Acusar o interlocutor de ser "politicamente correto", como se isso fosse algo censurável, é a negação do debate. O indivíduo só consegue atingir o crescimento intelectual através da partilha de ideias, do debate. Mas é, contudo, mais fácil encontrar um inimigo poderoso e até certo grau fictício (a religião organizada, o Islã, a secularização da sociedade, o "marxismo cultural", o "bolivarianismo" e, é claro "a ditadura do politicamente correto") do que encarar as várias cores das questões que estão sendo apontadas. Nenhuma questão sócio-política é dualista. Quando tratamos algo como sendo ou bom ou ruim, sem um meio termo, incorremos na falácia da dicotomia. O fato é que não existe apenas dois lado para cada história. Há milhares de lados para cada questão.
A religião organizada, por exemplo, não é o antro apenas de fanáticos retrógrados. É algo que eu tenho presenciado em minha jornada na Igreja Episcopal. De maneira semelhante, a maioria dos muçulmanos que moram no ocidente buscam se integrar às sociedades das quais fazem parte e não querem implementar a sharia (de fato, a maioria deles votou em Barack Obama nos Estados Unidos). A secularização é menos responsável pelo fim do Natal do que o consumismo e o "marxismo cultural", apesar dos ares de teoria acadêmica, não passa de uma formulação criada pela extrema-direita estadunidense para rejeitar as políticas a favor das minorias sem ser chamada de racista. O que esse segmento da sociedade, que nunca aceitou de fato o fim da segregação racial, chama de "ditadura do politicamente correto" nada mais é do que a negação do debate sobre racismo numa sociedade cuja a base de sua fundação sócio-econômica foi a escravidão.
Concordo que certas críticas à "apropriação cultural" são exageradas. Alguns artistas querem apenas honrar culturas que eles respeitam, como foi o caso da performance japonesa de Katy Perry no American Music Awards. No entanto, alguns indivíduos, notadamente os comediantes, nada têm a acrescentar ao debate sobre apropriação cultural e quais formas de expressão devem ser aceitas ou não pela sociedade. Atuam como defensores do status quo ao defender um suposto "direito" à ofensa. Fazer piada de estupro, se vestir de índio ou de Osama bin Laden no Carnaval ou comparar negros a macacos é reforçar esterótipos negativos em relação a grupos mais complexas do que a representação midiática deles. Há uma linha tênue que separa a liberdade de expressão do crime de discurso de ódio. E "acusar" o interlocutor de ser "politicamente correto" não faz ninguém ganhar um debate. Pelo contrário, trata-se da falácia da dispersão.
Desqualificar as pessoas que lutam pela igualdade social, acusando-as de serem "politicamente corretas" é, para mim, um ataque à própria ideia de democracia, que supõe o livre debate e a pluralidade de ideias, que podem e devem co-existir pacificamente. Quem sou eu, enquanto homem branco, para dizer a uma mulher ou a um negro o que eles podem achar ofensivo? Não sei o que é ter meus direitos básicos tolhidos por ser mulher ou negro. Sem falar que, se eu tentar censurá-los, impedi-los de levantar questões que o incomodam então eu estarei atuando contra a liberdade de expressão. O que chamam pejorativamente de "ditadura do politicamente correto", prefiro denominar de "sensibilidade às minorias" (onde entra a mulher que, apesar de ser 52% da população brasileira, é tratada como uma minoria pelos sociólogos por questões de dominação histórica).
A chamada "regra de ouro" da sociedade - não faça ao outro aquilo que não gostaria que fizessem a ti - presente em Lucas 6:31, resolveria muitos problemas caso não fosse meramente um discurso vazio. Esse mundo seria realmente melhor se pudêssemos simplesmente nos colocar no lugar uns dos outros. As tensões raciais praticamente desapareceriam e pararíamos de culpar a vítima do estupro por ter sido abusada. No entanto, é bem mais fácil desqualificar e ridicularizar aqueles que lutam por uma sociedade mais equânime, chamando-os de nomes supostamente ofensivos (argumentum ad hominem), como se isso fosse fazer desaparecer os questionamentos que essas pessoas trazem. Como diz minha mãe, é fácil apontar o dedo para os outros. Apontar o dedo para si mesmo exige um pouco mais de esforço.
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