terça-feira, 23 de agosto de 2016

Há 80 anos, fascistas matavam a poesia na Espanha


Federico García Lorca (1898–1936)
Há exatos oitenta anos, no início da Guerra Civil Espanhola (1936–1939), o conhecido poeta e dramaturgo Federico García Lorca foi assassinado por soldados fascistas. Um mês antes de morrer, aos 38 anos de idade, Lorca havia terminado de escrever a peça A Casa de Bernarda Alba que, com Bodas de Sangue Yerma, faz parte de sua trilogia rural. A morte, presente nas três peças, é um tema artístico central de sua breve vida. Dez anos antes de ser assassinado, quando morava em Nova York e acompanhou o desespero gerado nas pessoas pela quebra da bolsa, Lorca parece ter previsto o destino violento que encontraria ao compor os seguintes versos: "Então eu percebi que fui assassinado / Me procuraram em cafés, cemitérios e igrejas / Mas não me acharam / Eles nunca me acharam? / Não, eles nunca me acharam". O mais assustador em sua premonição é que até hoje seu corpo não foi, de fato, encontrado.

Poucos artistas representaram e encarnaram o espírito coletivo de sua nação tão bem quanto Lorca – o que torna sua morte ainda mais emblemática. A morte de Lorca precedeu a censura que matou a arte na Espanha. Logo após a eclosão da Guerra Civil, em julho de 1936, Lorca tomou a decisão desastrada de deixar o seguro enclave de Madri para ficar com seus familiares em Granada, a região conservadora em que nasceu. O interior da Espanha e seus costumes fascinavam Lorca, que retratou-o em suas peças. Imediatamente após sua chegada, Granada foi sitiada pelo partido político paramilitar que orquestrou o golpe de Estado contra o presidente Manuel Azaña, a Falange Espanhola. Apesar de cultivar uma imagem pública de artista apolítico, sua associação com a República, suas peças contra a repressão e algumas declarações anti-católicas em entrevistas transformaram Lorca num alvo em potencial dos conservadores. Outro fator que contribuiu para o ódio dos falangistas ao poeta era sua homossexualidade.

Lorca manteve-se escondido, mas os falangistas caçaram-no até o dia 16 de agosto, quando foi preso e condenado à morte sem base legal ou julgamento. Às três da madrugada de 19 de agosto, foi algemado a um outro prisioneiro – um professor – e lavado de carro a um prédio chamado La Colina na cidade Viznar, que a Falange havia transformado em presídio para prisioneiros políticos. Pouco após o amanhecer, Lorca foi levado para o lado de fora do edifício, onde foi fuzilado ao lado do professor e de dois toureiros, membros do sindicato anarquista CNT. Segundo uma testemunha, o poeta foi levado para uma sala antes da morte, onde foi torturado devido a sua homossexualidade. Lá, balas foram enfiadas em seu ânus. Após o fuzilamento, o corpo de Federico García Lorca, um dos maiores escritores do século XX e um dos filhos pródigos da Espanha, foi lançado sem cerimônia num barranco, que em breve se tornaria uma vala comum para as vítimas dos falangistas.

Barranco de Viznar, onde o corpo de Lorca teria sido jogado.
Após seu fuzilamento, os livros de Lorca foram queimados publicamente na Plaza del Carmen em Granada e, com a ascensão ao poder do caudilho Francisco Franco, sua obra foi rapidamente banida de todas as províncias da Espanha. Anticlericalismo, republicanismo e liberdade não eram valores que interessavam ao novo regime integralista, que promovia o nacionalismo, o militarismo, o catolicismo, o anti-comunismo e o anti-libertarismo. E a homossexualidade? Existe algo mais subversivo para um governo escorado no fundamentalismo católico da Opus Dei do que relações entre pessoas do mesmo sexo? Em 1953, uma versão censurada das Obras Completas de Lorca foi lançada. Entre as ausências mais notáveis da antologia encontra-se o poema homoerótico "Sonetos do Amor Obscuro", escrito em 1935. Este era considerado perdido até os anos 1980, quando foi publicado na forma de rascunho, uma vez que a versão final do poema jamais foi encontrada.

A última peça de Lorca, A Casa de Bernarda Alba, só foi encenada pela primeira vez em 1945 em Buenos Aires. Vinte anos mais tarde, uma versão censurada da peça foi apresentada na Espanha, mas a censura ao resto da obra do poeta só terminou após a morte do caudilho em 1975. Durante o francoísmo, menções à vida e à morte do poeta também foram censuradas. Para a narrativa oficial dos vencedores da guerra, Lorca nunca existiu. Foi somente após a morte de Franco, em 1975, que a Espanha pôde finalmente discutir abertamente sobre a morte de um de seus maiores ícones literários. Além da censura política, havia uma relutância da família García Lorca em permitir a publicação de seus poemas e de suas peças. Era um trauma que não estavam prontos para reviver. Devido ao fato de ter se tornado um assunto proibido por 36 anos, até hoje não se sabe ao certo onde estão os restos mortais do poeta. Atualmente suas peças são encenadas frequentemente na Espanha.

Monumento em Viznar: "Lorca era todos". Era? A depender
da direita brasileira, histérica, Lorca serei eu.
Embora imagina-se que exista um dossiê sobre o assassinato de Lorca, a falta de emersão do mesmo continua a atormentar sua família. Em 2009, um juiz espanhol abriu uma investigação sobre as circunstâncias do assassinato de Lorca e a família do poeta finalmente permitiu que fosse realizada uma busca a seus restos mortais no Barranco de Viznar. Segundo Ian Gibson, biógrafo de Lorca, esta ação foi adiada por tempo demais: "Acho que é essencial encontrar o corpo, em respeito à memória de Lorca. Só sua morte renderia 100 livros... Lorca pertence à humanidade e não a sua família. Ele é um emblema que deu sua vida pela Espanha. Ele é um mártir". Apesar da iniciativa, nada foi encontrado no local. Enquanto o assassinato de um dos maiores poetas do século passado é relembrado em todo o mundo, o Brasil ataca seus poetas e deixa-se fascinar pela mesma histeria fascista que permitiu à Espanha matar sua arte e embarcar em 36 anos de trevas. Como escritor, gay e libertário (assim como Lorca) não posso deixar de me incomodar com este paralelo histórico.

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