Algumas coisas é definitivamente preciso ver para crer. Já tinha visto várias vezes, nas redes sociais, fotos de outdoors com a inscrição "Não pense em crise, trabalhe!", mas o impacto foi completamente diferente quando vi um anúncio com a frase ao vivo. Estava na Avenida T-6. Na ocasião, tinha ido ao Fujioka com minha mãe para comprar uma televisão e, saindo da loja, vejo o outdoor que conseguiu tirar toda a alegria da compra que havíamos terminado de fazer. A sensação que tive foi de morar numa ditadura totalitária onde é proibido discutir o porquê de uma minoria ser rica e frequentar os melhores restaurantes e bares enquanto a maioria labuta duro e nem tem o que comer direito. Parece a China onde colocam redes nas janelas das fábricas de produtos eletrônicos para evitar que os operários cometam suicídio. "Não pense em suicídio, trabalhe!". O correspondente do Los Angeles Times, Vincent Bevins, foi certeiro ao dizer que a frase do novo presidente brasileiro parecia saída do departamento de propaganda da antiga União Soviética.
"O trabalho liberta", frase contida na entrada dos campos de concentração construídos pela Alemanha. |
A crise brasileira — que não é só econômica — não é o Beetlejuice. Ela não vai desaparecer contanto que não falemos dela. Ela está por todos os lados: está no mendigo que lhe estende a mão no sinal e até mesmo na notícia da moça que foi estuprada por três dezenas de homens numa favela da cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Questionar qual a ligação entre ambos os fatos e a decadência política-econômica e, principalmente, moral do Brasil, é algo que incomoda as autoridades, sobretudo aquelas filiadas a partidos que defendem que as injustiças sejam resolvidas com a intervenção da polícia ostensiva. Não é por acaso que governos autoritários interditam o debate sobre questões sociais. Quem pensa incomoda. "Não pense, trabalhe!". A negação, seguida de um verbo de discussão me lembra uma frase dita pelo ditador português António Salazar: "Não discutimos a glória do trabalho e o seu dever". "Não discutimos". Como é possível uma nação crescer sem questionar seus problemas e, no caso do Brasil, sem questionar a relação desigual entre capital e trabalho?
O Brasil já tentou avançar valendo-se da retórica nazista que, ao mesmo tempo em que exigia servidão, negava à população o direito de debater sobres os problemas que afligiam-na. Em 1974, o "país do futuro" enfrentava uma crise de meningite que matou quase 3.000 crianças apenas nas duas maiores cidades do país. A ditadura militar, valendo-se da censura prévia em vigência desde 1968, proibiu os veículos de comunicação de informar à população sobre a epidemia, contribuindo para ainda mais mortes. A população não podia descobrir que o governo que reorganizaria o Brasil, que tirou-o das mãos dos comunistas comedores de criancinhas e que promovia o "milagre econômico" falhava naquilo que deveria ser o mais básico num país civilizado: garantir o direito à vida dos pequenos. Questionar o governo era questionar a própria nação e um agressivo slogan convidava os insatisfeitos com o regime a deixar o país: "Brasil: Ame-o ou deixe-o!". Assim como no governo atual, um outro slogan exigia da população que trabalhasse, ou melhor, servisse ao país: "Quem não vive para servir ao Brasil, não serve para viver no Brasil". Não é à toa que a bandeira presente no logo do governo Temer seja aquela usada até 1968. Sua publicidade inspira-se no regime militar!
"Enquanto estivermos lutando, trabalhe pela vitória". Pôster da Alemanha Nazista. |
A servidão, ou melhor, o sacrifício coletivo pelo bem da nação é uma ideia reforçada a todo o momento nos governos autoritários, que se impõem pela força e não pelo voto (como é o caso de Michel Temer). Certa vez, Adolf Hitler proclamou que a Alemanha teria sido mais bem sucedida caso tivesse sido uma nação não-cristã: "Por que não temos a religião dos japoneses, que coloca o sacrifício pela pátria como maior bem? (...) Por que tinha que ser o cristianismo, com sua resignação e flacidez?". Por que Hitler disse isso se a ideia de que o trabalho dignifica o homem é bastante presente na Alemanha, onde Max Weber publicou A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo? Porque nas mentes dos líderes autoritários Estado e governo confundem-se e quem não está pronto para se sacrificar pelo governo é visto como um traidor da nação. É essa a ideia que Michel Temer busca incutir nas mentes dos brasileiros. Conta para isso, com a ajuda de líderes religiosos como Silas Malafaia e Marco Feliciano, que incorporam mais o espírito capitalista do que o Espírito Santo. A esses líderes, não interessa um povo pensante. "Não pense em crise, pague o dízimo!".
Apesar da exigência do sacrifício, quase sempre os líderes autoritários moram em palácios luxuosos e andam em carros de luxo. No entanto, não se pode enganar a todos ao mesmo tempo. O tabloide britânico Daily Mail já percebeu a dissimulação de um presidente que propõe cortes nos gastos orçamentários com a área social manter os muitos caprichos da esposa, descrita como sendo uma versão tropical de Maria Antonieta. Tenho certeza de que até mesmo os alemães de meados da década de 1940 percebiam que seu führer levava uma vida relativamente tranquila enquanto seus filhos morriam nos campos de batalha em sacrifício pela nação. Só que, obviamente, tinham medo de dizê-lo publicamente. E aí é que está uma questão essencial para a sobrevivência do governo Temer. Começa a cair sua máscara — e também a dos grupos "apartidários" que colocaram-no no poder. Como ele fará para mantê-la e garantir-se no cargo? Será que a única coisa que ele — que assim como Hitler ascendeu ao poder graças a um golpe parlamentar — vai tomar emprestado dos nazistas será a retórica? Espero que sim.
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