segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Ser cristão é rejeitar o Brasil?

O ano de 2015 vai entrar para a história do Brasil como o ano do maior FEBEAPÁ que já tivemos. Logo no início do ano, a extrema-direita, órfã de ídolos desde que a linha-dura do regime militar perdeu força, elegeu Jair Bolsonaro (PP-RJ) para representá-la. O deputado havia dito, no plenário da Câmara dos Deputados, que não estupraria Maria do Rosário (PT-RS) porque ela não merece. Em seguida, na ressaca do carnaval, ocorreu o primeiro ato pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Cada faixa era um atestado de ignorância e incivilidade. "Por que não mataram todos em 1964?", "Fora Paulo Freire", "Somos milhões de Cunhas", "País rico é país onde rico manda, porque os ricos não precisam roubar", "Sonegação não é corrupção", etc., etc., etc., para não falar das hilárias faixas em inglês produzidas com a ajuda do Google Tradutor. Bem lúdicos, os protestos inovaram ao introduzir às manifestações de rua bonecos infláveis gigantes e coreografias elaboradas. Na Ucrânia, no Egito, na Tunísia, países onde a democracia de fato estava ameaçada, não deu tempo de promover flash mobs nem desfiles da Macy's contra o governo. Os manifestantes desses países também não tiveram tempo de tirar selfies com a polícia, pois estavam muito ocupados correndo dela.

O tradicional desfile de ação de graças da Macy's de 2015
contou com a presença de dois novos personagens.
Ficou claro para mim desde o início dos protestos contra Dilma que os valores nutridos pela sociedade brasileira são os piores possíveis. O brasileiro médio é ignorante (para não dizer imbecil): é a favor do policiamento genocida que mata suspeitos ao invés de investigar os crimes; tem pavor a experiências educacionais libertárias (embora Paulo Freire seja o segundo autor mais lido nos cursos de pedagogia dos Estados Unidos, país que tanto admira); vê toda e qualquer iniciativa distributiva do capitalismo, por menor que seja, como "comunismo"; acha que os problemas sociais se resolvem na delegacia e que grupos historicamente oprimidos como mulheres, indígenas, LGBT e negros são "vitimistas". O brasileiro médio acha que a história do país começou em 2003, quando o PT assumiu o governo federal e decidiu endereçar injustiças históricas. "O PT destruiu o Brasil". Claro, porque nossa nação era uma maravilha antes de Lula assumir a presidência. Esqueça que uma criança morria de fome a cada 5 minutos no país. A história não é um continuum. A corrupção não é um legado da colonização portuguesa, o racismo não é consequência da abolição mal feita e a violência policial nada tem a ver com a ditadura militar. Todos os problemas do Brasil se resumem ao PT ocupar a presidência da República.

O fato é que as ideias do capitalismo liberal triunfaram no Brasil, país tão rico quanto o Reino Unido e tão desigual quanto a Bolívia. Desde o advento do oligopólio midiático foram anos e mais anos de lavagem cerebral nos brasileiros para desincentivar o pensamento crítico, a análise histórica e a leitura de conjuntura. Na mídia, os fatos brotam como se estivessem isolados de um contexto histórico, político e social maior. O sistema educacional, por sua vez, não forma cidadãos; no ensino público trata alunos como futuros serviçais e no ensino privado como depósitos do conhecimento inútil exigido no vestibular. Isso explica a "controvérsia" ao redor do tema da redação do ENEM do último ano. Nem mesmo a religiosidade popular sobreviveu às garras do liberalismo. Na última década vimos ganhar força no Brasil igrejas "cristãs" que enfatizam versos do Antigo Testamento que falariam sobre como a prosperidade material é a maior promessa de Deus a seus seguidores. Esqueça a Carta de Paulo aos Filipenses, onde este diz que aqueles que "só pensam nas coisas terrenas" vivem como "inimigos da cruz de Cristo". A reinvenção do cristianismo explica como um papa, líder de uma das instituições mais tradicionais do mundo, pode ser visto como "subversivo" por brasileiros.

"Nossa Senhora, ilumine os reacionários". Porque, como todos
sabemos, Jesus foi a favor do status quo. Só que não.
Não é para menos. Os valores cultivados pela sociedade brasileira são essencialmente anti-cristãos. Apesar dos anseios dos fundamentalistas, Jesus Cristo não era um reacionário. Ele veio pregar contra a acumulação de riquezas terrenas, o que irritou o status quo de sua época. Não foi Marx quem disse que para segui-lo era preciso renunciar às riquezas materiais, foi Cristo. A mensagem trazida por Jesus trata-se de uma tentativa de restaurar a solidariedade humana (e, sim, Jesus era contra a sonegação de impostos!). Jamais entenderei como uma pessoa que se diz cristã pode sair na rua com faixas defendendo a tortura de outros seres humanos que ocorria no DOPS e que hoje ocorre nas UPP. A cruz simboliza a tortura pela qual Jesus passou para nos salvar, pelo amor de Deus! A não ser, é claro, que essa pessoa não seja cristã de verdade para começo de conversa. O Brasil cada vez mais se distancia do reino de Cristo e cada vez mais se aproxima do reino de Satã. Com a valorosa ajuda de "cristãos" que afirmam receber o Espírito Santo todo o domingo no culto para depois pedir a decapitação da presidenta e de seus eleitores em marchas "pela democracia". Bem que foi advertido que quando o Anticristo erguesse seu reino contaria com uma horda de seguidores com um discurso muito semelhante àquele dos seguidores de Cristo.

É dever do verdadeiro cristão rejeitar os valores da sociedade brasileira. Uma sociedade cujas bases são o egoísmo, a competição, o individualismo, o ódio aos pobres e excluídos não é uma nação de Nosso Senhor Jesus Cristo. Esses são os valores cultivados e reverenciados pelo brasileiro médio, convencido pela elite a adotá-los desde os governos militares, passando pelos governos neoliberais de Collor, Itamar e FHC e até mesmo na gestão petista (que preferiu criar consumidores ao invés de cidadãos). "Tá com dó? Leva para casa", arrota sempre que pode o brasileiro, que crê piamente que grupos com origens históricas distintas possuem oportunidades iguais. Trata-se de um retorno ao capitalismo arcaico, onde vigora a lei de sobrevivência do mais forte, ou seja, o darwinismo social. Ser brasileiro torna-se, cada vez mais, o oposto de ser cristão. Aproxima-se, por outro lado, de ser fascista. No fim de semana um canadense, tentando me agradar, disse que gostaria que houvessem mais brasileiros no Canadá. Respondi-lhe que não desejo isso para nenhuma nação. Ter mais darwinistas sociais no seu país com certeza levaria-o ao colapso, como estamos presenciando no nosso. Posso parecer derrotista, mas não vejo como conciliar os valores da sociedade brasileira com minha cristandade.

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