Na última terça-feira, enquanto o Brasil se entorpecia com mais uma final de Big Brother, a América — ou pelo menos parte dela — revivia seus traumas do passado. Naquela ocasião o canal a cabo FX exibiu o último episódio de "The People vs. O.J. Simpson", a primeira temporada da série antológica American Crime Story. Em outubro próximo ocorrerá o 21° aniversário dos eventos retratados naquele episódio, ou seja, a sessão judicial que absolveu o ator e ex-jogador de futebol americano Orenthal James Simpson, acusado de matar sua esposa Nicole Brown e depois o amigo dela, Ronald Goldman, que teria presenciado o crime por acaso. A família Goldman insiste que Ronald morreu tentando salvar a amiga das garras do marido abusivo.
Quando o "julgamento do século" chegou ao desfecho eu estava a um mês de completar 6 anos de idade. O seriado trouxe à tona para minha geração aquele caso criminal e suas implicações morais e, sobretudo, raciais. De um lado, haviam pessoas lutando pela verdade fatual e pela justiça. De outro, pessoas canalizando seu ódio contra uma polícia genocida e uma promotoria que fazia vistas grossas a isso num homem que sequer se identificava como negro. No meio disso tudo, uma nação dividida em barreiras raciais bem definidas — embora sou inclinado a crer que também existia uma barreira entre misóginos e não-misóginos. A violência policial que hoje aparece escancarada em vídeos de celulares à época só chegou ao público devido a este julgamento, que não tinha nada a ver com isso.
Apresentar a questão racial foi uma estratégia da defesa para tirar o foco do júri dos assassinatos. Mas o que isso mudou para os negros? Numa cena crucial do episódio final, o promotor negro Chris Darden indaga o advogado de defesa Johnnie Cochran, também negro: "O que você conquistou para nós? Este caso não é um marco dos direitos civis. A polícia vai continuar nos espancando e matando. Você não mudou nada para os negros de Los Angeles. A não ser, é claro, aquele rico que mora em Brentwood". Por mais simpático que alguém pudesse ser às questões de racismo sistêmico apresentadas pela defesa, é preciso colocar em primeiro plano que dois seres humanos foram mortos e que haviam provas mais do que suficientes para condenar O.J. pelos assassinatos.
A cena emblemática do Oprah Winfrey Show foi reprisada no episódio. |
Que o júri tenha eleito O.J. cause célèbre da violência contra negros na polícia — quando na verdade ele foi tratado a pão-de-ló pelos detetives — foi o que causou a expressão de espanto na cara da apresentadora Oprah Winfrey quando foi informada do veredito. Uma injustiça histórica cometida contra os negros, da qual O.J. sequer foi vítima ele próprio, foi reparada simbolicamente às custas de dois cadáveres. Mais tarde, um julgamento cível confirmou a responsabilidade de O.J. pelas mortes de Nicole e Ronald. O espetáculo jurídico montado pela defesa incluiu manipular uma das cenas do crime visitadas pelo júri — a mansão de O.J. — para mostrar-lhe como mais orgulhoso de suas origens negras do que ele realmente era.
Pode-se culpar a defesa? A defesa vai fazer aquilo que for preciso para libertar seu cliente. Boa parte da pirotecnia jurídica só foi possível graças ao juiz Lance Ito que, em nome de um suposto interesse público, permitiu que o julgamento fosse filmado e transmitido ao vivo na televisão. Era tudo o que a defesa precisava para incitar os negros dos Estados Unidos e, em especial, de Los Angeles a ficar ao lado do irmão O.J., supostamente uma vítima da polícia racista como eles próprios. A maior preocupação das autoridades era que a condenação do ex-jogador de futebol levasse a uma nova destruição de lojas e casas como nos distúrbios ocorridos em 1992 após a absolvição do policial acusado de espancar Rodney King. Caso O.J. tivesse sido condenado e um novo distúrbio tivesse ocorrido, a culpa seria toda de Ito.
No entanto, o veredito foi diferente e Ito foi menos responsabilizado pela absolvição do que os promotores. Um dos pontos positivos do seriado foi justamente recuperar a imagem de Marcia Clark e Chris Darden. No episódio final foi revelado que Clark decidiu entrar para o Escritório da Promotoria devido a um trauma do passado, justamente para ajudar mulheres vítimas da opressão do patriarcado como Nicole; Clark foi abusada aos 17 anos de idade e seu estuprador jamais foi preso. Ela era vista como uma profissional dedicada, sobretudo contra agressores de mulheres. No entanto, por ser uma mulher num universo majoritariamente masculino, enfrentou as mais duras críticas durante o julgamento de O.J. Críticas às quais seus colegas do sexo masculino ficaram imunes.
Seu jeito de falar, de se vestir e até mesmo seu corte de cabelo foram alvo de escrutínio público. Imagine que você está no meio de um julgamento que pode definir sua carreira, tentando fazer justiça em nome de duas famílias, quando é informada pelo seu chefe de que seu ex-marido vendeu fotos de você nua para um tabloide. Marcia Clark teve que passar por isso. Só que há 21 anos atrás, quando ninguém via problema nisso. Slut-shaming sequer era um conceito existente naquela época, em que chamar uma mulher em posição de poder de "vadia" era comum. Descobrindo o até então desconhecido lado humano da promotora, revelado pela série, várias pessoas desculparam-se a ela pelo Twitter. Ellen DeGeneres mostrou as mensagens à verdadeira Clark em seu programa e ela marejou os olhos.
Espero que a História seja um juiz mais imparcial de nossas líderes femininas do que nós. Para Marcia Clark foi. |
Talvez não seja tarde para pedirmos desculpas para nossas mulheres em posição de poder aqui no Brasil. Levou 21 anos para o grande público americano perceber que foi manipulado por uma farsa jurídico-midiática e que agiu de uma maneira sexista contra uma mulher que não inventou um sistema cheio de falhas. Marcia Clark apenas trabalhava para esse sistema, tentando tirar o melhor dele para os cidadãos que precisavam de sua ajuda. Ela ficou tão enojada quanto qualquer um ao descobrir o nível de racismo existente nas instituições com as quais trabalhava. Hoje as pessoas percebem isso e pedem-lhe desculpas. Se não for possível pedir desculpas a nossas mulheres — e tendo a crer que não será num futuro tão próximo — espero que pelo menos a História seja um juiz mais imparcial de nossas líderes femininas do que nós estamos sendo. Pelo menos para Marcia Clark foi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário