quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O genocídio indígena nunca acabará?

Com informações de Brasil Post, EBC e DCM.

Genocídio começou com os portugueses em 1500 e continua
com os brasileiros, muitos dos quais frutos da miscigenação.
Como boa parte da população desse país, tenho ascendência indígena. No entanto, o processo de embranquecimento da minha tataravó não foi sofisticada igual ao ocorrido na Austrália entre 1905 e 1969. Como a eugenia sempre fez parte do discurso oficial dos brasileiros, era comum antigamente que homens brancos sequestrassem mulheres indígenas para se casarem com elas sem sequer serem questionados por um Estado que tinha vergonha de ser multirracial. Era o famoso "peguei ela no laço" que aposto que muitos de vocês já devem ter ouvido falar. Meu finado avô contava isso sobre sua avó sem entender muito a dimensão racista e machista da expressão. Para ele, era mais uma forma de exaltar nossa ascendência indígena do que de normalizar o genocídio. Discursos assim invisibilizam o fato de que a população indígena do Brasil - ou pelo menos o que restou dela após a dominação portuguesa - foi praticamente dizimada no início do século passado. Segundo Alexander Hinton, 800.000 ameríndios foram mortos no Brasil entre 1900 e 1957.

É um número chocante que não deixou de existir durante a ditadura que foi colocada no poder pela elite, com o apoio da classe média, para acabar com os problemas sócio-econômicos e trazer a estabilidade de volta para o Brasil. Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, pelo menos 8.350 indígenas foram mortos entre 1964 e 1985. O documento alerta que o número "deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas". Os mais afetados, segundo relatório foram os Cinta-Larga, que vivem na divisa entre os estados do Mato Grosso e de Rondônia. Dentre as medidas adotadas pelos fazendeiros para expulsar o povo milenar de sua terra estavam o envenenamento dos frutos de árvores por arsênico, a "doação" de brinquedos contaminados com vírus do sarampo e da varíola e, é claro, assassinatos em emboscadas. 3.500 indígenas dessa etnia morreram durante a ditadura e o total de mortes é de mais de 5.000 desde a década de 1950.

Uma etnia que vem sendo constantemente atacada no Centro-Oeste do país, conforme a fronteira agrícola se expande para áreas ambientais e indígenas, é a dos Guarani-Kaiowá. Há uns dois anos, uma ação de solidariedade a favor da demarcação de terra desses indígenas fez com que milhares de membros do Facebook trocassem seus sobrenomes na rede social para Guarani-Kaiowá. Apesar de bonita e de chamar a atenção para o genocídio dos Guarani-Kaiowá, o ato não foi o suficiente para convencer os agricultores da região a deixarem de atacar os indígenas da etnia. No feriado da Independência, enquanto a maioria comemorava a independência do Brasil de Portugal, os indígenas lamentavam sua dependência a homens brancos corruptos para investigar e punir os responsáveis pela morte de uma de suas lideranças. Em 29 de agosto, o jovem Simião Vilhalva Guarani, de 24 anos, foi assassinado com um tiro na cabeça na Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, na microrregião de Dourados (MS), município localizado a 235 quilômetros da capital estadual Campo Grande. 

Parentes choram a morte de Vilhalva.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) exigiu intervenção federal na apuração dos fatos e punição dos responsáveis, visto que o poder público estadual é alinhado aos interesses dos produtores rurais. "Como é sabido, são subservientes a este segmento do poder econômico em Mato Grosso do Sul", afirmou a ONG em nota pública. O governo estadual permite desde sempre que as terras indígenas sejam ocupadas por fazendeiros com documentos falsificados de posse de terra. Estima-se que pelo menos metade dos documentos de posse de terra no Brasil sejam falsos. Dessa forma, indígenas que foram expulsos de suas terras há 30, 40 anos por jagunços retornaram agora numa tentativa de pressionar o Governo Federal pela demarcação de suas terras, cansados que estão da pobreza e da miséria nos arredores dos centros urbanos e de "fugirem desenganados para viver um cultura diferente", parafraseando a cantora argentina Mercedes Sosa, ela mesma ascendente de ameríndios. Mas eles são encarados como "invasores" pela mídia e pela parte da população que se deixa enganar por ela. É muito conveniente para os agricultores quando a namoradinha dos brasileiros - brancos - se posiciona contra os indígenas.

Desde 22 de agosto, os indígenas Guarani-Kaiowá ocupam fazendas que estão em terras que legalmente lhes pertencem. A demarcação de reservas indígenas deveria ter sido concluída 5 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, ou seja, em 1994. No entanto, a Justiça representa um empecilho ao processo, o que leva à invasão das terras por fazendeiros e à consequente expulsão dos indígenas por jagunços. Em 2005, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou a demarcação das terras Ñande Ru Marangatu em Mato Grosso do Sul. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, atropelando a divisão de poderes estabelecida pela República, suspendeu os efeitos do decreto presidencial. Desde então, a matéria está parada no STF o que, segundo os indígenas, leva morte e destruição a sua tribo. Ao mesmo tempo em que o Judiciário atropela o Executivo, o Legislativo - composto por 160 defensores de fazendeiros na Câmara (31% do total de assentos) e 18 no Senado (26% do total de assentos) - decidiu fazer o mesmo. A Proposta de Emenda à Constituição 215/2000, em tramitação no Congresso, transfere do Executivo para o Legislativo a prerrogativa da demarcação de terras, sob a desculpa de que o Executivo é leniente na questão. Outra proposta, a PEC 71, prevê a indenização da União aos produtores rurais em terras indígenas.


Milícia, boataria e descompromisso


Segundo o Ministério Público Federal (MPF) em Mato Grosso do Sul, os fazendeiros do Estado criaram uma milícia no feriado prolongado para atacar os indígenas. Como prova disso, o MPF apresentou mensagens enviadas no WhatsApp pelo presidente do Sindicato Rural local a fazendeiros da região de Dourados. Nas mensagens, o líder dos ruralistas convocava seus pares a remover os Guarani-Kaiowá à força das fazendas que eles ocupam. Menos de uma semana após a morte de Vilhalva, em 3 de setembro, de 30 a 40 caminhonetes com jagunços atacaram a tribo Guyrakamby'i, fazendo mais de 55 disparos contra os indígenas. A terra já consta como demarcada no site da Fundação Nacional do Índio (Funai), mas uma liminar da Justiça Federal em Dourados, datada de janeiro de 2012, suspendeu o procedimento de demarcação da reserva. No início de agosto, o Tribunal Regional Federal da 3a. Região cassou a liminar e determinou a retomada dos trabalhos da Funai para demarcar a área.

Os ataques recentes a indígenas em conflitos por terra soam como uma antiga canção em nossos ouvidos. O Mato Grosso do Sul é o Estado que mais mata índios no Brasil, seja direta ou indiretamente. Em 2014, foram 41 indígenas assassinados no Estado, o que corresponde a 30% de todos os casos no país. Em 2013, por sua vez, 73 indígenas se suicidaram, o que representou o maior índice em 28 anos. Desde que os Guarani-Kaiowá reocuparam suas terras, espalharam-se boatos de que eles teriam incendiado as fazendas. Um dos principais responsáveis pela boataria foi o ex-governador Pedro Pedrossian Filho, que postou em sua página no Facebook fotos de um celeiro e de máquinas carbonizadas, alegando que retratavam a destruição promovida pelos indígenas após a invasão a uma fazenda da região. A imprensa local repercutiu o boato como fato. O Conselho Indigenista Missionário, por sua vez, comprovou que as imagens ilustram matéria publicada pelo jornal paraguaio Itapuá en Notícias sobre um incêndio ocorrido no último dia 24 numa fazenda do país. Como jornalista por formação, é uma vergonha presenciar colegas se prestando ao serviço de porta-vozes oficiais de um segmento econômico corrupto e assassino. 

O avô a que me referi anteriormente prosperou apesar do Estado durante a ditadura militar e comprou uma fazenda. Sua propriedade nunca foi atacada por indígenas ou sem-terra, e sim por aqueles que se dizem atacados por eles. Grileiros pagavam miseráveis para invadir a terra do meu avô para depois apresentarem um documento falso afirmando serem eles os verdadeiros donos da fazenda. Graças à persistência de meu avô, que conseguia convencer os invasores a sair de suas terras, as investidas deles não prosperaram. Esse é o modus operandi de quem se diz responsável pelo progresso do Brasil, um progresso que nos custa a harmonia ambiental e a paz social. De quem acusa os que colocam a vida acima dos bens materiais de comunistas, como foi o caso da proprietária de uma das fazendas ocupadas, que se apresenta como responsável por colocar alimento na mesa dos brasileiros. A vida não vale nada por aquelas bandas. Após a confirmação da morte de Vilhalva, o ex-governador mostrou-se alinhadíssimo com a criação da força paramilitar: "Na ausência do Estado, temos que fazer a nossa própria segurança". Se o ex-governador escreve isso e sai impune, imagina se algum dia irão punir os assassinos de indígenas, que movimentam milhões e financiam as campanhas dos políticos sul-mato-grossenses. Imagina se irão punir os membros da Bancada Ruralista investigados na Operação Lava-Jato, que representam 63% do total de envolvidos nos desvios de verbas da Petrobrás.

Seria cômico, não fosse trágico, o fato de que quem se apresenta como os responsáveis pela produção do alimento dos brasileiros são os responsáveis pela morte de crianças indígenas por inanição. O Estado brasileiro é uma piada de mal gosto. Garante a todos o direito à vida, mas não consegue nem mesmo pôr fim a um genocídio que já se arrasta por 500 anos. Em 13 de setembro de 2007, o Brasil assumiu um compromisso de assegurar o direito à vida dos indígenas perante a comunidade mundial de nações, ao assinar a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Autóctones. Pelo menos o procurador federal Marco Antônio Delfino de Almeida, responsável pelas investigações contra a milícia, parece ter entendido o recado. "A gente não pode, em hipótese alguma, entender que aspectos patrimoniais podem prevalecer em relação à integridade física das pessoas", afirmou. Resta saber se policiais e juízes entenderam o compromisso feito pelo Estado brasileiro. Pelo grande histórico de impunidade nos julgamentos de conflitos no campo, tendo a crer que não. Como disse o poeta, há quase trinta anos, "quem me dera, ao menos uma vez, que o mais simples fosse visto como o mais importante, mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente".

De um lado, um país desenvolvido. Do outro, um país pobre.
Rezo para que o desenvolvimento nunca chegue à Bolívia.
Um dia, quando não restar mais floresta alguma e a temperatura na superfície da Terra for insuportável, quando a água doce estiver toda poluída e a falta de camada de ozônio obrigar as pessoas a ficar em casa o dia inteiro, quando os frutos das árvores já nascerem podres e o dinheiro não tiver mais valor algum, porque não haverá mais nada para comprar... Aí sim nos lembraremos das "mais belas tribos dos mais belos índios", dizimadas por não fazerem parte da atual lógica consumista, e de como sua relação harmoniosa com o meio-ambiente poderia ter salvado a todos nós. "Quem me dera, ao menos uma vez, explicar o que ninguém consegue entender". É por isso que escrevo. E foi por isso que entrei na faculdade de jornalismo. A questão indígena me toca devido à minha ascendência ameríndia, isso é verdade, mas deveria sensibilizar a todos nós, cidadãos preocupados com o futuro do Brasil, pois nenhum fato é isolado dos demais. Com a vitória dos ruralistas, estamos transformando nosso país num deserto verde, o que já está cobrando sua conta. Assustei-me ontem ao me deparar ontem com uma foto da fronteira entre a Bolívia, país que é referência em assegurar os direitos dos indígenas, e o Brasil. Se a destruição é a chave para o progresso, por que o Brasil é mais desigual que a Bolívia? Com a palavra, os fazendeiros e seus defensores na mídia.

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