quarta-feira, 27 de julho de 2016

O "Escola sem Partido" não começou hoje – é parte da nazificação do Brasil

Ele. Deputado federal Izalci (PSDB-DF).
Muitos amigos, principalmente aqueles ligados às ciências humanas, estão chocados com o projeto de lei 867/2015, de autoria do deputado federal Izalci (PSDB-DF), que institui o programa "Escola sem Partido". Não estou assim tão chocado. Lembro-me bem quando essa história de que há "doutrinação marxista" nas escolas brasileiras começou. Foi em agosto de 2008 e eu estava no primeiro ano da faculdade de jornalismo da PUC-GO (então UCG). A revista Veja distanciava-se cada vez mais da narrativa factual da vida brasileira para se tornar o panfleto semanário oficial dos opositores do governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A linha editorial da revista deixou de ser formulada por jornalistas para ser ditada por militantes políticos de extrema-direita, discípulos do astrólogo e autodenominado filósofo Olavo de Carvalho, tais como Reinaldo de Azevedo e, posteriormente, Rodrigo Constantino. Um ano depois, o Supremo Tribunal Federal decidiu que para exercer o ofício de jornalismo não é preciso diploma de curso superior em comunicação social. Desde então, tornou-se cada vez mais recorrente a invasão da narrativa factual dos acontecimentos, ouvindo-se todos os lados de um assunto, por um discurso de pânico recauchutado do macartismo.

O que aconteceu, sem maiores delongas, foi o seguinte: um repórter da referida revista veio até Goiânia, onde assistiu a uma aula de história para alunos do ensino médio no Colégio Ateneu Dom Bosco. Trata-se de uma das mais tradicionais escolas privadas da capital goiana, de orientação católica romana e frequentada sobretudo por jovens oriundos de lares de classe média. Ao invés de simplesmente relatar o que ocorreu na sala de aula, o repórter escreveu uma matéria completamente tendenciosa, acusando o professor de tentar doutrinar seus alunos. O professor em questão discutia os efeitos nefastos do capitalismo sobre a experiência humana – algo que alguém que já ouviu os discursos do Papa Francisco perceberá que é completamente compatível com a doutrina social da Igreja, que nada tem de marxista. A discussão havia começado após os alunos terem ouvido a música "Homem Primata" da banda oitentista Titãs. Trata-se de uma canção extremamente popular, que foi a 25ª música mais executada nas rádios brasileiras no ano de 1987. O Titãs não é uma banda que se autodeclara comunista como o Rage Against The Machine e só porque eles têm uma música que critica o capitalismo liberal não significa que são comunistas. Podem ser capitalistas keynesianos.

Seguindo a lógica da Veja, os Titãs são comunistas perigosos
que deveriam ser banidos da rádio por doutrinação marxista.
O repórter responsável pela matéria fez uma grande flexão intelectual para ligar os versos "Ô, ô, ô / homem primata / capitalismo selvagem" aos cursos de pedagogia e à obra do pedagogo Paulo Freire, que ele mesmo julgou nula. Freire sequer é amplamente estudado nos ambientes acadêmicos. E, por falar nisso, uma das lições mais importantes que aprendi na faculdade é que "o jornalista só fala através de suas fontes". O repórter da Veja fez pior: valeu-se da boa fé de sua fonte para desmerecer o trabalho pedagógico de um professor que, a despeito de estar inserido num ambiente conservador, conseguiu iniciar um debate com seus alunos sobre a realidade que os cerca para além dos muros dos prédios onde vivem. O também católico Hélder Câmara resumiu bem a hipocrisia brasileira: "Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo, mas quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista". Debater os problemas gerados pelo capitalismo – e nenhum sistema econômico é perfeito – é algo perfeitamente normal. É o que democratas estão fazendo nesse exato momento na Convenção Nacional do Partido Democrata. Promover uma discussão sobre o capitalismo liberal, que sequer é a única forma de desenvolvimento capitalista, está longe de ser doutrinação marxista.

Mas qual é o problema em debater as diversas formas de organização econômicas já existentes e propostas? O problema é que o debate torna os alunos conscientes para o fato de que o capitalismo liberal não é a única forma possível de organização econômica da sociedade. Questionar a realidade que nos é imposta incomoda os representantes do status quo. Os donos da Veja só são ricos graças ao capitalismo liberal. Mesmo o capitalismo estatista ou keynesiano desagrada-lhes. Querem que a sua seja a única revista presente nas salas de espera de consultórios médicos e salões de beleza. Lula subiu no ringue com a revista quando decidiu reduzir sua verba de publicidade para desenvolver a mídia independente e regional. A revista Veja, ao contrário do que insinua seu slogan, não é indispensável para se tornar bem-informado e inteligente. Ela mantém seus leitores na ignorância ao retratar todos aqueles que são contra o capitalismo liberal como comunistas comedores de criancinhas. E preocupa-lhe que alguns agentes sociais estejam esclarecendo as pessoas sobre as diferentes formas de organização econômica diferente daquela que é a sua preferida. A Veja tem medo que as pessoas se tornem esclarecidas e ela se torne dispensável.

À Veja não interessa que seus leitores saibam que o modelo
atual de capitalismo promove a desigualdade de renda.
E se algum daqueles jovens no Ateneu decidir que quer trabalhar como médico na periferia? É o fim da rígida sociedade de castas à brasileira. Para manter os privilégios de uns poucos no capitalismo liberal, a maioria deve ser sacrificada. Isto está ficando cada dia mais claro, inclusive nos Estados Unidos. Este é um dos fatores que ajudam a explicar o fenômeno que é Donald Trump. Sim, ele é bilionário, mas se apresenta como o candidato do anti-status quo. E ninguém chamaria-o de comunista. Ser contra as coisas como elas estão está muito, muito longe de ser comunista. O próprio Paulo Freire, figura tão execrada ultimamente em seu país, estava longe de ser um militante comunista. Ele baseou sua análise sobre a forma de organização da sociedade em Marx, é claro, mas isso não transforma alguém automaticamente em comunista. De forma semelhante, sua obra agora é a terceira mais citada em trabalhos acadêmicos de universidades estadunidenses, o que não significa que os acadêmicos sejam marxistas ou sequer freirianos. Além do mais, Freire era membro do Partido dos Trabalhadores que, no poder, mostrou ser um tradicional partido social-democrata, ou seja, que promove o capitalismo estatista. E foi justamente isto que me atraiu no PT.

Aqui é permitido ler e discutir a obra freiriana.
Em 2010, quando passei um mês no Canadá, em intercâmbio, vi A Pedagogia do Oprimido numa estante da livraria da Universidade de Victoria. Imediatamente lembrei-me da ofensa proferida contra Freire no panfleto político da Editora Abril. Fiquei emocionado por ver um brasileiro que não era jogador de futebol sendo reconhecido no exterior. Ao mesmo tempo, fiquei triste pela forma como ele é tratado pelos pseudointelectuais do Brasil. Pensei comigo mesmo: precisei vir a 10.000 quilômetros de casa para finalmente ver Paulo Freire sendo reconhecido pela revolução que propôs na pedagogia e que serviu de modelo para o sistema educacional dos países escandinavos – países capitalistas estatistas, diga-se de passagem –, mas jamais para seu próprio país. Aqui damos crédito àqueles que querem livrar a escola de uma suposta "doutrinação marxista" sem nem saber explicar por quê. Não há como manter um debate inteligente com quem quer interditar o debate baseando seus argumentos numa revista que, a despeito de estar presente em todas as salas de espera do país e também nas salas de aula do estado de São Paulo, não consegue sobreviver sem a teta generosa da Secom e teve que promover um golpe de Estado para não ir à falência.

Essa história de "Escola sem Partido" não começou hoje, infelizmente. Estamos presenciando apenas o seu apogeu. Tudo começou quando a mídia brasileira decidiu agir como um partido político, dando espaço para pseudointelectuais como Constantino e Azevedo e permitindo que eles atacassem a nata do pensamento acadêmico pátrio para prejudicar o PT. Também deve-se destacar a guinada à direita do PSDB, que percebeu que teria mais chances de derrotar o PT se apostasse no neoconservadorismo. No meio disso tudo está a classe média, que, ansiando por uma mudança ainda maior do que aquela que os governos do PT propiciaram, permitiu ser utilizada como massa de manobra das forças conservadoras. No entanto, os idiotas úteis não estão voltando para os braços do PSDB. Já perceberam seu jogo sujo e se desencantaram com a política como um todo. O resultado final do processo de destruição do PT – indesejado pelas forças conservadoras da mídia e da política – é a nazificação do Brasil. E o nazismo não é muito exigente ao escolher suas presas. Não adianta falar "não somos do PT". Vai ser preciso provar, pois o maior desejo do nazista é eliminar seus inimigos e qualquer desculpa serve para justificar sua sede de extermínio. Enxergam apenas o que querem, pois bebem sempre a água da mesma fonte.

O nazismo não é muito exigente com suas vítimas.
Uma dessas fontes é a Veja, que, em medos da década passada, decidiu que seria uma revista feita por e para comentaristas de portal. A política nunca deveria ter se tornado o reino das emoções. Até líderes de organizações criminosas sabem que a pior coisa que se pode fazer é agir no calor do momento, pois os resultados são difíceis de serem previstos. Mas a mídia brasileira, que nunca sobreviveu sem a verba de publicidade dos governos decidiu arriscar e colocar esse elemento na política. A Veja foi a pioneira, justamente por ser a que mais corria o risco de desaparecer, junto com o resto da mídia impressa. Podem até sobreviver, mas não pagarão o preço por terem introduzido as emoções, principalmente o ódio, na político. Nós, as vítimas do ódio, é que vamos pagar esse preço. Busco, cada vez mais, colocar a razão na frente da emoção. Meu crescimento enquanto ser humano depende disso e não estou disposto a retroceder porque alguns idiotas úteis decidiram que o PT e a esquerda seriam a válvula de escape para todos os problemas do universo conhecido e desconhecido. É uma tarefa cada vez mais homérica. Qualquer que seja o resultado dessa história de "Escola sem Partido", já perdemos, pois permitimos que nossos instintos mais básicos entrassem no debate político.

sábado, 23 de julho de 2016

Viver em Cristo é viver em amor

Texto escrito em 29 de junho de 2016.

Ontem me coloquei no lugar dos cinco rapazes mortos por homofobia durante a última semana no Rio de Janeiro. É um exercício doloroso a empatia. Principalmente quando a vítima poderia muito bem ser você mesmo. Não é possível que em pleno século XXI — e com os olhos do mundo voltados para o Rio por causa das Olimpíadas — pessoas continuem sendo assassinadas por serem quem elas são, por terem o código genético que possuem. O fato é que gay is the new black em termos de opressão. Agora que é crime culpabilizar os negros pela penosa vida que o sistema capitalista lhe impõe, o povão encontrou nos LGBTs um novo bode expiatório. Junto com os imigrantes, é claro. Esqueça sobre o pagamento dos juros da dívida pública que rouba o dinheiro de nossos impostos e não contribui em absolutamente nada para o crescimento da economia; há dois homens se beijando em público na televisão e é mais importante debater costumes morais do que a extorsão de governos promovida pelo sistema financeiro a nível mundial.

Dois meses antes, Bolsonaro se converteu do catolicismo ao
pentecostalismo. Deve estar mais à vontade na nova igreja.
As cabeças cariocas fracas e pouco instruídas funcionam como oficinas de diabos como Jair Bolsonaro e Silas Malafaia que, embora não tenham puxado o gatilho, deram a ordem para que puxassem. Essa seria a ordem de um Deus que não é mensageiro da paz e nem do amor, mas sim a representação do que há de pior na psique humana. Parte da culpa pela proliferação da intolerância é de quem sempre lutou contra ela. Ao priorizar mais o desenvolvimento econômico do que o social, os governos do Partido dos Trabalhadores acabaram produzindo uma legião de ingênuos úteis, que sabem tudo sobre o funcionamento de smartphones, carros e televisores e nada sobre o funcionamento da biologia ou de como deveria ser a vida em sociedade. Como minha mãe sempre diz, o poder não deixa vácuo. O vácuo na cultura e na educação foi ocupado por mercenários de almas, para quem seguir a lei judaica — de onde tiraram o famigerado "evangelho da prosperidade" — é mais importante do que ser um discípulo dos ensinamentos de Jesus Cristo.

É sintomático que Bolsonaro tenha saído da Igreja Católica romana cerca de dois meses antes do líder espiritual desta instituição milenar declarar que ela deve um pedido de desculpa aos homossexuais. A fé de Bolsonaro, assim como sua atuação parlamentar, é oportunista. Só tem serventia a ele enquanto ele puder utilizá-la para justificar sua visão torpe de mundo. Agora que não pode mais usar o Vaticano como justificativa para sua homofobia, este não lhe serve mais. Mesmo caminhando a passos mais lentos do que as igrejas protestantes tradicionais — a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil aceita fiéis homossexuais desde 1998  — a Igreja Católica evolui e pessoas como Bolsonaro e Malafaia são agentes anti-evolução social. A sobrevivência deles depende da manutenção do status quo. Num cenário em que todos recebam uma educação de qualidade, ninguém seria mais seduzido pelo discurso fácil deles de que os homossexuais e os haitianos são os culpados pela degradação da sociedade brasileira. Não é à toa que líderes evangélicos são entusiastas do "Escola sem partido".

Dá pra imaginar uma prostituta ungindo Malafaia?
Apesar do cenário desolador, não devemos esmorecer. Mesmo que caiam mil à nossa direita e outros mil à nossa esquerda devido ao ódio malafaiano, vamos triunfar. Porque nós sabemos o que é o amor. E a religião de Jesus não era o cristianismo, era o amor, sobretudo aos marginalizados pelo status quo de sua época. Se caminhasse entre nós, Cristo condenaria boa parte dos "cristãos" de nosso tempo e também seria condenado por eles. "Cristo" vem do grego e significa ungido, ungido que foi por uma mulher de moral duvidosa que o amava como ele a amava: incondicionalmente. Alguém imagina os principais líderes evangélicos do Brasil sendo ungidos por uma prostituta? O argentino Jorge Bergoglio — membro da Companhia de Jesus, que promoveu a evolução da Igreja com o Concílio do Vaticano, e o primeiro papa não-europeu em um milênio — com certeza seria. O que ele tenta resgatar é justamente o amor aos oprimidos presente no Evangelho. Pois viver em Cristo é viver em amor, independente da forma como ele se manifesta.