Estátua de Wilberforce na Abadia de Westminster, próxima à de Pitt. |
O título desse post é o que deveria ser o título em português de Jornada Pela Liberdade (Amazing Grace, 2006, Michael Apted). O filme em questão mostra a trajetória do deputado britânico William Wilberforce (Ioan Gruffudd), que lutou durante duas décadas pela aprovação do projeto de lei que punha fim ao tráfico negreiro nos territórios do Reino Unido. Ontem, as províncias da Comunhão Anglicana celebraram sua memória e a Organização das Nações Unidas comemorou o Dia Internacional pelo Fim do Tráfico de Pessoas. O mentor de Wilberforce na luta contra a escravidão foi o reverendo anglicano John Newton, que, antes de seguir a carreira religiosa, foi capitão de um navio negreiro. Newton dizia que era acompanhado por 20.000 fantasmas, ou seja, cada um dos africanos que transportou para o continente americano. Quando encontrou a Graça Maravilhosa, abandonou seu trabalho inglório e dedicou-se a denunciar a escravidão. Um dos meios encontrados foi a música. Sua composição "Amazing Grace" é, hoje, um dos ícones da comunidade negra que ainda luta por direitos iguais no continente americano.
Wilberforce é venerado pelos anglicanos como Testemunha Profética. A Comunhão Anglicana não possui um mecanismo formal de canonização de membros ilustres de sua fé, e evita chamar de "santos" todos aqueles que são venerados desde a separação da Igreja da Inglaterra da Igreja de Roma. Testemunhas Proféticas são todos aqueles que vieram a este mundo profetizar a mensagem de Jesus Cristo através de ações que exemplificam o modo de vida cristão. Wilberforce, como todo verdadeiro cristão, amava indiscriminadamente todas as criaturas de Deus, em especial aquelas que eram as mais oprimidas. Além do movimento abolicionista, foi também um dos pioneiros do movimento pelo fim dos maus tratos aos animais na Inglaterra. Na década de 1780, ainda um jovem deputado, defendeu uma solução pacífica para a Revolução Americana, o que lhe custou a oposição de poderosos deputados conservadores como o Duque de Clarence, filho do rei George III, e Banastre Tarleton, conservador que, interpretado pelo ator irlandês Ciarán Hinds no filme, lembra em muitos aspectos o atual enfant terrible do Congresso brasileiro Eduardo Cunha.
Assim como Cunha, os deputados que colocavam travas ao desenvolvimento da Inglaterra em questões de respeito às liberdades individuais, eram sustentados politicamente por grandes empresas, como a Companhia das Índias Ocidentais, que monopolizava o comércio de açúcar e almas humanas no Atlântico. O que só reforça a discussão que existe hoje no Brasil sobre a importância de afastarmos os poderes econômicos dos poderes políticos. Mas, voltando à Inglaterra do final do século XVIII, é interessante notar como a luta de Wilberforce pela liberdade dos negros coincide com sua renovação espiritual. "Eu não encontrei Deus, Ele me encontrou", diz no filme. E não foi por acaso. Deus encontrou Wilberforce para torná-lo instrumento de libertação dos negros. Não fica evidente no filme porque ele possuía um carinho especial pelos oprimidos, mas eu imagino que seja uma combinação do fato dele mesmo ser discriminado por não ser da nobreza (era burguês) com sua espiritualidade, moldada pelo reverendo Newton (interpretado brilhantemente pelo veterano Albert Finney) e reencontrada na juventude, quando estava à busca de um sentido para sua vida.
O principal motivo pelo qual as pessoas se opunham ao fim do tráfico negreiro era porque elas não conheciam as torturas pelas quais os negros passavam. E, assim como se convencionou chamar os beneficiários do Bolsa Família de "vagabundos", os deputados conservadores acusavam os escravos negros da Jamaica - que jamais tinham visto na vida - de terem condições de vida melhores do que os operários ingleses. Esse, penso eu, é o principal motivo pelo qual as pessoas se mostram favoráveis a medidas potencialmente catastróficas e que punem aqueles que já são punidos pela vida, como a redução da maioridade penal, que irá afetar justamente os descendentes de escravos. Mas isso é tema para outro post. No entanto, desconhecer os efeitos de uma medida não a torna menos nociva e tampouco seus defensores menos cúmplices das injustiças que ela causa. É interessante também notar como o medo do desconhecido - no caso a agitação revolucionária nos Estados Unidos e na França - leva as pessoas a tomarem uma atitude conservadora. Não foi (e ainda é) o medo da Revolução Cubana que levou (e ainda leva) várias pessoas a tomarem posições ultraconservadoras no debate político brasileiro?
Mas as pessoas - e a política - não podem ser movidas pelo medo para sempre. Passada as Revoluções no exterior e após a vitória da Inglaterra nas Guerras Napoleônicas, Wilberforce encontra novamente campo para expôr suas ideias progressistas. Mas o momento ainda exigia certa cautela. Primeiro foi preciso solapar financeiramente as empresas que lucravam com o tráfico negreiro numa jogada política disfarçada de nacionalismo. Com o poder econômico reduzido, elas não poderiam mais comprar deputados e exercer influência sobre o poder político. Foi essencial para essa jogada o fato de Wilberforce ser amigo de longa data do então primeiro-ministro William Pitt (Benedict Cumberbatch). O jovem estadista endossava o deputado abolicionista e até mesmo lhe apresentou às principais lideranças políticas do movimento, com destaque para os Quakers (cujo engajamento político em causas progressistas é notável, sendo que há pouco tempo os religiosos desse grupo eram investigados pela CIA como espiões comunistas). Pitt ainda detém o recorde de primeiro-ministro mais jovem do Reino Unido, assumindo o cargo com 24 anos de idade. É óbvio que a renovação política só foi e é possível com a renovação geracional.
Na primeira vez em que Wilberforce apresentou seu projeto de lei, conseguiu 16 votos favoráveis. Da última vez em que apresentou, apenas 16 deputados votaram contra. Como um colega lhe afirma, ao parabenizá-lo pela vitória, Wilberforce pôde ir para casa e dormir tranquilamente, sabendo que os britânicos não poderiam mais apostar negros em jogos de azar - como o Duque de Clarence faz no início do filme - e nem seriam mais marcados a ferro, como o ex-escravo Equiano relata, para que pudessem saber que não pertenciam mais a Deus e sim a um outro homem. Wilberforce lutou para garantir que todas as criaturas pertencessem ao Criador. Porque o que mais lhe importava na vida era a paixão que ele tinha por todas as marcas da criação divina. Àquele que se posiciona perante uma injustiça e defende que ela cesse, a Graça Maravilhosa pertence. E nem os séculos poderão apagar seu legado.
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