quinta-feira, 5 de maio de 2016

Não podemos ter tempo para o ódio

Na minha terra prometida,
No Oriente Médio,
O que faremos quanto ao terrorismo?
Na minha terra prometida,
No Oriente Médio,
O que faremos quanto ao fanatismo?
Você e eu em paralelo
Você e eu, somos a chave
(Ofra Haza — "Middle East")

Uma de minhas cantoras favoritas é a israelense Ofra Haza. Nascida em 1957 numa periferia de Tel-Aviv, é a mais nova de nove filhos de Yefet e Shoshana Haza, um casal de imigrantes do Iêmen. As oportunidades eram escassas para os jovens do bairro de Hatikvah, negligenciado por sucessivos governos israelenses, sendo o teatro uma das poucas portas de saída da pobreza. Assim sendo, aos doze anos de idade Ofra se juntou a uma trupe de teatro local gerenciada por Bezalel Aloni, que mais tarde se tornaria seu empresário. Em 1979 ela atingiu o sucesso nacional após protagonizar o filme Schlager, sendo a canção "Shir Ha'frecha", que interpretou no  longa-metragem, um de seus primeiros sucessos. Após lançar três álbuns com o Shechunat Hatikvah Workshop Theatre, Haza finalmente se tornou conhecida o suficiente para lançar seu primeiro disco solo aos 22 anos de idade.

Ofra Haza
Em 1983 Ofra derrotou Yardena Arazi num concurso para representar Israel no Festival Eurovisão. Ela interpretou "Chai", canção escrita por Ehud Manor em homenagem aos atletas israelenses mortos por terroristas árabes nas Olimpíadas de 1972 em Munique, mesmo local em que era realizado o festival. A despeito da resistência que enfrentou de parte da própria sociedade israelense, que se incomodava com sua origem operária e seu sotaque típico de judeus oriundos de outros países do Oriente Médio, Ofra conquistou para Israel uma de suas melhores colocações no festival (o segundo lugar). Em 1988, despontou na Europa e na América do Norte com um remix de "Im Nin'alu", canção tradicional dos judeus iemenitas, composta no século XVII pelo rabino Shalom Shabazi. Ofra atingiu o Top 10 de oito países e o álbum Shaday, que continha o hit, vendeu mais de um milhão de cópias em todo o mundo.

No auge de sua carreira, Ofra Haza se apresentava na Europa e nos EUA, apareceu no Tonight Show de Johnny Carson e se tornou a primeira israelense a ser indicada a um Grammy em 1993. No ano seguinte, cantou na cerimônia de entrega do Prêmio Nobel da Paz a Yitzhak Rabin, Shimon Peres e Yasser Arafat. Apesar do sucesso, Ofra estava dividida entre a carreira profissional e o desejo de sua mãe de que ela formasse uma família, conflito este retratado na canção "Ya Ba Ye", que compôs com Aloni e gravou em 1989 no álbum Desert Wind. Em 1997, sucumbiu à pressão familiar e se casou com o empresário Doron Ashkenazi. Entretanto, ela não só não conseguiu engravidar como ainda teria sido infectada com o vírus da AIDS pelo marido. A doença ainda era alvo de forte estigma na sociedade israelense e, envergonhada de sua condição, Ofra optou por não buscar tratamento médico.

A morte da jovem cantora, aos 42 anos de idade, pegou a todos de surpresa em 2000. Afinal de contas, em 1998 ela havia gravado a canção "Deliver Us" para a animação O Príncipe do Egito, o que significava que as portas de Hollywood estavam se abrindo para ela. Sua morte foi destaque na CNN, sendo uma das poucas, se não a única cantora israelense a ser destaque no canal de notícias. A decisão do jornal Ha'aretz de divulgar a causa da morte de Ofra foi polêmica. Tanto Aloni quanto a família da cantora acusaram Ashkenazi de ter transmitido a doença para a esposa. O viúvo, sob intenso escrutínio da mídia, se defendeu dizendo que Ofra contraiu a doença após uma transfusão de sangue num hospital turco. A família Haza e o viúvo disputaram entre si o espólio da cantora até que Ashkenazi morreu de uma overdose de metanfetamina em 2001.

Além do inglês, Ofra Haza gravava tanto em hebraico quanto em árabe, idioma de seus pais. Em 1984 lançou o álbum Yemenite Songs que incluía canções tradicionais dos judeus iemenitas. Apesar de ser bem vendido, foi boicotado por algumas estações de rádio por ser interpretado em árabe. Apesar disso, a canção "Galbi" foi remixada e fez sucesso nas pistas de dança da Inglaterra, abrindo caminho para o sucesso de "Im Nin'alu" na Europa. Algumas das canções de Ofra, como "Eshal" ou aquela que escolhi para introduzir este post, estendem a mão aos palestinos. Algo que pouquíssimos cantores israelenses fazem hoje em dia. Ofra Haza é o retrato de um Estado de Israel que não existe mais — para o bem (como no caso dos costumes que evoluíram) e para o mal (como no aumento da segregação racial). Deve ser por isso que gosto tanto dela.


Em seu último álbum, epônimo, lançado em dezembro de 1997, Ofra canta que não tem tempo para o ódio. O que mais vejo nos dias de hoje são pessoas arranjando tempo para odiar outras pessoas. Por mais atarefadas que estejam, sempre sobra um tempinho na agenda para manifestar seu ódio. E não apenas em Israel, infelizmente. Em relação ao século passado, a islamofobia tomou o espaço do antissemitismo e a homofobia do racismo. Já o preconceito de classe, esse nunca sai de moda enquanto for mais importante entrar nos portões dos ricos do que no de Deus. Mudam os tempos, mudam os personagens, mas não muda a perseguição e nem o ódio. Nesses tempos de cólera em que vivemos, a música de Ofra Haza me traz um pouco de paz e de esperança, tão difíceis de se encontrar ultimamente. Ela me ensina que não podemos ter tempo para o ódio.

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