quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Até que enfim, Aung San Suu Kyi

Há 25 anos a política birmanesa Aung San Suu Kyi foi eleita presidenta de seu país. Seu partido, a Liga Nacional pela Democracia (LND) obteve 60% dos votos e 81% dos assentos no Parlamento. A última vez que os birmaneses haviam votado havia sido em 1960. Em 2 de março de 1962, militares liderados pelo General Ne Win promoveram um golpe de estado no país. Desde então, o governo do país esteve sobre o controle, direto ou indireto, do Exército que, vejam só, foi fundado pelo pai de Suu Kyi para expulsar os dominadores britânicos do país. Entre 1962 e 1974, Burma foi um país socialista onde todos os aspectos da vida social (meios de produção, negócios e mídia) eram nacionalizados e pertenciam ao governo, que seguia o estilo de planejamento central dos soviéticos. Até 1988, foi governado como um Estado de partido único, com o General Win liderando o país com punhos de ferro. A essa altura, Burma se tornou um dos países mais pobres do mundo.

Suu Kyi discursa para meio milhão de pessoas em agosto de
1988. Em maio de 1990, seu movimento político venceu as
eleições, mas foi impedido de assumir o Parlamento.
Durante o governo de Ne Win, os protestos esporádicos contra o governo eram reprimidos violentamente. Em 7 de julho de 1962, o governo invadiu a Universidade Rangoon para impedir a realização de um protesto e matou 15 estudantes. Em 1988, no entanto, uma acentuada crise econômica, aliada à forte repressão política, deu lugar à Revolta de 8/8/88, quando milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra o governo ditatorial do país. As forças de segurança mataram milhares de manifestantes e o General Saw Maung se aproveitou da insatisfação popular para orquestrar um golpe de estado e derrubar Ne Win. Nesse ínterim, a ex-funcionária da ONU Aung San Suu Kyi retornou ao país, fundou a LND e liderou marchas contra o autoritarismo, chegando a discursar para meio milhão de pessoas na frente do templo Shwedagon Pagoda. O novo governo, no entanto, declarou estado marcial. Por outro lado, planejou eleições para a Assembleia Popular em 1989. Foi nessa época que o nome do país mudou de Burma para Myanmar.

Em maio de 1990 o governo finalmente realizou as primeiras eleições livres do país em 30 anos. Se o resultado tivesse sido respeitado, a LND teria assumido 392 dos 492 assentos do Parlamento e Suu Kyi teria sido eleita presidenta pelos deputados. No entanto, a junta militar se recusou a sair do poder e manteve Suu Kyi em prisão domiciliar por 15 anos. Quando seu marido foi diagnosticado com câncer de próstata ela recebeu uma proposta dos militares: poderia deixar o país para cuidar dele, mas não poderia retornar mais. Ela decidiu ficar e ele morreu em 1999, havendo visitado-a pela última vez no Natal de 1995, última vez que o regime lhe permitiu entrar no país. A repressão continuou forte. Em 2007, o governo teria matado monges budistas que protestavam contra o aumento do preço da gasolina. Como resultado, as sanções internacionais contra o país aumentaram. Em agosto de 2009, tropas militares entraram em confronto com minorias étnicas no estado de Shan, causando a fuga de mais de 10.000 membros das etnias Han, Wa e Kachin para a província chinesa de Yunnan.

Em 2008, uma nova Constituição foi aprovada num referendo. Eleições gerais foram realizadas em 2010 e uma série de observadores internacionais descreveram irregularidades que teriam ocorrido nos locais de votação, o que levou a ONU e um número de países ocidentais a declarar as eleições como fraudulentas. A União da Solidariedade e do Desenvolvimento (USD), apoiada pelos militares, foi declarada vencedora do pleito, enquanto a LND boicotou a eleição por não concordar com uma série de pontos da nova lei eleitoral. A junta miliar foi dissolvida em 30 de março de 2011 e Thein Sein, líder da USD, foi nomeado presidente de Myanmar. Muitos analistas são críticos da transição à democracia. Assim como no Brasil, os militares só aceitaram devolver o poder aos civis se suas benesses não fossem cassadas e se eles não fossem responsabilizados pelos crimes que cometeram no passado. Para citar um exemplo, 25% de todos os assentos do Parlamento é reservado aos militares, independente de concorrem na eleição ou não.

De qualquer forma, Thein Sein conduziu algumas reformas: deu anistia a mais de 200 prisioneiros políticos – o que libertou Suu Kyi – e aprovou uma lei trabalhista que prevê a organização dos trabalhadores em sindicatos e a realização de greves (algo inédito na história do país). Além disso, a censura à imprensa foi relaxada. Em 2012, o governo derrubou os artigos da lei eleitoral aos quais a LND se opunha, o que fez com que o partido aceitasse participar das eleições suplementares daquele ano, conquistando 43 dos 45 assentos em disputa e elegendo Suu Kyi como líder da oposição. Apesar dos avanços, o governo mantém 100 prisioneiros políticos presos e falha em garantir os direitos das minorias, em especial dos muçulmanos da etnia Rohingya. Os ataques anti-islâmicos promovidos por monges budistas radicais, preocupados com a diminuição da população budista do país (atualmente o budismo é a religião de 80% dos birmaneses) e criados sob a égide ultranacionalista das juntas militares, rendeu a condenação do Dalai Lama.

Suu Kyi passou 15 anos presa para que a
decisão de 25 anos atrás pudesse ser
respeitada.
No último dia 8, foram realizadas eleições para determinar a nova composição do Parlamento de Myanmar. Após a posse da nova legislatura, será realizada uma eleição indireta para definir quem será o novo presidente da nação. Suu Kyi, que havia sido instigada pelo Dalai Lama a apoiar os direitos civis da minoria muçulmana, manteve-se calada sobre o tema durante todo o tempo em que foi líder da oposição e, mais recentemente, candidata ao parlamento pelo distrito de Kawhmu. Ela não quis arriscar perder a presidência mais uma vez. Monges budistas como Ashin Wirathu acusam-na de apoiar a minoria e até de ser muçulmana em segredo. Velha tática da direita religiosa para tentar destruir a imagem de políticos cujo discurso de reforma das estruturas da sociedade representam uma ameaça a seu projeto de dominação através da exploração da pobreza – material e espiritual – dos seres humanos. Como disse a própria Suu Kyi num de seus discursos mais famosos, "não é o poder que corrompe, mas o medo de perder o poder". 

Apesar da coordenação de forças religiosas e militares, a LND obteve 60% dos assentos no Parlamento de Myanmar. Suu Kyi agora luta contra o tempo para derrubar um artigo da Constituição de 2008. O texto constitucional, refletindo o ultranacionalismo dos militares que o redigiram, proíbe cônjuges e pais de estrangeiros a exercer a presidência da República. Suu Kyi é viúva do historiador britânico Michael Aris (1946–1999) e, assim sendo, seus filhos possuem também nacionalidade britânica. O artigo da Constituição foi escrito para impedi-la de assumir a presidência da nação. Independente da decisão do tribunal constitucional, que será pressionado tanto por militares e radicais budistas quanto por organismos internacionais, Suu Kyi irá definir os rumos de seu país. Ela já afirmou e seu partido reforçou que será ela quem exercerá o poder de facto no novo governo de Myanmar. Nada mais justo. Esse era o desejo de seu povo em 1990. Esse é o desejo de seu povo em 2015. Suu Kyi, carinhosamente chamada pelos birmaneses de Amay Suu (Mamãe Suu), teve de esperar 25 anos, mas finalmente poderá pôr em prática seu plano de transformação de uma das sociedades mais pobres do planeta. Até que enfim, Aung San Suu Kyi!

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