sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Poema: Ajuste fiscal

Na tevê, na banca de jornal:
O governo gasta muito com o social
Tem que cortar a folha de pessoal
E fazer um ajuste fiscal

Tem que garantir o déficit primário

Saúde e educação é gasto secundário
Pro Itau, seu voto não é necessário

E o Bradesco quer o estelionato bancário

Democracia para banqueiro
Ajuste para nós, juro para eles
Quebra-banco é maloqueiro
Mas quem nos rouba são eles

Ajuste fiscal
Corta no social
Tem que ter dinheiro
Para pagar banqueiro

Corta na educação
Aumenta o preço do pão
Tira do povão
E dá pro patrão

Alfred Hugenberg, o homem que elegeu Hitler, e sua lição para o Brasil

A falta de pluralidade na mídia é prejudicial para que os cidadãos formem uma opinião mais acurada da realidade. A sociedade, como sabemos, é diversa, comportando os mais diversos tipos de opiniões. No entanto, quando poucos controlam o acesso às plataformas de comunicação com o público, essa diversidade sofre um ataque. Conforme aponta um relatório da Unesco, "a mídia pode prestar-se para reforçar o poder de interesses particulares e exacerbar desigualdades sociais, ao excluir vozes críticas ou marginalizadas. A mídia pode até promover o conflito e a segregação social". O golpe de 1964, apoiado por todos os grandes jornais brasileiros, à exceção do Última Hora, é um exemplo disso. A mídia fez com que grande parte da população brasileira apoiasse a tomada de poder por quem mais tarde iria tolher os direitos básicos dos cidadãos. O que pouca gente sabe, no entanto, é que a monopolização da mídia criou o clima para o maior desastre da História da humanidade.

A imprensa e a ascensão do nazismo

Alfred Hugenberg nasceu em 19 de junho de 1865 em Hanôver. Seu pai era membro do Partido Nacional Liberal e influenciou o jovem Alfred que, após estudar Direito em Berlim e Economia em Estrasburgo, fundou a ultra-nacionalista Liga Geral Alemã e sua sucessora, a Liga Pan-Germânica. Em 1899, defendeu a "aniquilação dos poloneses", participando de um esquema para expulsar os poloneses da província de Posen (mais tarde anexada à República polonesa após a derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial). Quatro anos depois, começou a trabalhar no Ministério da Fazenda. Em 1909, deixou a repartição pública para assumir um assento no conselho de diretoria da empresa de aço Krupp (atualmente ThyssenKrupp). Em 1916, adquiriu seus primeiros veículos de comunicação: a revista Die Gartenlaube e os jornais Die Woche e Berliner Lokal-Anzeiger. Dois anos depois, saiu da Krupp e começou a formar seu conglomerado de mídia. Durante o período da hiperinflação, Hugenberg aproveitou a crise para comprar dezenas de jornais por um preço muito mais barato do que eles realmente valiam. Logo, passou a monopolizar a mídia alemã; controlava, direta ou indiretamente, cerca de 1,6 mil jornais.

Hugenberg controlava as editoras Scherl, Telegraphen Union e Vera Verlag, parte das ações dos estúdios Universium Film AG (maior produtora de filmes e cinejornais) e a agência de publicidade Ala-Anzeiger AG. Seu conglomerado de mídia era utilizado para manipular e agitar a opinião pública alemã. Segundo Robert Wistrich, seu objetivo era fazer com que os cidadãos, em especial os de classe média, apoiassem um programa ultra-nacionalista, anti-pacifista, anti-democrático e anti-socialista. Assim como os ideólogos do Partido Nazista, Hugenberg também era antissemita. Segundo Paul Bookbinder, foi durante a Primeira Guerra Mundial que suas visões políticas se radicalizaram e ele passou a adotar a expansão do território alemão e o repúdio aos judeus como suas duas principais plataformas políticas. Em 1919, ele se juntou ao Partido Popular Nacional Alemão (DNVP na sigla em alemão), sendo eleito membro do Reichstag no ano seguinte. Em 1928, ele virou líder do partido e passou a defender a revogação da Constituição de Weimar e a instauração de um governo ditatorial. Dentre as propostas do DNVP estavam a restauração da monarquia, a reconquista dos territórios perdidos no Tratado de Versalhes e a redução da participação dos judeus na vida pública. Vale notar que os principais concorrentes de Hugenberg no mercado de mídia eram Leopold Ullstein e Rudolf Mosse, ambos judeus. A fuga de judeus permitiu ao magnata obter 23,15% das cotas da Wolff, maior agência de notícias do país.

Após a cobertura positiva dos jornais de Hugenberg,
o Partido Nazista passou de 2,6% para 18,25% dos votos.
É óbvio que os jornais controlados pelo empresário apoiavam sua visão de mundo. No entanto, tais visões não eram consensuais na sociedade e sequer no DNVP, que viu uma migração de seus deputados para partidos mais moderados de direita. Foi então que Hugenberg teve a ideia de usar Adolf Hitler para chegar ao poder. Seu DNVP era popular entre a classe média, mas tinha dificuldade em se comunicar com os eleitores da classe trabalhadora, algo que os nazistas faziam muito bem. O empresário valeu-se da boa oratória de Hitler para tentar fazer passar seu referendo que propunha dissolver o Tratado de Versalhes. Assim sendo, o Partido Nazista passou a receber benesses de Hugenberg, seja na forma de doações monetárias ou da cobertura simpática da mídia alemã, quase toda concentrada nas mãos de Hugenberg. Anteriormente, Hitler havia sido denunciado como "socialista" pelos jornais do empresário. Goebbels desgostava de Hugenberg a tal ponto que pensou em romper com Hitler, mas recuou após receber do empresário a missão de controlar as matérias sobre o Partido Nazista publicadas na mídia. Enfim o Partido Nazista possuía uma plataforma na mídia que possibilitaria sua ascensão ao poder. A aliança entre Hugenberg e Hitler durou pouco, mas foi tempo o suficiente para projetar nacionalmente a imagem do líder nazista. Graças a Hugenber, Hitler finalmente conseguiu ter acesso ao empresariado nacional e logo os magnatas alemães estavam desertando do DNVP para se juntarem ao Partido Nazista.

Apesar disso, os dois partidos mantiveram a coligação parlamentar e, em 1931, Hugenberg e Hitler lançaram uma nota conjunta afirmando que iriam atuar juntos para derrubar a República. Em 1932, Hugenberg se recusou a apoiar a candidatura presidencial de Hitler, lançando como seu candidato Theodor Duesterberg. Este não ascendeu ao segundo turno devido, em parte, à boataria nazista de que ele possuía ascendência judaica. No final do ano, no entanto, os dois líderes fizeram uma renião secreta em que concordaram em não atrapalhar um ao outro. Em janeiro de 1933, Hitler ascendeu ao posto de chanceler através das articulações do ex-chanceler Franz von Papen, que garantiu a Hugenberg o posto de Ministro da Agricultura e da Economia. A partir daqui, a história é conhecida. Hitler coloca fogo no Reichstag, culpa os comunistas e baixa um decreto que pôs fim efetivo às liberdades civis dos cidadãos alemães. A mídia, controlada por Hugenberg, jamais questionou as ações de Hitler. O empresário também era contra a democracia e votou de maneira favorável ao decreto e à lei habilitante de 1933. Não fossem medidas impopulares tomadas por Hugenberg no ministério da Agricultura (ele aumentou o preço da manteiga para ajudar os produtores de leite), é possível que ele tivesse se tornado um dos homens fortes de Hitler.

Ainda controlado por Hugenberg, o jornal Lokal-Anzeiger
anuncia "o programa de Adolf Hitler para a liberdade, a
honra e o trabalho" (25 de outubro de 1933).
O empresário foi forçado a renunciar no final de junho de 1933. Seu partido logo aprovou fundir-se com o Partido Nazista e Hugenberg foi lançado como candidato ao Reichstag, ao lado de von Papen, em novembro, na eleição mais anti-democrática da história da Alemanha. Acontece que Hugenberg era bom de voto junto à classe média. Em dezembro, sua agência de notícias Telegraphen Union foi tomada pelo Ministério da Propaganda. Ele reteve boa parte de suas empresas de mídia até 1943, quando a empresa nazista Eher Verlag tomou o controle da Scherl. Em troca, Hugenberg recebeu uma grande quantidade de ações em indústrias no vale do Rio Reno. O empresário continuou no Reichstag até o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, como um dos 22 membros "convidados" do parlamento. Ele foi preso por participação no Holocausto, mas foi solto em 1949 por um tribunal de desnazificação de Detmold, que concluiu que ele não era um nazista e permitiu que ele mantivesse suas propriedades, empresas e ações. Ele morreu tranquilamente em 12 de março de 1951, aos 85 anos de idade, numa cidade próxima a Detmold.

Imprensa brasileira ainda segue modelo Hugenberg

O modelo Hugenberg de distribuição de notícias é seguido até hoje pelos conglomerados de mídia do Brasil. Se nos Estados Unidos e na Europa os jornais locais dependem de agências de notícias independentes como Associated Press, Reuters e AFP para noticiar o que ocorre em locais distantes, no Brasil o padrão seguido é outro. Jornais como O Globo, Folha de S. Paulo e Estadão possuem suas próprias agências de notícias que oferecem o conteúdo que já foi produzido por seus repórteres para os jornais locais. Assim sendo, as agências de notícias brasileiras oferecem um produto fortemente ligado à linha editorial de seus respectivos jornais. Conforme aponta Pedro Aguiar, essa estratégia de negócio teve início no modelo de gestão adotado por Hugenberg e foi importado para o Brasil por Assis Chateaubriand, o primeiro empresário a monopolizar o mercado de notícias no país. Sua influência política no Brasil foi considerável, abarcando um período que foi do entreguerras (1918-1939) até o início da ditadura militar (1964-1985).

Aguiar explica que esse modelo remonta ao período imediatamente anterior ao início da Primeira Guerra Mundial, com um crescente desconforto dos empresários da mídia alemã com o conteúdo "anti-germânico" que chegava nas redações de seus jornais vindo de agências de notícias estrangeiras como a Reuters britânica e a Hava francesa. Em 1913, eles criaram uma cooperativa de revenda das notícias dos próprios jornais, a SDU. Para geri-la foi criado um "conselho de notáveis" que reunia 300 industriais, dentre os quais o próprio Hugenberg. Segundo Aguiar, "é nessa época que o empresário começa a tomar contato com a gestão de agências de notícias e a importância estratégica que estas empresas oferecem". Em 1916, o empresário compra a agência de notícias Telegraphen Union (TU), fundada três anos antes a partir da fusão de serviços noticiosos e telegráficos preexistentes. Como sócios na empreitada, Hugenberg convida seus antigos patrões do grupo Krupp, que passam a compartilhar com ele o controle acionário da agência. Inspirado pela SDU, Hugenberg inova e garante a exclusividade do fornecimento do material jornalístico produzido pela TU para os veículos controlados por seu próprio grupo de imprensa.

Grande admirador da Alemanha, Assis Chateaubriand fundou a Agência Meridional em 1931 com o intuito de produzir matérias que seriam veiculadas apenas nos veículos controlados por seu grupo, Diários Associados. Outras agências já haviam sido fundadas no Brasil, como a Americana (1913) e a ABN (1924), todas com pouca expressividade. As demais agências, que seguem o modelo da Meridional até hoje, foram fundadas nas décadas seguintes. A Agência Estado, do Estadão, em 1970; a Agência O Globo, do jornal homônimo, em 1973 e a Folhapress, da Folha de S. Paulo, em 1994. Atualmente, estas são as maiores agências de notícias brasileiras. Elas atuam como "revendedoras" de matérias e fotos já produzidas pelas equipes dos jornais carro-chefe de cada conglomerado para jornais de  menor porte, longe das grandes metrópoles. Jornais locais dependem do material produzido nas metrópoles para alimentar suas edições, o que compromete a expressão regional e facilita o entendimento da rápida aceitação do nazismo em todas as regiões da Alemanha após a cobertura positiva de Hitler por parte do conglomerado de Hugenberg.

Este modelo de distribuição de notícias enfraquece a mídia local. Pequenos jornais ou emissoras de rádio, que tentam produzir um jornalismo independente, ficam em desvantagem competitiva em relação aos grupos que estão alinhados aos conglomerados nacionais de mídia. Qual o sentido de investir numa abordagem mais independente dos fatos se eu posso apenas ler ou republicar as matérias das agências? De repente, todas as emissoras de rádio e jornais locais estão divulgando as mesmas notícias; às vezes o que muda é a entonação do locutor ou o local de uma vírgula. Assim sendo, é possível afirmar que a maior parte das notícias veiculadas no Brasil segue a linha editoral de O GloboFolha e Estadão, visto que quase nunca "a agência faz a pauta e apura as informações" (Marques, 2005, p. 94). Há uma relação de dependência da mídia regional com os conglomerados das grandes metrópoles do eixo Rio-São Paulo, o que desestimula a independência jornalística e perpetua a concentração de um mercado já muito concentrado. Segundo o projeto Donos da Mídia, os grupos Abril, Globo, Bandeirantes, Record e Diários Associados controlam 42% dos veículos de comunicação de abrangência nacional do Brasil.

Outros modelos

Recentemente, propostas de democratização da mídia vem sendo discutidas no Brasil após a adoção de modelos desenvolvidos no sul, primeiro na Argentina e depois no Uruguai, em conformidade com o já apontado relatório da Unesco, que indica que os Estados nacionais devem "promover ativamente o desenvolvimento do setor de mídia de tal maneira a impedir a concentração indevida e assegurar a pluralidade e transparência da propriedade e do conteúdo nas vertentes pública, privada e comunitária da mídia". Apesar disso, as legislações – que regulamentam o uso do espectro radioelétrico e define regras para sua exploração – enfrentam a reação orquestrada de grandes empresas privadas de comunicação. Tanto na Argentina quanto no Uruguai, há um processo de judicialização das leis, ou seja, o questionamento jurídico das mesmas para atrasar sua implementação.

A luta pela aprovação da Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual na Argentina remonta ao ano de 2004, quando movimentos populares começaram a debater a pauta da regulamentação da mídia. A lei anterior, de 1978, vinha do período ditatorial e favorecia a concentração dos veículos de imprensa. O Grupo Clarín, que apoiou a ditadura, explorava 270 emissoras de rádio e TV e monopolizava as transmissões dos jogos do Campeonato Argentino de Futebol, relegando-os à TV paga. A paixão nacional pelo futebol fez com que os argentinos exigissem da presidenta Cristina Kirchner a regulamentação do setor. Kirchner levou a discussão para o Congresso em 2008, diante de uma forte oposição dos jornais. Apesar das acusações da mídia de que o governo pretendia censurar os argentinos, 15 mil cidadãos marcharam em direção ao Congresso para levar aos deputados o texto do projeto de lei de iniciativa popular. Por fim, a legislação foi aprovada por 147 votos a 3. No final de 2009, a lei entrou em vigência e, imediatamente, foi questionada na Justiça pelo Grupo Clarín. Levou quatro anos até a Corte Suprema declará-la constitucional. A lei uruguaia leva o mesmo nome da lei argentina e enfrenta o mesmo problema. Aprovada em dezembro de 2013, o governo aguarda uma decisão da Suprema Corte para começar a implementá-la.

No Brasil, os deputados constituintes, cientes do mal que a monopolização da mídia pode causar num país (como causou na Alemanha), inseriram na Constituição a proibição da formação de monopólios e oligopólios no setor. No entanto, ainda hoje esse dispositivo permanece sem regulamentação. A eleição de Lula, que parecia uma esperança para os militantes da comunicação, se transformou numa decepção amarga. Os governos do PT pormenorizaram o problema da concentração dos meios de comunicação no Brasil. Segundo o professor Venício de Lima, referência em estudos sobre mídia e democracia, "os governos acreditaram, equivocadamente, que poderia ser feita uma aliança com os oligopólios midiáticos", o que não só não ocorreu como compromete a democracia brasileira. Afinal, o próprio conceito de democracia está relacionado à liberdade de expressar as opiniões mais diversas, o que nem sempre ocorre na imprensa. Os três maiores jornais brasileiros – e suas agências – produzem matérias seguindo as mesmas pautas e a mesma linha editorial, que mais tarde serão reproduzidas em rádios e emissoras de TV a eles ligadas. A partir do momento em que a maioria das pessoas acreditam numa opinião única, fica fácil convencê-la de qualquer coisa. Assim como Hugenberg convenceu a Alemanha a se livrar dos judeus.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A guerra civil brasileira

Eu entendo seu sofrimento, morador da orla de Copacabana. Afinal, também sou homem, cisgênero, branco, de classe média alta, com diploma de ensino superior e cristão no Brasil. Nossa vida realmente é muito sofrida!  
Adaptado de um comentário de um americano numa página do Facebook ironizando outro americano, islamofóbico.

Às vezes minha mente entra em curto-circuito com algumas informações. Recentemente isso aconteceu quando recebi a notícia de que jovens – brancos – do Rio de Janeiro estavam marcando, via WhatsApp, ataques a ônibus que trazem outros jovens – negros – para as praias mais famosas do mundo. Simultaneamente, no município vizinho de Niterói, pipocaram cartazes, imediatamente retirados pela prefeitura, de um grupo que afirma ser o capítulo local da Ku Klux Klan. Para quem não sabe, a KKK é um grupo formado por estadunidenses brancos e protestantes que perseguem violentamente as minorias sócio-políticas daquele país: negros, judeus, católicos, ateus, imigrantes e socialistas. O motivo para a escalada do fascismo à carioca seria o aumento dos arrastões nas praias do município, amplamente divulgados pela mídia comercial. Em Portugal, o discurso irresponsável da mídia ao noticiar um falso arrastão gerou uma onda xenófoba na sociedade. O caso é estudado nas faculdades de jornalismo como um exemplo do poder da mídia para reforçar preconceitos.

O fato concreto é que o Brasil está passando por uma guerra civil que se intensificou desde que a presidenta Dilma Rousseff, do outrora socialista Partido dos Trabalhadores, foi reeleita há cerca de um ano. Embora o PT seja mais semelhante a um partido europeu de centro-direita, ele é percebido, devido à demografia de seus eleitores, como uma ameaça à manutenção do status quo. Mesmo que Dilma tenha cedido ao Deus mercado e esteja governando seguindo a cartilha liberal de seu adversário, o barco fascista no qual os eleitores anti-PT mais fervorosos embarcaram não foi afundado. Pelo contrário, foi fortalecido por uma mídia e por uma oposição que deixou-se guiar por pupilos de um astrólogo que se diz filósofo e luta contra uma ameaça comunista inexistente na sociedade brasileira (o PT foi o partido que mais trouxe lucros aos bancos, alardeou Lula diversas vezes). É interessante para a mídia e para a oposição manter esse barco no mar da política brasileira como forma de pressionar a Dilma a governar para os ricos. Assim que ela hesita em tomar uma medida impopular, eles organizam e promovem atos pró-impeachment.

Agora que a presidenta enfim cedeu às pressões daqueles que nada produzem e vivem de roubar o patrimônio dos brasileiros, a Rede Globo, ela mesma alvo dos fascistas em tais manifestações, arrefeceu seus ânimos golpistas. No entanto, a mídia criou e alimentou por anos uma legião de fascistas que odeia todo mundo que não se parece com os membros da turba (um gari, negro, foi expulso de um protesto anti-Dilma acusado de ser petista). Essa turma não irá desaparecer tão cedo. De maneira semelhante, o principal partido de oposição, que ironicamente se chama Partido da Social Democracia Brasileira, na ânsia de ganhar a eleição presidencial após três derrotas sucessivas, atraiu para si o pior tipo de ser humano. Não estou generalizando. Há gente boa e ruim em todos os locais e partidos políticos não são exceção. Mas tenho razões – pessoais, inclusive – para acreditar que o eleitorado do PSDB caiu de nível desde 2010. Ao invés de apresentar propostas, o partido vale-se do ódio ao PT e aos que votam nele para tentar ganhar a presidência da República. Se chegar lá, seu eleitorado recém-conquistado exigirá do PSDB a exclusão daqueles identificados como petistas – negros, índios, LGBTs, mulheres emancipadas, etc.

Eu senti na pele o ódio ao eleitorado petista. Na véspera do segundo turno da eleição presidencial do ano passado, na madrugada de 25 para 26 de outubro, saí com um amigo, também gay. Fomos a uma boate e depois a uma lanchonete no centro da cidade. Foi então que tivemos a "brilhante" ideia de pegarmos um táxi na porta de outra boate. No caminho, parou um carro com rapazes – brancos – muito bem vestidos. Um deles, visivelmente com a consciência alterada por alguma droga, desceu com uma arma na mão e levou a carteira e o celular do meu amigo. Quando chegou minha vez, congelei e não consegui sequer colocar a mão no bolso. Aí ele viu que eu estava com um adesivo escrito "Comunidade LGBT apoia Dilma" no peito e me espancou. Levei uma coronhada no rosto e um chute que fraturou uma vértebra. Por um milagre ainda estou vivo, afinal de contas ele poderia muito bem ter dado um tiro na minha cara e fugido diante da minha recusa. Eu seria apenas mais uma vítima da guerra civil brasileira que silenciosamente extermina negros, índios e LGBTs todo santo dia. Quando penso que o PSDB se tornou representante de gente que faz isso, tenho muito medo.

A elite brasileira, como demonstra um vídeo de uma reportagem do final dos anos 1980 que viralizou essa semana, sempre existiu. No entanto, as novas tecnologias permitem aos fascistas coordenarem seus ataques contra aqueles que são encarados como ameaça a seus direitos (que não foram construídos, mas sim herdados), sejam eles índios Guarani-Kaiowá ou jovens de pele escura que querem curtir a praia de Copacabana ou Ipanema após trabalharem 44 horas por semana no morro. Uma fala que ouvi no meu primeiro ano na faculdade de jornalismo me marcou muito. Eliani Covem, professora e coordenadora do curso, disse algo como "temos que nos lembrar que, apesar da favela sempre ser mostrada como local de crimes, a maioria das pessoas que moram nela são honestas". Até então eu – e tenho até vergonha de admitir isso – tinha uma ideia lombrosiana de que a pessoa seria mais propensa para o crime devido ao local geográfico em que ela nasceu. Infelizmente, por uma série de fatores socialmente construídos, é assim que a maioria dos brasileiros pensa. 

As escolas privadas que aprovam quase todos seus alunos em vestibulares concorridíssimos ensinam a seus alunos tudo sobre a biologia humana, mas falham em ensinar o básico: que somos todos iguais, independente de onde nascemos. As emissoras de televisão, que pertencem a todos nós e são concedidas pelo Estado a empresários privados, mostram as favelas como antros do crime. É risível o tratamento dispensado a criminosos pobres e ricos. Ao cobrir os arrastões, os jovens negros são retratados pela mídia como "menores", mesmo as vítimas. Por outro lado, ao cobrir os linchamentos marcados por WhatsApp, a mídia se refere aos jovens brancos como "jovens", mesmo que eles estejam em flagrante conflito com a lei, que não permite ações paramilitares. Quando os filhos de figurões cariocas atropelaram e mataram pessoas, a mídia só faltou dizer que os carros de luxo deles foram atropelados por um ciclista e por um pedestre. A mídia promove um dualismo que nem sempre existe no mundo real, afinal o real é complexo e o virtual é simplificado. Dessa simplificação, nasce a ideia de que certos setores da sociedade são intrinsecamente ruins e devem ser extirpados.

O fascismo brasileiro, que alimenta a guerra civil invisível, surge nos pequenos comentários que por vezes deixamos passar batido. Começa na tentativa de eliminar o ritmo musical mais ouvido pelo povo e termina na tentativa de eliminar o próprio povo. Transforma o Brasil no campeão mundial de assassinatos de transhomossexuais e ativistas do campo e em vice-campeão de assassinatos de jovens negros. São os bodes expiatórios da guerra contra o povo. É comum as elites elegerem um bode expiatório para continuarem lucrando, sobretudo durante crises. Nos anos 1930, Hitler prometeu o enriquecimento dos alemães de classe média e alta através da expropriação das propriedades de judeus que, segundo ele, seriam os responsáveis por controlar a maior parte da riqueza nacional. Donald Trump pretende expulsar os imigrantes mexicanos que estariam roubando os empregos dos americanos, enquanto Marine Le Pen pretende se tornar a primeira presidenta da França valendo-se do medo dos imigrantes algerianos. Vale notar que mexicanos e algerianos estão mudando rapidamente a demografia de ambos os países, assim como a Era Lula mudou a demografia de shoppings, universidades e aeroportos.

Enquanto eu puder escrever, denunciarei as tentativas de calar a voz dos oprimidos. Embora homem, cisgênero, branco, de classe média alta, cristão e com ensino superior completo, como afirmei na epígrafe desse texto, também sou homossexual. E isso muda toda a minha percepção de mundo, fazendo-me identificar com os membros de outros grupos igualmente oprimidos. Creio ter sido isso que motivou a rebelião poética de Cazuza contra sua classe social. Assim como na época do poeta, os tempos atuais são duros, mas eu não tenho medo. Um dia os oprimidos perceberão que são maioria e, quando isso acontecer, não haverá grupo de WhatsApp, comentário de jornal ou textão do Facebook capaz de conter a verdadeira expressão popular do Brasil. É uma pena termos perdido um importante aliado nessa luta: o PT, que escolheu trilhar o caminho do SPD dos anos 1930, quando perdeu sua influência e seus votos para o Partido Nazista após ter capitulado para a direita. Tenho, no entanto, confiança na maturidade dos movimentos sociais, que cada vez mais se unem contra as tentativas de criminalização e extirpação dos oprimidos. Como afirma Kiko Nogueira, é preciso lutar contra essa loucura, mesmo que não dê em nada.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

O que o apelo massivo de Taylor Swift pode ensinar às igrejas?

Por Jesse Carey, na Relevant

Taylor Swift é a estrela do momento.

Desde o lançamento de 1989, seu álbum de crossover para o pop, o fenômeno do country transformado em máquina de hits se tornou uma fixação cultural inescapável.

O álbum é um dos mais bem sucedidos comercialmente em décadas, tendo vendido quase 9 milhões de cópias globalmente, ascendido para o topo das paradas em todo o mundo e gerado centenas de milhões de visualizações no YouTube. Até mesmo covers se tornaram hits.

Mas muitos álbuns acabam vendendo milhões de cópias. O que faz 1989 diferente é que, além de lucrar muito, é uma estranha força cultural unificadora.

O pelotão de colabores incluem todo mundo de Kendrick Lamar - indubitavelmente o artista mais importante do hip-hop - a Ellie Goulding, de Hayley Williams do Paramore à atriz Lena Dunham (algumas das celebridades que apareceram no videoclipe de "Bad Blood", single de 1989). Swift reivindica os fãs antigos, que amam-na por seu trabalho country, e os novos, que compram seus singles pop. O álbum inclui, dentre os produtores, do queridinho do indie Jack Antonoff (Steel Train, Fun., Bleachers) ao guru da música pop Ryan Tedder (cantor do OneRepublic que já produziu música para estrelas pop como Beyoncé, Kelly Clarkson, Jordin Sparks, One Direction e Maroon 5).

Até mesmo o anti-herói do country alternativo Ryan Adams, conhecido por suas opiniões espinhosas sobre a música comercial, é um fã do disco; ele está gravando um álbum com covers de todas as canções de 1989.

1989 é aquele álbum pop cada vez mais raro, que é tanto universalmente elogiado por outros artistas e críticos quanto acessível para os mais casuais fãs de música.

Mas há algo a mais que explica o apelo massivo de Taylor Swift.


O momento cultural

1989 é um álbum ótimo e seus singles são canções muito boas. Mas, na música pop, a música é apenas uma pequena parte integrante do álbum. Em muitos aspectos, a música pop é tanto sobre a imagem quanto à arte. É tanto sobre uma ideia subjacente quanto sobre as letras.

Elvis era icônico apenas em parte devido a sua música. Ele representava tanto uma mudança no humor cultural quanto um gênero musical. A música dos Beatles sobrevive, mas também sobrevive o estilo deles. Michael Jackson era um gênio musical, mas há vários gênios musicais; no entanto, há apenas um Rei do Pop. Beyoncé é uma criadora de hits, mas foi sua imagem de auto-empoderamento que a transformou numa superestrela.

Há uma citação famosa do filósofo Joseph de Maistre que diz: "Cada nação tem o governo que merece". O mesmo argumento pode ser usado na música: Cada cultura tem a estrela pop que merece. A cultura ajuda a criar os ídolos pop que ela quer seguir.

As estrelas pop são mais do que a simples soma de seus hits; o sucesso deles deve-se, em parte, àquilo que seu sucesso representa.

Elvis era um ícone da ascensão da cultura jovem e do afrouxamento dos valores puritanos. Os Beatles eram ícones da expansão cultural e da adoção de novas ideias. Michael Jackson transcendeu as barreiras raciais. Beyoncé é uma self-made woman que ajuda a transmitir confiança num período de transição cultural. Nas mais variadas eras da música pop (grunge, hip-hop, glam rock, Motown, etc.), as tendências refletem não só os valores culturais - mas os vácuos culturais. É recorrente os fãs de música usarem um artista para ajudar a dar voz e incorporar aquilo que eles querem ver representado na cultura.

Olhar para o que a estrela pop do momento - que por acaso é uma cantora de Nashville com um álbum pop que vendeu milhões de unidades - representa, não só nos diz algo sobre os gostos culturais coletivos. Também nos diz algo sobre o vácuo que a coletividade quer preencher. É um vácuo ao qual a Igreja também precisa responder.


O apelo de Swift

Taylor Swift no VMA desse ano.
Uma das coisas que torna a ascensão de Taylor Swift tão interessante é o quanto proativamente desinteressante ela tende a ser - pelo menos no sentido de celebridade de tabloide. É claro, ela escreve sobre dramas de relacionamentos pessoais, mas sempre de maneira velada, quase sempre inocente. Ela é mais conhecida por tentar apaziguar brigas do que por iniciá-las. No caso de uma rixa com Nicki Minaj no Twitter, ela foi diretamente apologética.

O VMA mais recente foi um exemplo perfeito. Numa noite repleta de apresentações, roupas e aparições que tentavam chocar umas às outras, o tempo de Taylor Swift na telinha foi notavelmente contido e gracioso.

Bem ou mal, a imagem de Taylor Swift é segura. Embora 1989 tenha sido um risco criativo, foi um altamente calculado. (A campanha envolvendo seu lançamento literalmente envolveu a mudança da cantora de Nashville para Nova York.) Seja ela cuidadosamente cultivada ou autêntica (ou ambas), a imagem de Taylor Swift baseia-se na bondade para com os fãs, no amor para com seu pelotão de amigas, nos romances inocentes e em sua graciosidade para com outros artistas.

É uma marca que nossa cultura abraçou, uma vez que é algo que nossa cultura deseja.


O que a Igreja pode aprender?

Semeadores de igrejas, teólogos e evangelizadores estão constantemente à procura de maneiras de "alcançar" a cultura e se relacionar com os desejos coletivos das massas. O apelo de Taylor Swift fornece um olhar nessa direção.

E o que faz com que esse tipo de imagem - de segurança, de amizade e de graça - tão notável é que ela parece contradizer diretamente a maneira como tantos cristãos são vistos (pelo menos na mídia). Um olhar sob as manchetes do dia envolvendo cristãos os mostram muito mais envolvidos em questões divisivas - dos ativistas anti-gay e das picaretagens disfarçadas às brigas entre pastores, das gangues das redes sociais que bancam a polícia teológica aos líderes dominados pelo escândalo. A mensagem que está sendo perpetuada voa na direção oposta daquilo que a cultura parece gravitar.

Numa época em que tantos cristãos e líderes cristãos se utilizam de um tom defensivo e combativo (em especial na temporada política), a cultura encontra sua próxima estrela pop numa garota-da-casa-ao-lado que parece ter pouco interesse na libertinagem, na ousadia e em iniciar brigas. A imagem de Swift é sobre a união e não a divisão.

As escrituras ensinam que um cristão deve observar certas regras morais e que os seguidores de Cristo devem apoiar as vítimas da injustiça. Mas se a imagem coletiva da Igreja se tornar mais conhecida por aquilo que opomos do que por aquilo que defendemos, estaremos correndo o risco de nos isolarmos de uma cultura que se interessa pela união. Há certamente causas que valem a pena ser defendidas e males que precisam ser expostos. Mas há também pessoas que precisam saber o que é ser amado apesar dos erros, ter uma segunda chance e experimentar a graça divina.

Assim como a revolução dos talk shows nos mostra que o gosto da cultura pelo cinismo está azedando, o apelo massivo de Taylor Swift evidencia que a cultura popular está à procura de um tom unificador para combater a falta de gentileza em nossos discursos.

Em alguns círculos, é comum o refrão de que Jesus não se preocupava demasiadamente com a gentileza. É verdade que há uma diferença entre a gentileza e o amor, mas isso não significa que eles excluem-se mutualmente. Sim, Jesus pregou a verdade - mesmo quando a mensagem era difícil para alguns entender. Mas ele também se portava de maneira que atraiu grandes multidões, tornou-se querido pelas massas e fez com que as pessoas quisessem largar tudo para segui-lo. Ele tratava as pessoas com dignidade e respeito. Ele não tentava dividir ainda mais as pessoas de seus inimigos. Ele tentava uni-los.

A ascensão de uma estrela pop como Taylor Swift demonstra que pelo menos partes da cultura julga a ideia de união e gentileza apelativa numa época em que muitas coisas nos dividem.

Os odiadores sempre odiarão, mas a Igreja não deveria estar no meio deles.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

O genocídio indígena nunca acabará?

Com informações de Brasil Post, EBC e DCM.

Genocídio começou com os portugueses em 1500 e continua
com os brasileiros, muitos dos quais frutos da miscigenação.
Como boa parte da população desse país, tenho ascendência indígena. No entanto, o processo de embranquecimento da minha tataravó não foi sofisticada igual ao ocorrido na Austrália entre 1905 e 1969. Como a eugenia sempre fez parte do discurso oficial dos brasileiros, era comum antigamente que homens brancos sequestrassem mulheres indígenas para se casarem com elas sem sequer serem questionados por um Estado que tinha vergonha de ser multirracial. Era o famoso "peguei ela no laço" que aposto que muitos de vocês já devem ter ouvido falar. Meu finado avô contava isso sobre sua avó sem entender muito a dimensão racista e machista da expressão. Para ele, era mais uma forma de exaltar nossa ascendência indígena do que de normalizar o genocídio. Discursos assim invisibilizam o fato de que a população indígena do Brasil - ou pelo menos o que restou dela após a dominação portuguesa - foi praticamente dizimada no início do século passado. Segundo Alexander Hinton, 800.000 ameríndios foram mortos no Brasil entre 1900 e 1957.

É um número chocante que não deixou de existir durante a ditadura que foi colocada no poder pela elite, com o apoio da classe média, para acabar com os problemas sócio-econômicos e trazer a estabilidade de volta para o Brasil. Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, pelo menos 8.350 indígenas foram mortos entre 1964 e 1985. O documento alerta que o número "deve ser exponencialmente maior, uma vez que apenas uma parcela muito restrita dos povos indígenas afetados foi analisada e que há casos em que a quantidade de mortos é alta o bastante para desencorajar estimativas". Os mais afetados, segundo relatório foram os Cinta-Larga, que vivem na divisa entre os estados do Mato Grosso e de Rondônia. Dentre as medidas adotadas pelos fazendeiros para expulsar o povo milenar de sua terra estavam o envenenamento dos frutos de árvores por arsênico, a "doação" de brinquedos contaminados com vírus do sarampo e da varíola e, é claro, assassinatos em emboscadas. 3.500 indígenas dessa etnia morreram durante a ditadura e o total de mortes é de mais de 5.000 desde a década de 1950.

Uma etnia que vem sendo constantemente atacada no Centro-Oeste do país, conforme a fronteira agrícola se expande para áreas ambientais e indígenas, é a dos Guarani-Kaiowá. Há uns dois anos, uma ação de solidariedade a favor da demarcação de terra desses indígenas fez com que milhares de membros do Facebook trocassem seus sobrenomes na rede social para Guarani-Kaiowá. Apesar de bonita e de chamar a atenção para o genocídio dos Guarani-Kaiowá, o ato não foi o suficiente para convencer os agricultores da região a deixarem de atacar os indígenas da etnia. No feriado da Independência, enquanto a maioria comemorava a independência do Brasil de Portugal, os indígenas lamentavam sua dependência a homens brancos corruptos para investigar e punir os responsáveis pela morte de uma de suas lideranças. Em 29 de agosto, o jovem Simião Vilhalva Guarani, de 24 anos, foi assassinado com um tiro na cabeça na Terra Indígena Ñande Ru Marangatu, na microrregião de Dourados (MS), município localizado a 235 quilômetros da capital estadual Campo Grande. 

Parentes choram a morte de Vilhalva.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) exigiu intervenção federal na apuração dos fatos e punição dos responsáveis, visto que o poder público estadual é alinhado aos interesses dos produtores rurais. "Como é sabido, são subservientes a este segmento do poder econômico em Mato Grosso do Sul", afirmou a ONG em nota pública. O governo estadual permite desde sempre que as terras indígenas sejam ocupadas por fazendeiros com documentos falsificados de posse de terra. Estima-se que pelo menos metade dos documentos de posse de terra no Brasil sejam falsos. Dessa forma, indígenas que foram expulsos de suas terras há 30, 40 anos por jagunços retornaram agora numa tentativa de pressionar o Governo Federal pela demarcação de suas terras, cansados que estão da pobreza e da miséria nos arredores dos centros urbanos e de "fugirem desenganados para viver um cultura diferente", parafraseando a cantora argentina Mercedes Sosa, ela mesma ascendente de ameríndios. Mas eles são encarados como "invasores" pela mídia e pela parte da população que se deixa enganar por ela. É muito conveniente para os agricultores quando a namoradinha dos brasileiros - brancos - se posiciona contra os indígenas.

Desde 22 de agosto, os indígenas Guarani-Kaiowá ocupam fazendas que estão em terras que legalmente lhes pertencem. A demarcação de reservas indígenas deveria ter sido concluída 5 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, ou seja, em 1994. No entanto, a Justiça representa um empecilho ao processo, o que leva à invasão das terras por fazendeiros e à consequente expulsão dos indígenas por jagunços. Em 2005, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva homologou a demarcação das terras Ñande Ru Marangatu em Mato Grosso do Sul. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal, atropelando a divisão de poderes estabelecida pela República, suspendeu os efeitos do decreto presidencial. Desde então, a matéria está parada no STF o que, segundo os indígenas, leva morte e destruição a sua tribo. Ao mesmo tempo em que o Judiciário atropela o Executivo, o Legislativo - composto por 160 defensores de fazendeiros na Câmara (31% do total de assentos) e 18 no Senado (26% do total de assentos) - decidiu fazer o mesmo. A Proposta de Emenda à Constituição 215/2000, em tramitação no Congresso, transfere do Executivo para o Legislativo a prerrogativa da demarcação de terras, sob a desculpa de que o Executivo é leniente na questão. Outra proposta, a PEC 71, prevê a indenização da União aos produtores rurais em terras indígenas.


Milícia, boataria e descompromisso


Segundo o Ministério Público Federal (MPF) em Mato Grosso do Sul, os fazendeiros do Estado criaram uma milícia no feriado prolongado para atacar os indígenas. Como prova disso, o MPF apresentou mensagens enviadas no WhatsApp pelo presidente do Sindicato Rural local a fazendeiros da região de Dourados. Nas mensagens, o líder dos ruralistas convocava seus pares a remover os Guarani-Kaiowá à força das fazendas que eles ocupam. Menos de uma semana após a morte de Vilhalva, em 3 de setembro, de 30 a 40 caminhonetes com jagunços atacaram a tribo Guyrakamby'i, fazendo mais de 55 disparos contra os indígenas. A terra já consta como demarcada no site da Fundação Nacional do Índio (Funai), mas uma liminar da Justiça Federal em Dourados, datada de janeiro de 2012, suspendeu o procedimento de demarcação da reserva. No início de agosto, o Tribunal Regional Federal da 3a. Região cassou a liminar e determinou a retomada dos trabalhos da Funai para demarcar a área.

Os ataques recentes a indígenas em conflitos por terra soam como uma antiga canção em nossos ouvidos. O Mato Grosso do Sul é o Estado que mais mata índios no Brasil, seja direta ou indiretamente. Em 2014, foram 41 indígenas assassinados no Estado, o que corresponde a 30% de todos os casos no país. Em 2013, por sua vez, 73 indígenas se suicidaram, o que representou o maior índice em 28 anos. Desde que os Guarani-Kaiowá reocuparam suas terras, espalharam-se boatos de que eles teriam incendiado as fazendas. Um dos principais responsáveis pela boataria foi o ex-governador Pedro Pedrossian Filho, que postou em sua página no Facebook fotos de um celeiro e de máquinas carbonizadas, alegando que retratavam a destruição promovida pelos indígenas após a invasão a uma fazenda da região. A imprensa local repercutiu o boato como fato. O Conselho Indigenista Missionário, por sua vez, comprovou que as imagens ilustram matéria publicada pelo jornal paraguaio Itapuá en Notícias sobre um incêndio ocorrido no último dia 24 numa fazenda do país. Como jornalista por formação, é uma vergonha presenciar colegas se prestando ao serviço de porta-vozes oficiais de um segmento econômico corrupto e assassino. 

O avô a que me referi anteriormente prosperou apesar do Estado durante a ditadura militar e comprou uma fazenda. Sua propriedade nunca foi atacada por indígenas ou sem-terra, e sim por aqueles que se dizem atacados por eles. Grileiros pagavam miseráveis para invadir a terra do meu avô para depois apresentarem um documento falso afirmando serem eles os verdadeiros donos da fazenda. Graças à persistência de meu avô, que conseguia convencer os invasores a sair de suas terras, as investidas deles não prosperaram. Esse é o modus operandi de quem se diz responsável pelo progresso do Brasil, um progresso que nos custa a harmonia ambiental e a paz social. De quem acusa os que colocam a vida acima dos bens materiais de comunistas, como foi o caso da proprietária de uma das fazendas ocupadas, que se apresenta como responsável por colocar alimento na mesa dos brasileiros. A vida não vale nada por aquelas bandas. Após a confirmação da morte de Vilhalva, o ex-governador mostrou-se alinhadíssimo com a criação da força paramilitar: "Na ausência do Estado, temos que fazer a nossa própria segurança". Se o ex-governador escreve isso e sai impune, imagina se algum dia irão punir os assassinos de indígenas, que movimentam milhões e financiam as campanhas dos políticos sul-mato-grossenses. Imagina se irão punir os membros da Bancada Ruralista investigados na Operação Lava-Jato, que representam 63% do total de envolvidos nos desvios de verbas da Petrobrás.

Seria cômico, não fosse trágico, o fato de que quem se apresenta como os responsáveis pela produção do alimento dos brasileiros são os responsáveis pela morte de crianças indígenas por inanição. O Estado brasileiro é uma piada de mal gosto. Garante a todos o direito à vida, mas não consegue nem mesmo pôr fim a um genocídio que já se arrasta por 500 anos. Em 13 de setembro de 2007, o Brasil assumiu um compromisso de assegurar o direito à vida dos indígenas perante a comunidade mundial de nações, ao assinar a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Autóctones. Pelo menos o procurador federal Marco Antônio Delfino de Almeida, responsável pelas investigações contra a milícia, parece ter entendido o recado. "A gente não pode, em hipótese alguma, entender que aspectos patrimoniais podem prevalecer em relação à integridade física das pessoas", afirmou. Resta saber se policiais e juízes entenderam o compromisso feito pelo Estado brasileiro. Pelo grande histórico de impunidade nos julgamentos de conflitos no campo, tendo a crer que não. Como disse o poeta, há quase trinta anos, "quem me dera, ao menos uma vez, que o mais simples fosse visto como o mais importante, mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente".

De um lado, um país desenvolvido. Do outro, um país pobre.
Rezo para que o desenvolvimento nunca chegue à Bolívia.
Um dia, quando não restar mais floresta alguma e a temperatura na superfície da Terra for insuportável, quando a água doce estiver toda poluída e a falta de camada de ozônio obrigar as pessoas a ficar em casa o dia inteiro, quando os frutos das árvores já nascerem podres e o dinheiro não tiver mais valor algum, porque não haverá mais nada para comprar... Aí sim nos lembraremos das "mais belas tribos dos mais belos índios", dizimadas por não fazerem parte da atual lógica consumista, e de como sua relação harmoniosa com o meio-ambiente poderia ter salvado a todos nós. "Quem me dera, ao menos uma vez, explicar o que ninguém consegue entender". É por isso que escrevo. E foi por isso que entrei na faculdade de jornalismo. A questão indígena me toca devido à minha ascendência ameríndia, isso é verdade, mas deveria sensibilizar a todos nós, cidadãos preocupados com o futuro do Brasil, pois nenhum fato é isolado dos demais. Com a vitória dos ruralistas, estamos transformando nosso país num deserto verde, o que já está cobrando sua conta. Assustei-me ontem ao me deparar ontem com uma foto da fronteira entre a Bolívia, país que é referência em assegurar os direitos dos indígenas, e o Brasil. Se a destruição é a chave para o progresso, por que o Brasil é mais desigual que a Bolívia? Com a palavra, os fazendeiros e seus defensores na mídia.