eles cantam, influenciados por Julião, sobre a importância do proletariado em receber um salário decente e a necessidade de se fazer uma revolução castrista no Nordeste.
Ao voltar do intervalo, o documentário tenta desmerecer as ações de Julião e mostra os projetos do governo Jango para o Nordeste. "Bons planos, excelentes planos para industrialização e reforma agrária" que, devido ao assalto dos militares ao poder em 1964, jamais foram concretizados. Por trás da lenta implementação desses planos estava um "brilhante economista", o jovem Celso Furtado, então presidente da Sudene. a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste. Visivelmente incomodado ao ser indagado por Rogers sobre Julião, ele descreve-o como um político que descobriu que as Ligas Camponesas eram importantes veículos para se obter ganhos políticos.
Em seguida, o documentário caracteriza Julião como "um homem ambicioso", cujo poder repousava nos camponeses e seu inegável descontentamento. "De todos os políticos do Brasil, ele é o que passa mais tem com os camponeses que não podem votar". Para Rogers, ele organiza a "vasta massa analfabeta para que consigam o direito de votar e obter o poder com sua maioria política, tornando-se senador, governador do estado ou presidente da nação". Sua retórica é cínica, segundo a documentarista, pois não oferece projetos específicos para o futuro dos camponeses. "Seu chamamento às armas ecoa mais forte entre os camponeses do que os planos construtivos, mas não vistos do governo".
O documentário se mostra preocupado com a influência de um líder anticapitalista e antiamericanista numa "região tão grande como o meio-oeste", que promete o paraíso comunista cubano e chinês aos camponeses. Isso dá esperança às pessoas "cujos problemas vitais são os mais básicos": alimentar-se hoje e amanhã. O contato de Julião com os camponeses é uma das coisas mais mostradas pelo documentário, talvez como forma de alertar ao público sobre a doutrinação marxista do político pernambucano. Em determinado momento, ele se aproxima de um camponês que lhe diz: "A aposentadoria do camponês é o cemitério". Uma das garantias da Constituição de 1988 foi justamente a aposentadoria rural, tão desmerecida por juristas de direita.
No terceiro e último bloco são exibidos mais alguns trechos da entrevista de Rogers com Furtado. "Se eu não acreditasse nisso [solução pacífica e democrática para o problema da terra], não estaria aqui", diz o entrevistado. Indagado se os Estados Unidos poderia ajudar a resolver a questão fundiária brasileira, ele responde: "Esse é um problema nosso. Se não estivermos preparados para fazer o sacrifício para uma solução, qualquer ajuda será inútil", diz. E completa: "Se as coisas não mudarem, podemos ter uma situação explosiva em dois anos". Celso Furtado errou a data do golpe de Estado de 1964 por um apenas ano.
O documentário, otimista, não acreditava numa solução explosiva, pois "o Brasil não é uma terra violenta". Prevê o êxodo rural desordenado para o Rio e São Paulo, onde há "fábricas e trabalho", e indaga: "Pode um homem viver de promessas quando sua criança precisa de comida?". Os Severinos da América Latina foram excluídos da marcha de 3.000 anos da civilização ocidental, conclui o documentário, antes de defender que o antídoto para as promessas comunistas é o resultado de ações governamentais. "Os planos do governo para a reforma agrária e o desenvolvimento devem se tornar reais, o primeiro passo deve ser dele".
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O documentário defende uma solução democrática ao conflito rural, que seria executada pelo governo trabalhista de João Goulart. No entanto, num cenário de radicalizações à esquerda e à direita, essa solução falhou. Um dos entrevistados no documentário, o economista Celso Furtado, mostrava-se confiante nesse governo e nessa solução. Ele próprio, entretanto, demonstra preocupação com a radicalização presente na sociedade brasileira de então (qualquer semelhança com a atual não é mera coincidência): de um lado, as elites se recusavam a conceder privilégios às camadas desfavorecidas e, do outro, os pobres, cada vez mais cientes de sua condição, não aceitavam mais serem explorados. E foi essa a receita que levou ao golpe civil-militar de 1964 e que alimenta a crise atual.
Celso Furtado e demais figuras do governo Jango esperavam que, em algum momento, a plutocracia brasileira cedesse. No entanto, a elite brasileira não está acostumada a fazer sacrifícios. Nem mesmo para garantir a paz social. Ou seja, para garantir que seus filhos possam andar despreocupados pelos calçadões das praias. Nos países do norte, por outro lado, uma parcela da elite se recusa a acreditar na militarização como resposta para os problemas sociais. Opõe-se tanto ao comunismo quanto às desigualdades, defendendo o que se convencionou chamar de democracia radical. No Brasil, por outro lado, em pleno 2015 a defesa de uma sociedade menos desigual ainda é confundida com comunismo, às vésperas do 24° aniversário de queda do comunismo soviético.
Assim como Além do Cidadão Kane, o documentário foi obviamente banido no Brasil. A nascente televisão, feita por e para a elite, não tinha o menor interesse em educar os brasileiros sobre as raízes dos problemas socioeconômicos de nossa nação. Em 1964, o Ministério da Justiça baixou decreto censurando oficialmente o documentário. Apesar de seu tom claramente pró-capitalista e pró-americanista, o documentário tocava em feridas ainda hoje abertas de nossa sociedade e poderia trazer problemas para quem achava (e ainda acha) que os problemas sociais se resolvem com a presença de mais policiais na rua.
É salutar que o documentário tenha reaparecido nesse ano de 2015. Novamente o Brasil se encontra como uma terra turbulenta. Esgotadas as possibilidades de ambos ricos e pobres lucrarem com o lulismo, as pessoas novamente se voltam para soluções fáceis para problemas complexos. As evidências históricas - e o documentário da ABC se consiste como tal - existem para que não cometamos os mesmos erros do passado. Nossos avós podem argumentar que foram ignorantes ao apoiar um golpe de Estado em 1964. E nós, argumentaremos o quê? A abundância informativa proporcionada pela internet não nos permite adotarmos posturas ignorantes quanto aos graves problemas de nosso país.
O documentário foi doado pelo arquivo de Hugh Hefner, o fundador da revista Playboy, à Escola de Artes Cinematográficas da Universidade do Sul da Califórnia e está disponível no canal da instituição no portal de compartilhamento de vídeos Vimeo. Infelizmente está disponível apenas em inglês sem legendas.
Creio ser de justiça destacar que o texto onde se revelou esse documentário para o Brasil, foi escrito e publicado por Urariano Mota. Primeiro, no Vermelho http://www.vermelho.org.br/noticia/272471-11
ResponderExcluirE depois no Luis Nassif Online http://ggnnoticias.com.br/blog/urariano-mota/descoberto-o-filme-que-o-brasil-nao-podia-ver-por-urariano-mota
No artigp ha um breve histórico dos caminhos difíceis traçados até chegar à divulgação e da sua importância.
Por último, no filme, o sentido da palavra "master" não é mestre. Mas senhor (de escravos) ou patrão.
Abraço.
Sugestões atendidas. Na verdade minha mãe já tinha me atentado para a tradução da palavra "master".
ExcluirMuito obrigado pela atenção, Rod . E continuamos trabalhando juntos. Abraço.
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