sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Brasil: um museu de grandes novidades

Cada vez mais a história recente do Brasil lembra a da República de Weimar. Este é o nome não-oficial dado à Alemanha entre a queda da monarquia em 1918-19 e a ascensão de Adolf Hitler em 1933. Ontem foi divulgada uma nova pesquisa para a eleição presidencial de 2018. Nela, o ícone da extrema-direita Jair Bolsonaro (PP-RJ) aparece com intenção de voto maior do que Ciro Gomes (PDT-CE), que em tese seria um nome mais conhecido do eleitorado, tendo sido ministro dos governos Itamar Franco e Lula e duas vezes candidato a presidente. Venho alertando para o crescimento do candidato da extrema-direita já há algum tempo. Entretanto, a esquerda prefere subestimá-lo, tratando-o como uma piada, como um personagem extremista demais para ser eleito. Jean-Marie Le Pen também era visto como uma piada, extremista demais para ter alguma chance dentro do jogo tradicional da política francesa. Em 2002, no entanto, emergiu para o segundo turno da disputa presidencial francesa, chocando a centro-esquerda e a direita moderada, que volta e meia deixa suas diferenças de lado e forjam coalizões para evitar a vitória da Frente Nacional.

A luta fratricida entre SPD e KPD levou à
morte de Rosa Luxemburgo e inviabilizou
uma aliança entre os partidos até 2001.
Desde meados do ano passado digo que Bolsonaro deve ter cerca de 15% dos votos em 2018. Um percentual comparável àquele obtido por Adolf Hitler, que também era subestimado pela esquerda, em 1930. O grande percentual de votos obtido pelo Partido Nazista tirou o Partido Social Democrata (SPD) do poder. Criado no final do século XIX por simpatizantes de Karl Marx, o SPD promoveu reformas tímidas a favor dos trabalhadores sem reformar a estrutura do Estado alemão. Chegou a defender a monarquia quando viu que tinha chances reais de eleger o chanceler. Em 1918, no entanto, com a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial, aliou-se a monarquistas revoltados e tomou o poder, proclamando a República na cidade de Weimar (daí o nome). Foi aí que surgiu o Partido Comunista (KPD), que defendia uma revolução mais profunda. Durante a revolução de 1919, o SPD se aliou aos anticomunistas para garantir a estabilidade do novo regime, o que levou ao assassinato de Rosa Luxemburgo. Isto inviabilizou uma aliança SPD-KPD por décadas. Em 2001 Klaus Wowereit, então prefeito-eleito de Berlim, forjou uma aliança do SPD com o Die Linke, sucessor do KPD.

O relativo sucesso dos nazistas na eleição de 1930 pode ser explicado por dois fatores: a incapacidade do SPD em lidar com a crise de 1929 e o fim dos ataques da imprensa ao gênio louco que era Adolf Hitler. Assim como no Brasil atual, o último governo de centro-esquerda da República de Weimar foi marcado pela falta de maioria no parlamento, o que obrigava o chanceler Hermann Müller a fazer concessões à direita e impossibilitava-o de enfrentar a crise econômica. Os direitistas, em especial ex-militares, culpavam uma conspiração de socialistas e minorias étnicas (judeus e polacos) pelos problemas econômicos do país. Discurso que começa a ganhar força aqui. A imprensa viu nesse discurso perigosíssimo a oportunidade de tirar o SPD do poder. Hitler forjou uma aliança com o magnata da imprensa e político Alfred Hugenberg, cujos jornais pararam de atacá-lo. Os nazistas passaram de 2,6% para 18,25% dos votos. Prevejo cenário semelhante em 2018: a mídia brasileira – tão oligopolizada quanto a alemã era – não atacará Bolsonaro porque ele é útil para seu plano de tirar o PT do poder. Não vai exaltá-lo, pois finge ser democrática, mas também não o atacará.

Prevejo também a esquerda mais radical do país culpando o PT pela ascensão da extrema-direita, assim como o KPD culpava o SPD pela ascensão do nazismo. Embora o PT nunca tenha perseguido e provocado a morte de dirigentes do PSOL, as divergências entre os dois partidos permanecem tão fortes quanto as de social-democratas e luxemburguistas. Assim como alguns no PSOL hoje falam do PT, os membros do KPD encaravam o SPD – e não o Partido Nazista – como o maior inimigo da classe trabalhadora. Entendo perfeitamente de onde vem essas críticas. O PT se apresenta como revolucionário no Horário Eleitoral e atua como o PSDB light no poder. Enganou a classe trabalhadora. Mas o próprio PSOL também está sendo vítima da encruzilhada anti-PT. O partido teve seu único prefeito, de Itaocara-RJ, cassado sem nenhum motivo legal aparente, assim como Franz von Papen depôs o governo de esquerda da Prússia para agradar os nazistas. E isso foi só o começo. Ninguém ficará a salvo da sanha anti-esquerdista. Nem mesmo Marina Silva, que se julga acima das ideologias. Em 2014 mesmo ela começou a ser atacada pela direita hidrófoba por ter pertencido ao PT até 2009. 

O atentado ao Reichstag, praticado pelos próprios nazistas
teve sua culpa atribuída ao KPD, o que justificou a aplicação
da cláusula anti-terrorismo da Constituição por Hitler.
Com a aprovação da mal-fadada lei "antiterrorismo" ficará ainda mais fácil criminalizar tanto o bloco PT/PCdoB quanto o PSOL. A Alemanha também reprimia duramente os "terroristas" (só os de esquerda, porém) durante a República de Weimar. Sua Constituição permitia a suspensão dos direitos individuais em situações que o próprio governo definia como sendo "de emergência". Foi esse dispositivo legal que permitiu a Hitler dar início a seu regime de exceção, tendo como justificativa o "atentado terrorista" no prédio do Reichstag, supostamente praticado por membros do KPD. Ele suspendeu direitos individuais e todos os partidos políticos valendo-se da própria ordem legal estabelecida. A lei aprovada no Congresso Nacional repete o dispositivo constitucional alemão e pode acabar sendo usada para fins absolutamente estranhos àqueles que o legislador imaginou ao criá-la. Enquanto isso, o PT tenta defender as concessões indefensáveis que Dilma Rousseff pratica para tentar se manter no poder e o PSOL, megalômano, crê ter musculatura o suficiente para reverter a guinada conservadora da sociedade sozinho.

No entanto, equivoca-se quem acha que a direita já estabelecida é a principal beneficiária do atual caos político. De maneira semelhante à Alemanha dos anos 1930, a direita parlamentar também perde espaço para a direita marginal. Mesmo que o PSDB consiga eleger o presidente em 2018, o partido vai se deteriorar no poder de forma muito mais rápida do que o PT, em especial se a crise econômica prevalecer. Os tucanos não vão conseguir "arrumar a economia" tão rápido quanto prometem e, como já provaram no passado, vão tentar fazê-lo às custas do povo, já irritado. Isso vai revoltar parte significativa de sua base eleitoral, que vai cair de bandeja nas mãos de Bolsonaro. É algo que a crise econômica mundial vem provocando nas principais economias do mundo: a descrença com os representantes da política tradicional ou, como preferem dizer alguns analistas políticos, "o fim do centro político". Tanto Donald Trump quanto Bernie Sanders, por exemplo, definem-se como políticos anti-establishment. É assim que os eleitores de Bolsonaro vêem seu "mito", como um outsider da política, embora ele já esteja no Congresso há 30 anos.

Seria o povo brasileiro os ratos de Hamelin?
Por tudo o que foi dito acima, dói conhecer a História. Aqueles que conhecem-na vêem os que não a conhecem – que são a grande maioria atualmente – repetindo-a sem poder fazer nada. Como convencer uma pessoa que sequer ouviu falar de Mein Kampf que ela está caindo no discurso de um flautista de Hamelin que vai conduzir a todos nós para o abismo? A sensação de impotência é enorme. Mesmo aqueles que presumivelmente conhecem a História repetem-na. As concessões de Dilma à direita para tentar agradar à elite que quer derrubá-la e criminalizar o PT também foram tentadas, sem êxito, pelo SPD, que com isso traiu por completo o ideal de seus fundadores e perdeu para sempre o apoio da classe trabalhadora. A recusa do PSOL em aliar-se estrategicamente com o PT para evitar a ascensão de um mal maior se assemelha à recusa do KPD em compor com o SPD por orientação da Comintern. Não é à toa que pipocam nas redes sociais, desde o ano passado, páginas antifascistas que têm como símbolo o círculo idealizado pelo SPD no crepúsculo da República de Weimar.

Às vezes sinto como se a História se repetisse num loop constante. "Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades", já dizia o poeta. Espero, do fundo do meu coração, estar errado. Não sou nenhum cientista político, mas cada vez mais vejo o destino da República de Weimar se repetir aqui no Brasil. Até grupos monarquistas lutando contra a ordem democrática nós também temos! Em escala bem menor, é claro, mas mesmo assim temos. Sem falar na adesão ao discurso genocida por parte das próprias vítimas deste. Há hoje no Brasil negros apoiando a extrema-direita, assim como haviam judeus anticomunistas apoiando Hitler na Alemanha. Segundo eles, a esquerda os vê como vítimas enquanto a direita acredita em sua capacidade individual. O individualismo exacerbado, aliás, é uma característica do nazismo. O que importa é o que o indivíduo pode fazer pela sociedade e não o contrário. Sinto-me num filme de Fritz Lang. Vejo a ascensão do Dr. Mabuse através da hipnose da massa, disposta a renunciar à civilidade e adotar a violência sem questionamento. E, o pior de tudo, é que, como personagem coadjuvante, sinto que não posso fazer nada para evitar isso.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Como transformaram o PT em inodiável para mim

Já inventaram tanta asneira sobre Luiz Inácio Lula da Silva e sua família que me tornei indiferente às denúncias contra a família Silva mais famosa do Brasil. Mesmo que o tal sítio em Atibaia seja dele e que tenha sido ampliado através de tráfico de influências, não vou acreditar. Afinal de contas a Froboi, a Oi e até mesmo a Escola Superior de Agricultura da USP já foram apontadas como propriedades dos Silva no passado. Os opositores do ex-presidente me saturaram com tantas denúncias – a maioria delas falsas – sobre Lula. E isso vale para a imprensa também. Certa vez saiu num jornal que Lula estaria se divorciando de sua companheira de longa data, Marisa Letícia – que, ao contrário das esposas de tucanos, está sempre ao lado dele e não só de 4 em 4 anos – para se casar com sua "amante", a ex-modelo Luiz Brunet. Como Lula não se divorciou de Marisa e como até hoje jamais conseguiu se provar a participação dele no chamado "mensalão", que até hoje não entendi ao certo do que se trata (e nenhum opositor do presidente jamais foi capaz de me explicar), parei de acreditar no que a imprensa publica sobre ele.

A atual leva de denúncias contra o ex-presidente nos jornais – que a veterana atriz Eva Wilma chama de "caça às bruxas" – não surte efeito nenhum em mim, além da vontade de nunca mais ligar a televisão ou o rádio ou de abrir uma revista ou um jornal. O efeito das denúncias, em mim, é o contrário daquele que é surtido na maioria das pessoas: quanto mais acusam Lula, mais o emissário (e não o acusado) perde a credibilidade. Denunciar Lula perdeu o sentido para mim. Acusam-no pelo simples prazer de acusar, enquanto some dos jornais a denúncia de Mirian Dutra, amante de Fernando Henrique Cardoso, de que o ex-presidente tucano usou uma offshore (empresa aberta em paraíso fiscal para não pagar imposto de renda) para sustentar o filho dos dois no exterior. Isto tem sua razão de ser. Nas palavras de sua amante, Fernando Henrique é um membro "da aristocracia de São Paulo" que no mundo irreal desta. Já Lula é um retirante nordestino que experimentou a fome, o descaso do poder público com a educação e a saúde (sua primeira esposa e o filho que ela esperava morreram de infecção hospitalar). Ele não cresceu no mundo irreal de sítios luxuosos em Atibaia que tentam imputar a ele.

Dá pra confiar a nação em quem faz chacota com deficiência?
Boa parte das denúncias contra Lula – na imprensa e fora dela – são carregadas de ódio de classe e de preconceito regional. Sem falar na última moda das "manifestações democráticas" que eclodiram em 2015 que é ridicularizar o ex-presidente pelo fato dele ser amputado. O que ser pobre, nordestino e deficiente físico tem a ver com a capacidade de gerir a coisa pública? Franklin D. Roosevelt é considerado o maior presidente dos Estados Unidos no século XX e ele era deficiente físico. Abraham Lincoln é considerado o maior presidente da mesma nação no século anterior e ele teve uma infância pobre. Desmerecer o indivíduo devido a características pessoais que ele não pode mudar é o cúmulo da cretinice. Pessoas que não respeitam a trajetória e a individualidade do outro não têm credibilidade nenhuma para mim e tudo o que falam é nulo. As denúncias contra Lula, quando proferidas por gente assim, deixam de ser relevantes para mim. Até porque eu também sofro preconceito por não ser aquilo que a sociedade espera de mim. Sou homossexual e encontrei no Partido dos Trabalhadores a aceitação que jamais tive na sociedade em geral.

Sou um underdog (desprivilegiado que é atacado por todos) e transformar Lula e o PT em underdogs só vai fazer aumentar minha identificação com eles. A imprensa teria conseguido me fazer abandonar o partido se seus ataques fossem mais pontuais e referentes às suas falhas reais como, por exemplo, o fim da democracia interna. À grande imprensa surgida no período ditatorial, no entanto, não interessa criticar ninguém por falta de democracia. Ela não deseja uma sociedade democrática, pois sociedades democráticas não toleram a concentração dos meios de comunicação nas mãos de uma dezena de famílias. Da maneira como atuam desde 2005, atacando o PT por ser o partido dos trabalhadores que agora anseiam por tudo aquilo que os outros partidos e seus eleitores têm acesso, só fazem aumentar minha identificação com o partido. E o fato dos perseguidores dos underdogs, como os pastores evangélicos, estarem contra o PT, ajuda. A imprensa, para mim, também é inimiga de underdogs como eu e seus constantes ataques ao PT reduziram meu senso crítico para com o partido. Baseando minhas informações apenas na imprensa nacional, não sei mais dizer o que é verdadeiro e o que é falso em relação ao partido e a seu maior ícone, o ex-presidente Lula.

Quando quero saber se um programa do governo petista é bom ou quando quero saber a real dimensão das denúncias contra Lula consulto a imprensa internacional. O Los Angeles Times fez uma reportagem maravilhosa sobre o programa Mais Médicos e a BBC Brasil colocou em perspectiva as denúncias contra o ex-presidente, tendo o cuidado de ouvir os advogados dele em relação a todas elas. A impressão que tenho quando leio à imprensa nacional é que estou me deixando alienar por um grupo cuja única razão de existência é derrubar projetos políticos que não favorecem os grandes grupos de mídia e a plutocracia nacional. E a desconfiança é geral. Não é só sobre Lula e o PT. Duvido de tudo aquilo que sai na imprensa. E a culpa disso é da própria, de seu sensacionalismo contra o PT – e só contra o PT. Tirando entrevistas e algumas poucas colunas que ainda não foram tomadas pelos discípulos do astrólogo, tudo o que sai na imprensa é sem valor para mim. Podem até conseguir desconstruir o PT para a maioria da população, mas jamais vão destruir minha admiração pelos underdogs e pelas iniciativas políticas deles. Mesmo que tenha sido "clintonizado" pela  turma do José Dirceu nos anos 1990, o ideal de transformação social permanece, com ou sem PT, com ou sem  Lula. Por serem tão odiáveis em suas críticas, transformaram o PT em inodiável para mim.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Ser cristão é rejeitar o Brasil?

O ano de 2015 vai entrar para a história do Brasil como o ano do maior FEBEAPÁ que já tivemos. Logo no início do ano, a extrema-direita, órfã de ídolos desde que a linha-dura do regime militar perdeu força, elegeu Jair Bolsonaro (PP-RJ) para representá-la. O deputado havia dito, no plenário da Câmara dos Deputados, que não estupraria Maria do Rosário (PT-RS) porque ela não merece. Em seguida, na ressaca do carnaval, ocorreu o primeiro ato pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Cada faixa era um atestado de ignorância e incivilidade. "Por que não mataram todos em 1964?", "Fora Paulo Freire", "Somos milhões de Cunhas", "País rico é país onde rico manda, porque os ricos não precisam roubar", "Sonegação não é corrupção", etc., etc., etc., para não falar das hilárias faixas em inglês produzidas com a ajuda do Google Tradutor. Bem lúdicos, os protestos inovaram ao introduzir às manifestações de rua bonecos infláveis gigantes e coreografias elaboradas. Na Ucrânia, no Egito, na Tunísia, países onde a democracia de fato estava ameaçada, não deu tempo de promover flash mobs nem desfiles da Macy's contra o governo. Os manifestantes desses países também não tiveram tempo de tirar selfies com a polícia, pois estavam muito ocupados correndo dela.

O tradicional desfile de ação de graças da Macy's de 2015
contou com a presença de dois novos personagens.
Ficou claro para mim desde o início dos protestos contra Dilma que os valores nutridos pela sociedade brasileira são os piores possíveis. O brasileiro médio é ignorante (para não dizer imbecil): é a favor do policiamento genocida que mata suspeitos ao invés de investigar os crimes; tem pavor a experiências educacionais libertárias (embora Paulo Freire seja o segundo autor mais lido nos cursos de pedagogia dos Estados Unidos, país que tanto admira); vê toda e qualquer iniciativa distributiva do capitalismo, por menor que seja, como "comunismo"; acha que os problemas sociais se resolvem na delegacia e que grupos historicamente oprimidos como mulheres, indígenas, LGBT e negros são "vitimistas". O brasileiro médio acha que a história do país começou em 2003, quando o PT assumiu o governo federal e decidiu endereçar injustiças históricas. "O PT destruiu o Brasil". Claro, porque nossa nação era uma maravilha antes de Lula assumir a presidência. Esqueça que uma criança morria de fome a cada 5 minutos no país. A história não é um continuum. A corrupção não é um legado da colonização portuguesa, o racismo não é consequência da abolição mal feita e a violência policial nada tem a ver com a ditadura militar. Todos os problemas do Brasil se resumem ao PT ocupar a presidência da República.

O fato é que as ideias do capitalismo liberal triunfaram no Brasil, país tão rico quanto o Reino Unido e tão desigual quanto a Bolívia. Desde o advento do oligopólio midiático foram anos e mais anos de lavagem cerebral nos brasileiros para desincentivar o pensamento crítico, a análise histórica e a leitura de conjuntura. Na mídia, os fatos brotam como se estivessem isolados de um contexto histórico, político e social maior. O sistema educacional, por sua vez, não forma cidadãos; no ensino público trata alunos como futuros serviçais e no ensino privado como depósitos do conhecimento inútil exigido no vestibular. Isso explica a "controvérsia" ao redor do tema da redação do ENEM do último ano. Nem mesmo a religiosidade popular sobreviveu às garras do liberalismo. Na última década vimos ganhar força no Brasil igrejas "cristãs" que enfatizam versos do Antigo Testamento que falariam sobre como a prosperidade material é a maior promessa de Deus a seus seguidores. Esqueça a Carta de Paulo aos Filipenses, onde este diz que aqueles que "só pensam nas coisas terrenas" vivem como "inimigos da cruz de Cristo". A reinvenção do cristianismo explica como um papa, líder de uma das instituições mais tradicionais do mundo, pode ser visto como "subversivo" por brasileiros.

"Nossa Senhora, ilumine os reacionários". Porque, como todos
sabemos, Jesus foi a favor do status quo. Só que não.
Não é para menos. Os valores cultivados pela sociedade brasileira são essencialmente anti-cristãos. Apesar dos anseios dos fundamentalistas, Jesus Cristo não era um reacionário. Ele veio pregar contra a acumulação de riquezas terrenas, o que irritou o status quo de sua época. Não foi Marx quem disse que para segui-lo era preciso renunciar às riquezas materiais, foi Cristo. A mensagem trazida por Jesus trata-se de uma tentativa de restaurar a solidariedade humana (e, sim, Jesus era contra a sonegação de impostos!). Jamais entenderei como uma pessoa que se diz cristã pode sair na rua com faixas defendendo a tortura de outros seres humanos que ocorria no DOPS e que hoje ocorre nas UPP. A cruz simboliza a tortura pela qual Jesus passou para nos salvar, pelo amor de Deus! A não ser, é claro, que essa pessoa não seja cristã de verdade para começo de conversa. O Brasil cada vez mais se distancia do reino de Cristo e cada vez mais se aproxima do reino de Satã. Com a valorosa ajuda de "cristãos" que afirmam receber o Espírito Santo todo o domingo no culto para depois pedir a decapitação da presidenta e de seus eleitores em marchas "pela democracia". Bem que foi advertido que quando o Anticristo erguesse seu reino contaria com uma horda de seguidores com um discurso muito semelhante àquele dos seguidores de Cristo.

É dever do verdadeiro cristão rejeitar os valores da sociedade brasileira. Uma sociedade cujas bases são o egoísmo, a competição, o individualismo, o ódio aos pobres e excluídos não é uma nação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esses são os valores cultivados e reverenciados pelo brasileiro médio, convencido pela elite a adotá-los desde os governos militares, passando pelos governos neoliberais de Collor, Itamar e FHC e até mesmo na gestão petista (que preferiu criar consumidores ao invés de cidadãos). "Tá com dó? Leva para casa", arrota sempre que pode o brasileiro, que crê piamente que grupos com origens históricas distintas possuem oportunidades iguais. Trata-se de um retorno ao capitalismo arcaico, onde vigora a lei de sobrevivência do mais forte, ou seja, o darwinismo social. Ser brasileiro torna-se, cada vez mais, o oposto de ser cristão. Aproxima-se, por outro lado, de ser fascista. No fim de semana um canadense, tentando me agradar, disse que gostaria que houvessem mais brasileiros no Canadá. Respondi-lhe que não desejo isso para nenhuma nação. Ter mais darwinistas sociais no seu país com certeza levaria-o ao colapso, como estamos presenciando no nosso. Posso parecer derrotista, mas não vejo como conciliar os valores da sociedade brasileira com minha cristandade.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Violência contra a mulher: Só resta rogar à Virgem?

Essa semana comecei a assistir American Crime Story, nova série antológica de Ryan Murphy que a cada temporada vai contar a história de um crime verdadeiro. A primeira temporada, intitulada The people vs. O.J. Simpson, narra a história do assassinato de Nicole Brown por seu ex-marido, o jogador de futebol e ator Orenthal James Simpson, e o subsequente julgamento dele, conhecido à época como "o julgamento do século", dado o tamanho do escrutínio da mídia. É ultrajante ver que a comunidade negra dos Estados Unidos, à época furiosa com o tratamento dispensado pelo Departamento de Polícia de Los Angeles aos cidadãos negros, usou o caso O.J. Simpson como cause célèbre do racismo institucional. O.J., ao contrário de Rodney King, era rico e influente. Achar que a Justiça foi feita em seu caso é cuspir no cadáver de Nicole e de todas as mulheres vítimas de violência doméstica.

Kesha chorando ao ouvir o veredito a favor de Dr. Luke.
Por coincidência, ontem uma imagem emblemática de como a Justiça ainda dorme em berço esplêndido no que diz respeito à violência contra mulheres ganhou o mundo. É a imagem de uma jovem chorando, desamparada, num banco da Suprema Corte de Nova York. Suas lágrimas são iguais às lágrimas da família Brown ao ouvir o veredito que inocentou O.J. Simpson da morte de Nicole Brown. São idênticas às lágrima de milhares de mulheres que não conseguem colocar seus abusadores - físicos, sexuais e psicológicos - atrás das grades devido ao machismo institucionalizado presente nas delegacias de polícia, promotorias e cortes de Justiça ao redor do mundo. A jovem da imagem é a cantora e compositora Kesha Sebert, de 28 anos de idade, mundialmente conhecida por hits como "Tik Tok" (2009), "We R Who We R" (2010) e "Die Young" (2012).

Kesha movia um processo civil contra o produtor musical Lukasz Gottwald (mais conhecido como Dr. Luke), seu empresário, a quem acusa de abuso sexual e terrorismo psicológico no ambiente de trabalho. Ela buscava romper o contrato que possui com Dr. Luke, segundo o qual ainda precisa produzir seis discos para a companhia dele, ligada à Sony Music Entertainment, segunda maior gravadora do mundo. O juiz afirmou que caso Kesha não consiga produzir provas contra Dr. Luke terá que cumprir o contrato de trabalho integralmente. Com o veredito, a Justiça americana deu um forte recado a todas as mulheres que são vítimas de abuso sexual no ambiente de trabalho: vocês terão que conviver com seus chefes abusadores. Do jeito que a "Justiça" caminha, tanto aqui quanto lá fora, as mulheres vão ter que mandar instalar câmeras em seus sutiãs para filmarem seus abusadores e provarem que a violência sexual no ambiente de trabalho é algo real. 

Além do absurdo de obrigar uma mulher a trabalhar com seu suposto abusador, a decisão representa um retrocesso ao desconsiderar a jurisprudência criada nos anos 1950 pela Justiça da Califórnia ao dar ganho de causa à atriz Olivia de Havilland, que à época movia um processo para quebrar seu contrato com a Warner Bros. A decisão garantiu uma maior liberdade artística aos atores, que passaram a poder escolher em quais filmes (de quaisquer estúdios) poderiam atuar. O movimento #FreeKesha pode parecer, à primeira vista, bobo e alienado, criado por fãs de uma cantora pop heterossexual, loira, branca e rica. No entanto, traz consigo questões como o direito mais do que legítimo da mulher de não querer trabalhar com seu abusador e a liberdade artística numa indústria que funciona mais ou menos do mesmo jeito desde os anos 1960; e que ficou ainda pior com o desaparecimento das pequenas gravadoras a partir dos anos 1980.

Nicole Brown Simpson (1959-1994).
Kesha é o símbolo da mulher ideal - branca, heterossexual, loira, magra, rica e sexy. Mas Nicole Brown também era e isso não impediu que O.J. Simpson abusasse dela ao ponto de degolá-la na porta de sua casa enquanto os filhos deles dormiam dentro da mesma. O machismo não respeita nem mesmo as mulheres que tem como ideal de feminilidade. O ódio à mulher é o que lhe move, não importa o que ela faça para se adequar a ele. E o Estado só observa. Em American Crime Story, a promotora está revoltada com o ocorrido: "O Estado falhou com Nicole". Ela havia denunciado o ex-companheiro por violência doméstica oito vezes! Isso explica porque muitas vítimas de abuso sexual sequer denunciam o estupro à polícia. A cantora Madonna, que foi estuprada assim que se mudou para Nova York no final dos anos 1970, foi questionada pelo apresentador Howard Stern porque não denunciou o crime à época. Ela respondeu: "Simplesmente não vale a pena. É muita humilhação".

Apesar da violência contra a mulher ser mais discutida hoje do que era no final dos anos 1970 ou em 1994, quando Nicole foi assassinada, o Estado ainda falha com as mulheres, independente de sua classe social, etnia ou orientação sexual. Kesha, mesmo fazendo parte do 1% mais rico dos americanos, viu seu caso ter o mesmo destino que o de 98% das mulheres que levam seus casos de estupro à Justiça. Ela chorou porque percebeu que para a Justiça americana a vida feminina tem menos valor do que a masculina. Isso ficou bastante claro com o veredito do caso O.J. Simpson, que foi analisado sob as lentes do racismo enquanto deveria ter sido discutido sob as lentes do machismo [Fato curioso: numa América cada vez mais dividida entre negros e brancos, onde a percepção de cada grupo sobre o Poder Judiciário varia muito, os dois grupos atualmente concordam que O.J. matou Nicole]. É assim em nossa cultura desde que às mulheres foi imputada a culpa pela expulsão do Jardim de Éden. Quando nada de concreto é feito para salvaguardar a integridade física e moral das mulheres que vivem em sociedades cuja moralidade deriva das religiões abraâmicas, só lhes resta rogar à Virgem Maria.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Goiás, minarquia

PSDB: minarquistas disfarçados de liberais.
Existem vários regimes de governo: democracia, oligarquia, ditadura, anarquia. Mas você já ouviu falar na minarquia? Esse é o regime de governo sob o qual eu vivo. Moro em Goiás, um dos estados-vitrines do PSDB, o partido que advoga a minarquia na política brasileira. A minarquia nada mais é, stricto sensu, do que o Estado mínimo. Trata-se de um regime de governo onde a função social do Estado é negada e as únicas atribuições estatais reconhecidas como legítimas são as de vigiar (polícia), denunciar (promotoria) e punir (Justiça) os cidadãos. Às vezes também reconhece-se a função dos bombeiros, mas não há consenso em relação a isso. Pois bem, na cartilha do eleitor mais fanático do PSDB, aquele que sai às ruas pedindo a substituição inconstitucional, ilegal e inconsequente da presidenta Dilma Rousseff por uma junta militar, só a PF e o MPF deveriam existir.

O governo Dilma II deu uma guinada à direita e vestiu o figurino do liberalismo econômico, mas eles defendem um esfacelamento ainda maior do Estado enquanto agente de transformação social e superação das desigualdades sociais e das injustiças históricas. O Estado saiu da economia, é verdade, mas tem que sair de todas as áreas em que ainda interfere, a não ser aquelas citadas anteriormente. Pois bem, em Goiás essa agenda vem sendo implantada numa intensidade cada vez maior desde que o governador Marconi Perillo foi reeleito para comandar o estado pela quarta vez em 16 anos. Entre viagens para Nova York, Europa, Oceania ou Rio de Janeiro bancadas pelo dinheiro público, o governador já negociou a privatização da CELG e dos colégios estaduais, que se somam às privatizações dos hospitais públicos, realizadas no mandato anterior, para criar o Estado minárquico.

Para garantir o sucesso de seu projeto de Estado minárquico, o PSDB - esteja ele governando qualquer estado que for - se apoia na estratégia de criminalizar toda e qualquer voz (que não são poucas) que são a favor da função social do Estado. Até mesmo mestres e doutores são presos arbitrariamente. A Polícia Militar foi transformada por Perillo numa milícia responsável em garantir os interesses do governador e de seus comparsas que vão comprar a educação através de organizações sociais, instituições estas responsáveis pelo colapso do sistema de saúde do estado do Rio de Janeiro. Na versão goiana da minarquia, que se confunde com a oligarquia, a polícia perde sua função social e passa a ser um ente privado do governo de plantão. Não dá a mínima para celulares e carros roubados; sua única preocupação no momento é sufocar e intimidar os movimentos sociais.

Goiânia é atualmente mais violenta e perigosa do que Nova York, cidade 7 vezes maior. Tente ligar na polícia para reportar que você foi assaltado e você perceberá o quanto estamos jogados a nossa própria sorte aqui em Goiânia. É quase como se estivéssemos perturbando a polícia - paga com os nossos impostos - com nossos problemas. Pois bem, se os governos do PSDB querem provar que a Polícia Militar é uma das únicas instituições do Estado que deveriam existir, deveriam torná-la eficiente. No entanto, eles não precisam se preocupar com isso, pois, segundo o discurso oficial propagado por papagaios de pirata como a Organização Jaime Câmara,  a segurança pública de Goiás é uma das sete maravilhas do mundo contemporâneo. É só pagar o mensalinho da imprensa direitinho que jamais a eficiência da minarquia será questionada.

O fato é que em algum momento durante os últimos 18 anos de governo tucano em Goiás a democracia acabou. Se é que ela sequer existiu nessa terra no meio do nada esquecida por Deus. Vivemos num regime autoritário que, para implementar sua ideologia - a do Estado mínimo - consegue ser ainda pior do que o regime anterior, comandado pelo coronel Iris Rezende do PMDB. Mesmo que fossem igualmente repressivos, os governos do PMDB ainda defendiam o mínimo de função social do Estado. Marconi cria programas "sociais" para o grupo que o mantém no poder: a classe média. Os jovens pobres, desiludidos e impacientes se entregam para o crime, que explode como nunca antes na história do estado. Goiás está sendo destruído, assim como todos nós. Não vou me surpreender se entrar em colapso e seu próximo estágio for a anarquia. Parece ser esta a via desejada pelo PSDB para o Brasil.

Brasil, um país de todos os hipócritas

Não tenho o hábito de entrar em portais de notícias. Sou bem cuidadoso em relação às informações que deixo entrar no meu mundo. Quem se pauta pela mídia brasileira tem a sensação de que o mundo é um lugar composto, em sua esmagadora maioria, por pessoas sem nenhum senso de ética e que são capazes de matar outros seres vivos pelos motivos mais banais. Banhistas na Argentina mataram um golfinho para poder tirar selfies com eles, noticiou a mídia, sem checar a verdadeira história por trás daquelas imagens. Logo começou-se a esparramar frases de efeito como "prefiro bicho a gente". Por que, então, quem diz essa frase não se suicida? Seria uma gente a menos no mundo. 

Por mais cuidadoso que eu seja, histórias como essas viralizam e se torna impossível fugir delas. Outra história que viralizou, embora numa escala bem menor, foi aquela contada por Miriam Dutra, ex-amante de Fernando Henrique Cardoso, em entrevista na Folha de S. Paulo. Em comum, essas duas histórias refletem o profundo caso de amor dos brasileiros com a hipocrisia. A indignação com o suposto assassinato de um golfinho não se viu presente na revelação de que um presidente da República valia-se de uma offshore (empresa localizada num paraíso fiscal para não pagar imposto de renda) para sustentar um filho que teve fora do casamento.

Quem nasce no meio da hipocrisia não está imune a ela. Eu mesmo nutria sentimentos moralistas em relação a Miriam Dutra. Achava que ela tivesse dado o "golpe da barriga". Agora que conheci a versão dela - e não de repórteres ligados ao PT - percebo que ela foi, na verdade, a vítima. A vítima de uma sociedade hipócrita, onde o homem pode abandonar um filho, contando para isso com o apoio da máquina estatal se ele for membro do Governo Federal, e a mulher é tachada de vagabunda se tentar fizer o mesmo. Ela foi obrigada a mentir, dar entrevista à pseudo-jornalística revista Veja falando que o filho era de um biólogo. Caso contrário, o fundador do PSDB destruiria sua vida.

O slogan que merecemos de verdade.

Agora fica a pergunta: e se fosse uma ex-amante de Lula que aparecesse contando história similar? Ela simplesmente viraria uma celebridade da mídia mais poderosa do que as Kardashians da noite para o dia. Desde que o Partido dos Trabalhadores chegou ao poder os tribunais - midiáticos e de Justiça - brasileiros passaram a adotar o sistema de dois pesos, duas medidas. Ou double standard, já que os magistrados brasileiros são chegados em Miami. Quem não é desconexo da realidade, quem enxerga a roubalheira independente de partido, quem acha imoral um pai - seja ele sociólogo ou torneiro mecânico - abandonar um filho, quem se recusa à ignorância pequeno-burguesa, sofre.

Eu deixei de acompanhar a mídia brasileira porque eu me conheço e sei que vou ficar irritado com a falta de transparência dos jornalistas ao lidar com a corrupção tucana. Eu nunca suportei a hipocrisia. Desde pequeno encaro comportamentos hipócritas como ausência de caráter. É nisso que os sem-caráter da mídia e seus comparsas do Ministério Público e da Justiça querem transformar o povo brasileiro: num país de hipócritas, numa nação de sem-cárter. Os pirateiros, os motoristas que estacionam em local proibido e furam sinal, os fraudadores de FIES, os subornadores, os sonegadores, os batedores de panela, podem segui-los. Eu jamais seguirei.

Tenho a consciência límpida, embora cada vez mais tenho a certeza de que o que move o debate político brasileiro é a hipocrisia - vejo pessoas corruptíssimas em suas vidas privadas exigindo transparência de pessoas públicas, como se elas não fossem o reflexo de si mesmas. Votamos em qualquer um pelo simples fato de serem anti-PT e queremos ser a França! Como bem declarou Supla hoje mais cedo em entrevista à rádio Jovem Pan, o Brasil é um país onde o álcool (que mata uma pessoa a cada dez segundos) é liberado e a maconha (que nunca causou uma morte direta sequer) não. "Eu não acredito nisso", disse o roqueiro cinquentão. Nem eu.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O segredo é não reagirmos como esperam

Sexta-feira, 1° de janeiro de 2016. Novo dia de um novo ano. No entanto, eu ainda estava angustiado por causa de fatos ocorridos no ano anterior. Não é porque um marco temporal passou que meus sentimentos mudaram. Decidi caminhar. Fui num parque perto de casa. Me animei e segui para outro, um pouco mais distante, embora seja localizado no mesmo bairro. Escureceu. Voltando para casa, fui encurralado por um cara de bicicleta. Fugi. Mas ele me alcançou e ameaçou tirar minha vida se eu não lhe entregasse meu celular. Um pedaço de plástico que custou R$ 650 ou minha vida? Escolhi a última, pois celular tem como a gente comprar outro; a vida, não.

O que ocorreu em seguida foi surpreendente. Nas horas seguintes ao assalto, fiquei muito chateado. O choque emocional de saber que, no Brasil, uma vida humana vale menos do que um pedaço de plástico que custou menos do que sete notas de cem reais foi grande. No entanto, me recusei a me desmoronar, como teria ocorrido num passado recente. Aprendi que, diante de um acontecimento ruim, temos três opções: podemos deixá-lo nos definir, podemos deixá-lo nos destruir ou podemos deixá-lo nos fortalecer. O que o assaltante queria, além do meu celular? Ele queria me destruir por causa de um celular e eu simplesmente não posso permitir isso. Minha vida vale mais do que todas as posses materiais que eu eu já acumulei.

É claro que não vou me colocar numa situação de violência tão cedo novamente. Moro numa das cidades mais violentas do mundo. A título de ilustração: no ano de 2015, 340 pessoas foram assassinadas em Nova York (8,4 mi de habitantes); no mesmo período, 553 pessoas foram assassinadas em Goiânia (1,2 mi de habitantes). Só nos últimos 15 meses é a segunda vez que apontam uma arma na minha cara por conta de um pedaço de plástico. Recusar a deixar um assalto me definir não significa que vou desafiar a realidade violenta e rir do perigo. Significa que vou criar resiliência para as situações em que essa realidade dura e brutal bater na minha porta. Significa que não vou me abater por conta do mal que outras pessoas desejam infligir em mim.

Nunca havia entendido direito a passagem bíblica em que Jesus Cristo incita seus seguidores a oferecerem a outra face caso fossem agredidos. Não entendi porque os americanos não poderiam se deixar vencer pelo luto após o 11 de setembro. Creio que o então presidente disse algo como: se deixarmos de fazer qualquer coisa por medo, então os terroristas terão vencido. Tampouco havia entendido a atitude recente do cantor e compositor Chico Buarque de não revidar a agressão que sofreu de um bando de playboys cariocas que o chamou de nomes inimagináveis na saída de um restaurante localizado no Leblon, bairro nobre do Rio de Janeiro.

O fato é que não podemos deixar os outros pautarem nossos sentimentos e nossas ações. O ladrão que me roubou estava louco para que eu reagisse e ele pudesse, em sua mente doentia, justificar sua sede por agredir estranhos na rua. Além disso, ele quer que eu sinta raiva dele, que eu chore as fotos, músicas e vídeos perdidos, como se fossem o tesouro mais incalculável que eu acumulei nessa vida. Assim como nos outros exemplos citados, dos romanos aos playboys cariocas, passando pelos radicais islâmicos, os agressores precisam de uma reação de suas vítimas para justificarem a agressão que infligem. Se reagirmos como os agressores desejam, damos a vitória a eles. Mas se ousamos sorrir depois de sermos nocauteados por eles, se ousamos seguir com nossas vidas, eles perdem.

Numa vida cheia breve e incerta, onde a única certeza que temos é a iminência da morte, faz sentido gastar tanto tempo pautando-nos pelos outros? Vale a pena viver a partir de reação a estímulos externos como ratos de laboratório? Encarar a vida com leveza, aceitar que a vida não faz o menor sentido e que a única certeza nela é o seu fim é a chave para uma existência feliz. Se cada vez que nos derrubarem nós demorarmos a sair das cordas, no final de nossa jornada teremos desperdiçado tempo demais contemplando a dor da derrota e tempo de menos fazendo aquilo que fomos enviados para fazer neste planeta: viver, ou seja, ter experiências. 

Algumas experiências serão boas e outras serão ruins. Nem sempre seremos capazes de controlar nossas vidas para que elas sejam preenchidas apenas por experiências boas. Mesmo que consigamos atingir o nirvana, o mundo foge do nosso controle e atrapalha nossa busca pela paz. Mas podemos — e devemos — buscar minimizar o efeito daqueles que desejam tirar nossa paz e nos colocar em posição de conflito, daqueles que buscam uma declaração de guerra assinada por nós. O segredo da vida é não reagirmos da forma que as outras pessoas esperam que vamos reagir.