Cartaz do filme. |
No último domingo, algumas das maiores comunidades cristãs do mundo - Católica, Anglicana e Luterana - comemoraram a festa litúrgica de São Francisco de Assis. Assim sendo, decidi assistir ao filme Irmão Sol, Irmã Lua (1972) do cineasta italiano Franco Zeffirelli. Filmado seguindo a mesma estética de peças de teatro como Jesus Cristo Superstar e Godspell (ambas de 1970), que tinham como norte a contracultura e se propunham a fazer uma releitura do cristianismo sob a ótica dos movimentos sócio-políticos do final dos anos 1960, Irmão Sol, Irmã Lua narra a famosa história do padroeiro da Itália, Giovanni di Pietro di Bernardone. Apelidado de Francisco (francês) pelo pai, um rico comerciante que era casado com uma francesa e tinha uma grande admiração pela França, o jovem deserta do Exército e busca uma reconexão espiritual com Deus. Após ter uma epifania durante a missa, Francisco abandona todas suas posses mundanas, inclusive as roupas, para viver segundo o Evangelho de Jesus Cristo. Dedica-se a ajudar os pobres numa época em que não existia sequer o conceito de caridade quanto menos o de assistência social. Francisco foi interpretado de maneira entusiástica pelo ator britânico Graham Faulkner, em seu único papel no cinema; reza a lenda que os produtores consideraram oferecê-lo ao cantor e compositor brasileiro Caetano Veloso.
Sua iniciativa é mostrada como análoga às comunas hippies dos anos 1960: uma sociedade alternativa onde a acumulação de riquezas não existe e todos vivem da própria subsistência. Seu movimento logo recebe em suas fileiras outros jovens da cidade de Assis, também cansados de viver uma vida sem propósito. Dentre eles se encontra Bernardo de Quintavalle, um soldado que matou muitos muçulmanos durante as Cruzadas. Ao retornar à cidade, Bernardo é recebido com loas de herói, mas sente que, ao contrário do que lhe foi ensinado, a guerra não o aproximou de Deus. Os jovens que decidem apoiar a causa de Francisco são chamados de loucos, afinal de contas a busca espiritual sempre é rechaçada enquanto a acumulação de riquezas sempre foi apontada como o ideal nas mais diversas experiências de sociedade existentes na história da humanidade. Ser "normal" é ter preocupações mundanas como a luta política, a busca frenética pelo amor e pela validação social e a procura por fama, poder, dinheiro e influência. Quem aponta essa contradição é a personagem de Clara que, embora seja interpretada de maneira magistral por Judi Bowker, poderia ter sido mais explorada.
Ao buscar o apoio dos moradores da cidade, Francisco é incompreendido. Na chuva e com fome, seus seguidores conseguem apenas um pedaço de pão de Clara que, a essa altura, ainda não se havia juntado ao grupo. Francisco tenta obter o perdão dos pais, em vão. Nesse momento, Giocondo, um dos seguidores de Francisco se culpa incessantemente pelo pecado da luxúria. Se por um lado Francisco lhe diz para não se culpar devido ao fato de que eles não eram padres, a quem a castidade é exigida, por outro o despacha para a vida mundana do sexo. O amor carnal jamais é admitido como algo espiritual, é sempre encarado como algo mundano, um "pecado original" que ainda hoje atormenta e aprisiona os seguidores das religiões abraâmicas (Islã, cristianismo e judaísmo). A moral sexual imposta aos fiéis era - e ainda é - bastante rígida. A incapacidade milenar de reconhecer a sexualidade humana como uma das dádivas de Deus foi o que motivou minha saída da Igreja Católica. Jamais serei capaz de entender como um relacionamento sexual saudável e consensual pode ser visto como algo ruim. Acredito firmemente que o êxtase, inclusive sexual, nos aproxima do Criador. E é justamente por acreditar nisso que prefiro não transar com qualquer um.
Após concluir a reforma do templo em ruínas de San Damiano, os franciscanos atraem os pobres da cidade para seus cultos. Atraem também a ira do bispo local que está convicto quanto ao papel da Igreja Católica: "defender a ordem social estabelecida". O bispo autoriza a interdição do templo e, durante a tentativa dos soldados eclesiásticos de fechar a igreja, um dos seguidores de Francisco é assassinado. O ermitão decide, então, buscar uma resposta para a validade de sua luta junto ao papa Inocêncio III. Um dos legisladores da cidade, Paolo, tenta impedi-lo, mas acaba concordando em agendar uma audiência de Francisco com o Papa. Quando os franciscanos chegam a Roma fica nítida a contradição entre o grupo que prega uma vida simples como a de Jesus e a Igreja Católica - rica, poderosa e hierarquizada, mais preocupada com seus jogos de poder do que com a defesa dos predicados morais de Cristo. Embora o filme fosse uma produção britânica, sendo o diretor e co-roteirista Zeffirelli um italiano que ascendeu junto com os movimentos contestatórios dos anos 1960 seria impossível não esperar dele uma cutucada à toda-poderosa Igreja Católica, que volta e meia se mete nos assuntos internos da política italiana.
Se os primeiros cristãos eram em sua maioria pobres que estavam mais preocupados com a salvação espiritual, estando dispostos a se tornarem mártires da nova fé quando atacados pelo poderosíssimo Império Romano, as coisas mudaram drasticamente quando o cristianismo se tornou a religião oficial de Roma. A lógica passou a ser a da imposição forçada da religião e da utilização da mesma para a manutenção do status quo. De repente o bandido Jesus Cristo, morto a serviço de César para evitar um levante contra Roma, estava sendo usado para manter o poder da mesma figura e de seus asseclas. Durante a Idade Média, época em que Francisco viveu, a Igreja passou a ser um instrumento ainda mais forte de manutenção da ordem social injusta. Para evitar revoltas, o Papa permite a instalação de obras de caridade. Numa das cenas finais do filme, Inocêncio III se agacha e beija os pés imundos de Francisco. Um dos conselheiros papais se vira para outro e diz: "Não se preocupe, o papa sabe o que está fazendo. Este homem é a voz dos pobres e o santo padre quer ganhá-los de volta para nós". Parece até estar se referindo ao atual Papa, que não por acaso escolheu se chamar Francisco e denuncia as desigualdades sociais sem jamais propor a divisão das riquezas da Igreja.
Apesar dos usos políticos aos quais sua imagem tem sido submetida, Francisco de Assis é, sim, um exemplo a ser seguido. Que ele deixe de ser usado para propósitos políticos e seja verdadeiramente incorporado por todos nós cristãos. Estou farto de discursos vazios sobre amar o próximo como se ama a si mesmo para, já na saída da igreja, nos digladiarmos para saber se é o PT ou o PSDB que está destruindo o Brasil. Cansei de quem diz "quem sou eu para julgar os gays?" e, em seguida, apoia um referendo homofóbico no Leste Europeu. Chega de usar a mensagem de Cristo para incentivar a acumulação de riquezas! Deus é amor (1 João 4:8) e não poder, ódio ou dinheiro. Se você quiser servir a um desses senhores, que sirva! Mas Jesus é claro quanto a servir dois senhores ao mesmo tempo: "ou odiará um e amará o outro, ou será leal a um e desprezará o outro" (Mateus 6:24). Basta de servir ao Evangelho e a outras coisas que não têm nada a ver com os ensinamentos de Jesus Cristo ao mesmo tempo. E viva São Francisco! Viva todos aqueles que buscam romper a lógica acumulativa, egoísta e segregacionista da sociedade.
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