sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

O ano em que me tornei forte

Meu lado forte que 2016 revelou.
Há alguns meses, publiquei um texto atribuindo à deusa grega do amor, Afrodite, a regência desta nova fase de minha vida. Agora, no entanto, percebo que esta mudança não ocorreu por obra de um agente externo. Trata-se do meu lado feminino (daí a confusão com Afrodite) tomando as rédeas de minha vida. Meu lado masculino sempre foi uma bagunça. Inseguro, frágil e confuso, nunca soube como ir atrás daquilo que eu desejo e percebo como sendo o melhor para mim. Meu lado feminino, por outro lado, é sagaz, calculista e empoderou-me para a luta. Foi só quando deixei de lutar contra ele que percebi as maravilhas que ele pode fazer por mim.

Com o perdão da palavra, 2016 foi um ano de merda. Parece que o caos sociopolítico do Brasil passou a se refletir sobre minha vida também. Diversas vezes, minha saúde física e mental encontrou-se fragilizada nesse ano. Mas eu me levantei todas as vezes que caí. Eu vim, eu vi, eu venci. Não me entrego mais ao caos. O caos pode sim ser construtivo e ter seus momentos de beleza, mas nunca mais vou parar minha vida para contemplá-lo. Demorou, mas finalmente compreendi que a função da desordem é fazer com que possamos tirar um aprendizado dela. A vida nos derruba para que possamos aprender a nos levantar, quantas vezes preciso for, e seguir em frente.

Ver os atletas e não poder sequer me levantar da cama sem
 que meu pé doesse atormentava terrivelmente minha alma.
De tanto cair em 2016, mesmo que metaforicamente, acabei machucando justamente o tendão de Aquiles — olha a mitologia grega aparecendo aqui de novo —, que é o responsável pelo ato de levantar-se. E do lado esquerdo, o lado do subconsciente. Este talvez tenha sido o maior baque que levei neste ano. Fui obrigado a parar de me exercitar justamente quando a maior festa do esporte mundial, as Olimpíadas, estava em nosso país. Num primeiro momento, agi sob a influência do meu lado marciano e entreguei-me à enfermidade, esperando que a inflamação curasse sozinha. Em seguida, meu lado feminino, venusiano, tomou conta de mim e colocou-me em ação para recuperar minha mobilidade.

A Vênus que habita dentro de mim também ensinou-me a lidar melhor com outras doenças: as da alma. Não quero mais agradar a todos e perdi a vergonha de me expressar em público, porque percebi que não tenho nada a perder, a não ser o medo de ser julgado. Aprendi que a língua do brasileiro não é o português, mas sim o cinismo. E que ele teria me levado longe se eu tivesse lançado mão dele, mas eu teria perdido uma parte importante de mim que é a honestidade. Aprendi também que "gostei de você" e "vamos nos ver" são só palavras, utilizadas por pessoas emocionalmente confusas, e o significado cruel da expressão ghosting e como reagir a ele. Aprendi até mesmo a gostar de Goiânia, uma vez que percebi que o que importa numa cidade não é sua infraestrutura ou seus costumes, mas sim como construímos nossas relações afetivas dentro dela.

Começar um diário ajudou-me a reconhecer minhas forças
 e fraquezas. Enquanto eu não fugir delas, tudo vai ficar bem.
Agora sei que não há nada de errado em ser só e até gosto da minha companhia. Tomei o controle da minha sexualidade e consigo usar os homens para me satisfazer assim como fui usado por eles por tanto tempo. Deixei o lado passivo, marciano, de lado. Não é irônico que, pelo menos no meu caso, a passividade seja decorrente justamente de um desequilíbrio espiritual a favor do lado masculino? Se bem que ser um homem no patriarcado, mesmo que seja gay, significa que você não precisará lutar tanto quanto uma mulher para conseguir conquistar as coisas. Daí a proatividade advir do lado feminino em nosso mundo que, infelizmente, não é venusiano.

2016 foi um ano de merda. Mas estou mais forte do que estava em 2015. Estou mais forte do que eu imaginava que pudesse ser. Agora sei como me levantar dos inevitáveis baques da vida. Havia um desequilíbrio na minha vida no ano passado e agora sei que é porque eu tentava reprimir o meu lado feminino, que era justamente o meu lado forte. Não só aprendi a reconhecê-lo como também a respeitá-lo. Agora que há um equilíbrio, estou bem. O amanhã sempre vai ser melhor, pois sei que se eu cair saberei me levantar. 2016 foi um ano ruim, mas eu viveria-o de novo se fosse preciso, porque 2016 foi o ano em que me tornei forte. Essa força pode até ter sido estimulada a se revelar através de fatores externos, como meu diário, minha terapia ou minhas crenças sobrenaturais, mas ela vem de dentro e é feminina. Enquanto eu não fugir dela, tudo vai ficar bem.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Porque o boicote da elite do entretenimento contra Trump irá falhar


Poucos artistas parecem dispostos a se apresentar e entreter o país quando o novo presidente assumir no dia 20 de janeiro. Com a notícia na semana passada de que o cantor de ópera Andrea Bocelli cedeu à pressão e desistiu de fazer um show na posse e com uma membro das Rockettes liderando uma rebelião nas redes sociais contra o presidente, Kid Rock é atualmente o maior nome agendado para se apresentar.

E a esquerda é tonta. Porque ela ainda não entendeu o que está acontecendo.

Robert Reich quer ser o Bob Geldof do anti-trumpismo.
Robert Reich, secretário de trabalho de Bill Clinto que se transformou no Michael Moore do Facebook está promovendo algo chamado o Concerto da Liberdade Unida que será transmitido ao mesmo tempo que a posse presidencial. O show beneficiará todas as entidades de caridade progressistas de sempre e Reich espera conseguir grandes nomes como Jay-Z e Madonna para se apresentar. "Simples", escreveu, "a posse de Trump perde toda a audiência na TV. Basicamente, ninguém assistirá".

Isso deve impedi-lo. Jay-Z e Madonna ambos já haviam se apresentado durante a eleição para angariar apoio para Hillary Clinton — e obviamente falharam. Mas, claro, mais um show deve fazer o país virar para o lado de Reich.

A verdadeira questão é a bolha criada pela exclusão estalinizada que a esquerda faz dos não-progressistas da cultura popular americana.

Lin Manuel Miranda está fazendo um concurso para angariar fundos para a Planned Parenthood. Para cada doação de US$10, você entra numa seleção para ver o musical dele, "Hamilton", em três cidades. A mãe de Miranda está no conselho nacional de diretores do Fundo de Ação da Planned Parenthood, então esta é obviamente uma causa pela qual ele se importa.

Não houve controvérsia alguma para seu concurso — só imagine se fosse para a Associação Nacional do Rifle ou qualquer outra causa popular conservadora. Quando Mike Pence assistiu àquela infame apresentação de "Hamilton", o vídeo dele entrando no teatro mostrava muito mais aplausos do que vaias. Ainda assim, o elenco pagou um sermão a ele do palco como se fosse impossível que houvessem eleitores de Trump na plateia ou, Deus proíba, no elenco ou na equipe técnica.

A inclinação progressista em tudo vai além da Broadway ou de Hollywood. Permeia tudo. E envelhece rápido. A edição de setembro da revista de dicas domésticas Real Simple trazia um esbravejo político incoerente da escritora Terry McMillan. Nele, ela acusa o Partido Republicano de conspirar contra o presidente Obama porque ele é negro e os estados de "fraudar" as leis eleitorais. Ela escreveu que as pessoas brancas reclamam de pessoas negras que tomam seus empregos e que ela tem medo de que seu filho saia de casa sozinho e seja morto pela polícia.

Real Simple é uma revista conhecida por receitas e dicas de organização. É um mundo no qual os democratas não deveriam habitar. Eles jamais leriam uma revista sobre dicas domésticas caso se encontrariam até o joelho em teorias conspiratórias conservadoras. O mesmo vale para as revistas femininas, que são todas automaticamente progressistas vestidas com uniformes opinativos sobre "questões femininas", como se as mulheres conservadoras não existissem. Então há o choque de que 53 porcento das mulheres escolheram Trump.

Numa eleição que se resumiu ao fracasso dos democratas em manter o apoio dos estados industriais, aumentar o risco de falar apenas com outros progressistas enquanto se assiste aos artistas progressistas é temerário. Escrevendo na esquerdista revista online de artes The Baffler, Jacob Silverman apontou para o culto às celebridades como uma das principais razões pelo fracasso de Hillary.

Katy Perry não vai mudar o que a maioria dos eleitores pensa.
Ele escreveu que esses "apelos pela atenção das celebridades parecem refletir o desejo dos progressistas de verem suas políticas validadas, até mesmo receberem uma aura de glamour, por colegas da elite. Os tweets enérgicos de Clinton e aparições no show do Jay-Z recorrem aos já convertidos enquanto não oferece nada aos milhões de trabalhadores americanos que estão pensando se, talvez, falta um toque de povo à mulher que cobra US$250.000 por palestras secretas para banqueiros".

Um número astronômico de 68 porcento dos entrevistados numa pesquisa de boca-de-urna da Reuters/Ipsos no dia da eleição disse que "partidos e políticos tradicionais não se importam com pessoas como eu". É um número muito grande de pessoas se sentindo completamente abandonadas — e a Katy Perry não vai incidir nisso.

Enquanto os progressistas continuam a desenhar linhas culturais que excluem os conservadores, eles têm que notar que isso está se traduzindo em perdas nas urnas. Os republicanos não controlam apenas a presidência, a Câmara e o Senado, mas cerca de dois-terços das assembleias legislativas e a maioria dos governos estaduais.

O abrangente progressismo na cultura popular pode não estar prejudicando os resultados financeiros dos artistas (até agora), mas certamente não está fazendo nada para ajudar suas causas políticas também. Como aprendemos nessa eleição, ignoramos segmentos inteiros da população sob nosso próprio risco.

George Michael (1963-2016)

O cantor e compositor britânico George Michael foi encontrado morto em casa pelo namorado Fadi Fawaz aos 53 anos de idade há três dias, na manhã de Natal. Ao saber da notícia, imediatamente me veio à cabeça a canção "Careless Whisper", lançada em 1984, quando Michael ainda fazia parte do duo Wham! com Andrew Ridgeley, seu amigo de infância e co-compositor do hit. Foram várias as vezes que esta canção embalou minha vida amorosa. Também me veio à cabeça "Last Christmas", regravada por meio mundo, de Taylor Swift a Ariana Grande, e que embalou um dos piores Natais que já tive. Pensei na ironia do destino: o compositor de um dos maiores hits natalinos dos últimos 30 anos morreu justamente no Natal. Depois, em meio a tantas memórias afetivas, lembrei-me da primeira recordação que tenho do cantor: trata-se do videoclipe de "Shoot The Dog", de 2004, uma animação na qual o então primeiro-ministro britânico Tony Blair é retratado como o cachorro de estimação do presidente norte-americano George W. Bush no contexto da invasão do Iraque pelas tropas de ambos os países. Um clipe polêmico para um cantor que sempre afirmou apoiar o Partido Trabalhista de Blair.

George Michael (1963-2016).
A polêmica, aliás, marcou toda a vida do cantor desde que ele saiu do Wham! para perseguir uma carreira solo. Numa entrevista de 2007, George Michael admitiu que se autossabotava, declarando que passou os "últimos 15 ou 20 anos tentando destruir [sua] própria carreira porque ela nunca parecia fracassar". A primeira de uma longa lista de polêmicas do artista veio com seu primeiro disco solo, o aclamado Faith (1987), que vendeu 25 milhões de cópias em todo o mundo — 10 milhões das quais apenas nos Estados Unidos — e recebeu o Grammy de melhor álbum do ano. O disco trazia uma canção bastante provocativa e explícita para os padrões da época, intitulada "I Want Your Sex" (algo como "quero seu sexo" em tradução livre), e o cantor foi acusado de promover um estilo de vida sexual pouco saudável numa sociedade que ainda encontrava-se horrorizada pela então recém-descoberta do HIV. O cantor gravou um videoclipe ultra sensual para a canção com sua então namorada, a modelo Kathy Jeung, como forma de provar que defendia a monogamia. Inclusive ele aparece escrevendo essa palavra nas costas da modelo com um batom.

A imagem sexual de George Michael também teria sido explorada em seu disco seguinte, Listen Without Prejudice Vol. 1, lançado em 1990 sem que seu segundo volume jamais visse a luz do dia. No entanto, o cantor se recusou a promover-se como sex symbol e, como forma de punição, a Sony teria se recusado a promover o disco no Reino Unido. Pelo menos é o que o cantor alega no processo que moveu contra a gravadora tentando desvincilhar-se da mesma. Em 1995 a Suprema Corte de Justiça da Inglaterra decidiu sobre o caso, dando ganho de causa à Sony e obrigando o cantor a permanecer naquela gravadora. No ano seguinte, no entanto, o contrato de George Michael foi vendido para a Virgin Records e ele pôde finalmente lançar seu primeiro álbum de estúdio em quase seis anos. Como resultado dessa disputa legal, George se recusou a participar das gravações do videoclipe de um de seus maiores hits, "Freedom! '90", que foi dirigido pelo — hoje — famoso cineasta David Fincher e estrelado por supermodelos da época como Naomi Campbell, Linda Evangelista, Christy Turlington e Cindy Crawford.

A grande polêmica da vida de George Michael veio, no entanto, em abril de 1998, quando estava reconquistando o sucesso após os anos de hiato forçado. A Polícia de Los Angeles, de maneira arbitrária, expôs ao mundo a homossexualidade do cantor. Um policial disfarçado, Marcelo Rodríguez, seduziu-o no banheiro de um parque público e, pouco antes de engajarem na prática do ato sexual, prendeu-o por "conduta imprópria". Forçado a sair do armário, o cantor assumiu seu então namorado Kenny Goss, com quem estava se relacionando desde junho de 1996. Assumiu também que a canção "Jesus to a Child" é um tributo a Anselmo Feleppa, estilista brasileiro que conheceu durante o Rock in Rio e que se tornou seu parceiro em 1993. Seis meses depois do início do relacionamento, Feleppa descobriu-se soropositivo e morreu de hemorragia cerebral. Os relacionamentos do cantor com homens não eram segredo na indústria musical. Aos 19 anos, saiu do armário como bissexual para Ridgeley e outros amigos próximos. Quando o Wham! acabou, no entanto, entrou em depressão ao perceber que era homo e não bissexual. No entanto, permaneceu no armário para não trazer desgosto à mãe, falecida dois anos antes do escândalo emergir.

A vida de George Michael era um prato cheio para que os
tabloides reforçassem estereótipos negativos dos gays.
George Michael marcou profundamente a história da música pop. Gravou com Aretha Franklin e com Whitney Houston, provando possuir uma voz à altura de ambas e tornando-se extremamente popular nas rádios voltadas ao público afro-americano. Além disso, marcou também a história da comunidade LGBT, para o bem e para o mal. Após ser preso uma segunda vez por fazer sexo num banheiro público, desta vez na Inglaterra, revelou que a relação dele com Goss não era baseada na monogamia — negando de uma vez por todas a máscara que a Sony obrigou-lhe a vestir para promover "I Want Your Sex". A declaração chocou os homossexuais mais conservadores, que não buscam romper com a lógica patriarcal e sim serem aceitos por ela, assim como as diversas prisões do cantor por posse de maconha. Diversas vezes, queremos que nossos ídolos LGBT sejam aceitos pela sociedade, mas os comportamentos de George Michael, completamente fora do padrão social, nos faziam pensar se ele não reforçava os estereótipos negativos existentes em relação aos homossexuais. Por vezes me peguei questionando se o cantor não prejudicava a imagem que as pessoas têm dos gays.

Independente de ter vivido uma vida que não servia de exemplo para os jovens gays — e o próprio cantor reconhecia isso, como num esquete que fez para o Comic Relief —, George Michael era um ídolo para todos nós. Porque todos nós passamos pela angústia de viver no armário e pelo medo de ser arrancado de lá à força quando não estamos preparados para isso. Na geração anterior à minha, todo mundo conhece alguém que morreu de AIDS. "Eu sofri coisas terríveis, perdas e humilhações públicas", declarou uma vez o cantor. "Mas apesar disso, minha carreira coloca-se no lugar como um pato de plástico numa banheira". Isso ocorre porque o público reconhecia no cantor a fragilidade humana de quem passou muito mais do que a metade de sua vida adulta dentro do armário. Após uma vida inteira portando rótulos que não lhe pertenciam, tais como "monogâmico", "heterossexual", "bissexual", "thatcherista"(*), George Michael finalmente pôde se livrar de todos eles. A liberdade que ele escolheu como título não de uma, mas de duas de suas canções mais famosas, agora lhe pertencerá para sempre. Descanse em paz, George Michael. Agora ninguém mais poderá te atacar, expor e ridicularizar para vender mais exemplares de tabloides.


(*) Havia uma época em que todas as pessoas bronzeadas eram acusadas de fazerem parte da alta sociedade britânica e o cantor, cujo pai era cipriota, tinha um tom de pele levemente mais escuro do que o "normal".

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Poema: Sábado, num bar

Respiro fundo e começo a me arrumar
Ele não gostava quando eu usava rosa grená
Coloco uma música no meu celular
Ele não gostava do que eu gosto de escutar

Cheguei no local que havíamos combinado
Achei que não, mas você chegou em antecipado

Você estava lá e caminha até mim
Me pergunto por que essa beleza sem fim
O meu sorriso, você elogia
Sem saber como isso me traz alegria

Você, quando sorri, joga a cabeça pra trás
Acho estranho que eu te encanto
É o primeiro que assim faz
Passei os dois últimos anos em espanto
Achando que tudo o que o amor faz
É deixar meu coração em quebranto
Mas, num sábado, num bar
Vi tudo de novo começar

Você me diz que nunca conheceu
Alguém com os mesmos gostos que os teus
Você me conta casos e não sabe por quê
Eu fico tão calado, mas é porque gosto de você


Você, quando sorri, joga a cabeça pra trás
Acho estranho que eu te encanto
É o primeiro que assim faz
Passei os dois últimos anos em espanto
Achando que tudo o que o amor faz
É deixar meu coração em quebranto
Mas, num sábado, num bar
Vi tudo de novo começar

E, quando entrávamos no carro, você junto comigo
Quase falei de quem eu não deveria
Mas você começou a me falar dos seus amigos
E, de repente, falar disso eu queria
Pela primeira vez, o passado
Ficou lá no passado

E quando você, mais uma vez, andou até mim
De novo pensei: pra que tanta beleza assim?


Você, quando sorri, joga a cabeça pra trás
Acho estranho que eu te encanto
É o primeiro que assim faz
Passei os dois últimos anos em espanto
Achando que tudo o que o amor faz
É deixar meu coração em quebranto
Mas, num sábado, num bar
Vi tudo de novo começar

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Quem quer saber tudo?

Acabei de assistir ao terceiro episódio da primeira temporada do seriado antológico futurista Black Mirror e, como sempre, sinto um gosto amargo na boca, como se tivesse levado um murro na cara. Na história todas as pessoas — ou pelo menos a maioria delas — possuem um dispositivo inserido atrás da orelha que grava suas memórias, que, depois, podem ser reproduzidas, via bluetooth, em aparelhos televisores. A tecnologia, chamada de "memória granular", permite rever tudo aquilo que vivemos, seja para aperfeiçoar-se ou obcecar-se por fatos que já ocorreram. Assim faz Liam, recém-chegado de uma mal-sucedida entrevista de emprego em outra cidade e que começa a ficar obcecado por uma cena que viu numa festa: a esposa Ffion num canto, conversando com outro homem.

Pressionada, a esposa confessa que o homem em questão, Jonas, é um ex-namorado dela. As horas vão passando e Liam fica cada vez mais obcecado. Confrontada com a memória do marido, para quem ela havia dito que o relacionamento em questão durou apenas poucas semanas, ela termina confessando que ele na verdade durou 6 meses. A obsessão crescente de Liam o faz procurar o ex-namorado da esposa para obrigar-lhe a apagar todas memórias que ele tinha de Ffion. É nesse momento que ele descobre, acidentalmente, que Jonas manteve um caso com Ffion recentemente. Ele confronta a esposa que, arrependida, confessa-lhe o adultério. Por insistência do marido, ela mostra-lhe as cenas da traição gravadas em sua memória granular. Isso acaba com o casamento deles.

Foi nesse momento que o seriado britânico tronou-se dolorosamente pessoal para mim. Meu casamento terminou porque eu descobri, através do celular do meu companheiro, que ele estava tendo um caso. No momento em que tentei invadir a privacidade dele, senti-me estúpido. Deixei para lá e dei-lhe minha confiança. Entretanto, quando fui pesquisar algo no Google, vi o nome de uma pessoa que eu não fazia a mínima ideia de que era — o amante dele — entre os itens pesquisados recentemente. Quando finalmente consegui invadir o celular dele, encontrei uma extensa conversa dele com a tal pessoa no WhatsApp, não só planejando a traição como convidando o cara para ir no aniversário de uma prima dele. Revisitei aquele dia na minha memória e percebi que ele me chamou para ir nessa festa após o rapaz negar o convite dele.

O que se seguiu nos próximos meses foi parecido com o que Liam viveu no episódio, embora de maneira menos dolorida. Revisitei minhas memórias — felizmente na minha cabeça mesmo, e não numa televisão — para ficar tentando descobrir o que deu errado. Em que momento o relacionamento desandou, quando ele deixou de me amar, eu poderia ter feito alguma coisa para evitar que ele me traísse... Eram perguntas que eu tentava desesperadamente responder, com a ajuda da minha memória. Torturava-me ao ponto de dizer para as pessoas que seria bom se eu pudesse fazer como o personagem de Jim Carrey em Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças e apagar todas as minhas memórias com aquela pessoa. Com o tempo, aprendi que relacionamentos se desgastam pelos mais variados motivos e que cada um reage de uma forma a isso.

Liam retirando a memória granular de si mesmo.
O fato é que, queiramos ou não, nossas memórias estão gravadas por todos os lugares e isso tem dificultado não só os relacionamentos como o término dos mesmos. Hoje podemos vasculhar a vida de nossos parceiros no Facebook, no Instagram, no Twitter e no WhatsApp e isso nos tornou desconfiados por natureza. Por outro lado, a facilidade com que podemos encontrar — e descartar — pessoas novas na era digital transformou-nos todos em traidores em potencial. Mas a culpa disso, para o bem ou para o mal, não é da tecnologia. Trai quem quer. A tecnologia é neutra. Por mais escravos que possamos ser das novas tecnologias, ainda possuímos livre-arbítrio. O coração não é um aplicativo. E a escolha de entregá-lo para uma só pessoa ainda é única e exclusivamente de cada um de nós.

No final do episódio, Liam decide arrancar o dispositivo da orelha para não mais lembrar-se da ex-esposa. É uma decisão corajosa. Ao mesmo tempo em que não vai mais sofrer ao lembrar de cada instante que passou com uma pessoa a quem amou muito e que lhe decepcionou, cria a possibilidade de fazer tudo diferente da próxima vez. Quero o mesmo para mim. Não quero mais ficar suspeitando de cada passo da pessoa a quem eu escolhi dar meu coração. Quero confiar nela. Não quero dar a mínima para o que ela esteja escrevendo nas mensagens privadas do Facebook, do Instagram e do Twitter. Não quero saber das mensagens que ela troca no WhatsApp ou do que ela pesquisa no Google. Quero confiar nas pessoa, tendo motivos para tal. Quem quer saber de tudo pode não estar pronto para tamanha responsabilidade.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O fascismo está ficando pessoal

Guilherme Silva Neto (1996-2016).
Guilherme Silva Neto, estudante de matemática da Universidade Federal de Goiás, foi baleado pelo próprio pai a apenas 1,8 quilômetros de distância de onde eu moro. Após correr por alguns metros para tentar salvar a vida da abordagem violenta não de um estranho, mas sim do próprio pai, o jovem de 20 anos tombou na  Avenida República do Líbano, no Setor Aeroporto, onde tantas vezes eu almocei com a minha família aos domingos. Segundo a mãe do rapaz, o motivo da discussão que levou ao assassinato seguido de suicídio foi a participação do jovem nas ocupações da universidade. Não conhecia Guilherme pessoalmente, mas ao entrar no perfil dele no Facebook, impressionou-me o fato de sua última publicação pública ser sobre a festa "Rocknbeats Goiânia", que acontecerá na boate Diablo no próximo dia 26. Eu também havia confirmado presença nessa festa.

Também me chamou a atenção o fato de termos 12 amigos em comum: Anny Borges, que comemorou meu aniversário comigo no sábado; Euzebio Carvalho, professor da Universidade Estadual de Goiás que foi preso arbitrariamente durante assembleia estudantil realizada naquela entidade; Rafaela Lincoln Lima, que já organizou três festas nas quais eu fui; Vinicius Rafael, que já vi em diversos eventos; a talentosíssima Regiane Mendonça, que faz música de protesto contra o governo golpista; Flavio Rezende, que concorreu à vereança e sempre vejo em manifestações contra o golpe; Cris Cardoso, que deve ser uma das pessoas mais sensatas que conheci em 2016. Os demais — Cleber Valdêz Barboza, Lara Aragão, Lô Santos, Marcus Vinícius Huttenlocher — não conheço tão bem, mas adoraria conhecer. Todas essas pessoas têm em comum o fato de serem contra a PEC 241 e o assalto que PSDB e PMDB fizeram ao poder central do Brasil.

Ao que tudo indica, Guilherme era muito parecido comigo. Só que a diferença — fatal — é que sua casa não era um local seguro para ele. Ele foi morto de maneira premeditada pelo pai, que padecida da histeria anti-esquerda que acomete o Brasil desde pelo menos 2013. Esse tipo de violência por motivações políticas eu só conheci na rua. O louco, ensandecido, baleou o próprio filho cerca de dois anos após eu apanhar por — suspeito eu — ser um viado que estava andando na rua à noite com o adesivo da Dilma no peito. A disseminação do discurso fascista na sociedade brasileira me atinge de maneira cada vez mais pessoal. A mídia e seus seguidores cegos vão tentar tirar a responsabilidade deles da reta. Vão afirmar que o ocorrido no Dia da República em Goiânia foi uma fatalidade, como se a morte de Guilherme não fizesse parte de um contexto mais amplo da disseminação de ideias fascistas na sociedade brasileira.

Vão dizer que a morte do rapaz não tem nada a ver com a pregação de "pastores" anti-esquerda como Marco Antônio Villa, Joice Hasselmann, Diogo Mainardi, Rodrigo Constantino, Reinaldo Azevedo, Cristiana Lobo, Miriam Leitão, Alexandre Garcia, Arnaldo Jabor, William Waak, Danilo Gentili e Rachel Sheherazade, entre outros, que são os porta-vozes da dúzia de famílias que controlam a disseminação das informações no país. Mas o discurso desses comunicadores foi justamente o gatilho que o pai mentalmente instável do Guilherme precisava para embarcar de corpo e alma em sua paranoia antissocialista. Quando munidas de muito poder, uma dúzia de pessoas são capazes de produzir um estrago incomensurável numa sociedade. Primeiro destruíram as perspectivas de recuperação da economia brasileira para colocar PSDB e PMDB no poder. Agora, o exército de ignorantes políticos raivosos que criaram fazem mães enterrar os próprios filhos.

Nada irá trazer o Guilherme de volta. Sua luta, no entanto, não morre com ele. Mesmo com medo de sermos mortos por nossos próprios conhecidos, enxugamos nossas lágrimas e seguimos em frente. De minha parte, fico contente em saber que tinha uma dúzia de amigos em comum com a vítima dessa tragédia horrível em que fui envolvido indiretamente. Guilherme viverá nas lembranças dessas pessoas que, assim como ele, lutam a favor da justiça social e da solidariedade entre as pessoas. Guilherme vive nelas e espero que, através da partilha de experiências e lembranças, possa viver um pouquinho em mim também. Sinto como se já vivesse, devido às semelhanças entre nós que me fazem, ao mesmo tempo, temer pela minha vida e querer continuar lutando. Continuar a luta é algo que devo ao Guilherme, assassinado; ao Euzebio, preso arbitrariamente e a mim mesmo, espancado. Podem até ter levado sua presença física, mas Guilherme está presente!

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

USexit

Algo surpreendente tem acontecido nos Estados Unidos. Segundo a média das últimas quatro pesquisas (Rasmussen, YouGov/Economist, IBD/TIPP e ABC News/Washington Post) para a eleição presidencial, que ocorre na próxima terça-feira, 8 de novembro, a democrata Hillary Clinton tem 45% das intenções de voto e o republicano Donald Trump tem 44,25%. Gary Johnson, do Partido Libertário, tem 4% e a Dra. Jill Stein, do Partido Verde, tem 2%. Mesmo na única pesquisa em que ainda lidera, a YouGov, Hillary encontra-se em situação de empate técnico com o adversário republicano, ou seja, dentro da margem de erro. O mercado tem reagido negativamente à ascensão de Trump na reta final da campanha. Os pregões da NASDAQ, da S&P e da Dow Jones fecharam em queda nos dois últimos dias. A disputa pela presidência dos EUA também tem causado uma desvalorização do dólar frente às moedas nacionais, embora o Governo Temer deva estar dizendo nas redes sociais que o real se valorizou graças a seus esforços de retomar o crescimento econômico.

É justo culpar os pobres por estarem desesperados por mudança?
Mas o que explica essa arrancada de Trump agora, na reta final da campanha, uma vez que todos os veículos de comunicação previam uma vitória tranquila da candidata democrata até duas semanas atrás? Tenho uma teoria bastante razoável para isso, baseada na minha observação da campanha do referendo que decidiria a continuação do Reino Unido na União Europeia. Como todos nós sabemos, o "Brexit" (a saída da Grã-Bretanha da UE) venceu. No entanto, poucos previam isso até a semana da votação. Minha teoria é que os eleitores "saíram do armário" e declararam sua posição só na reta final da campanha, momentos antes da votação. Além disso, muitos sequer se dão ao trabalho de ir votar, confiantes da vitória de sua opção. Assim como nos EUA, votar não é obrigatório no Reino Unido e não provoca nenhuma penalidade de âmbito legal. Assim sendo, parte dos eleitores, confiantes na vitória de seu candidato ou de sua causa, sequer sai de casa no dia da eleição. Outros farão o "serviço sujo" de votar em Hillary Clinton ou no Remain a member of the European Union para eles.

Essa decisão de última hora dos eleitores se vão votar ou não acaba se refletindo nas pesquisas de opinião. Há, nos EUA, dois tipos de pesquisa. Aquelas realizadas com quem está apto a votar (registered voters — RVs) e aquelas feitas com quem diz que vai votar (likely voters — LVs). O número de LVs é variável e as últimas pesquisas levam em consideração apenas a intenção de voto desse grupo demográfico. Há duas hipóteses que explicam a ascensão de Trump e a queda de Hillary nas pesquisas mais recentes: um contingente grande de RVs está virando LVs para votar em Trump ou um número significativo de LVs que declaravam voto em Hillary está virando RVs. Mas o que teria levado-os ao desencanto com sua candidata? Em parte, aquilo que a mídia vem chamando de October suprise. A "surpresa de outubro" foi a decisão do FBI de retomar as investigações sobre os mais de 16.000 e-mails que Hillary enviou, enquanto secretária de Estado (muitos deles deletados), usando um servidor privado, em violação às diretrizes oficiais do governo norte-americano.

Hillary reagiu da pior maneira possível. Assim como Trump reage às denúncias atacando a credibilidade de seus críticos, a democrata colocou em xeque a parcialidade de James Comey, o diretor-geral da polícia federal dos EUA, nomeado ao cargo em 2013 por seu ex-chefe e maior cabo eleitoral, o atual presidente Barack Obama. A investigação dos e-mails ressurgiu após a denúncia de que o ex-congressista Anthony Weiner, marido de Huma Abedin, assistente de campanha de Hillary, teria utilizado o tal servidor privado para enviar "nudes" para uma jovem de 15 anos de idade. Sempre que o assunto dos e-mails privados de Hillary ressurge na mídia, a disposição do eleitorado em apoiá-la cai. A omissão de verdade praticada por Hillary fazem os eleitores se lembrarem das mentiras de Bill Clinton, a mais famosa das quais quase lhe custou o cargo de presidente. É nessa hora que os eleitores em potencial da democrata deixam de ser LVs e passam a ser apenas RVs. É nessa hora também que os eleitores de Trump sentem-se empoderados para sair do armário.

Antigo Parque Industrial de Detroit, destruído pelo NAFTA.
Mas por que as pessoas votam em Trump para começo de conversa? Por mais que a mídia alerte para os riscos de colocá-lo na Casa Branca, os norte-americanos mais pobres estão cansados do neoliberalismo e sentem que não têm mais nada a perder. A base do eleitorado de Trump é justamente a classe baixa branca, que ficou ainda mais empobrecida nos últimos 20 anos. Votar em Trump ou no "Brexit" é, para as pessoas comuns, votar contra pessoas e causas que representam o modelo econômico que lhes castiga. Nos EUA de 2016, o trumpismo é o movimento que melhor incorpora o antiliberalismo. A culpa é do eleitorado se ele rejeita o neoliberalismo e se a candidata do campo progressista é justamente a esposa do cara que, nos anos 1990, assinou o NAFTA? O NAFTA, ou tratado de livre-comércio da América do Norte, para quem não sabe, fez com que milhares de empregos na indústria americana migrassem para o México, onde é bem mais barato contratar um empregado. A culpa não é do eleitorado por querer romper com esse modelo econômico e ver em Trump a única alternativa a isso.

Embora agora diga-se contrária ao Tratado Transpacífico (TTP), Hillary apoiava o projeto do presidente Obama de expandir a área de livre-comércio dos EUA até meados do ano passado, quando o senador Bernie Sanders entrou na disputa para ser o candidato democrata à presidência. Assim sendo, sua oposição a práticas neoliberais não inspira confiança no eleitorado. Havia, dentro do Partido Democrata, uma alternativa ao neoliberalismo que inspirava o eleitorado mais jovem e que derrotaria Trump com uma vantagem de mais de dez pontos percentuais, mas ela foi minada pela própria direção do partido, que jogou a democracia interna às favas, e agiu como bunker de campanha de Hillary Clinton. Mesmo com vergonha, as pessoas votam em Trump ou no "Brexit" porque elas estão desesperadas com as opções que a política tradicional apresenta-lhes. Trump, assim como Sanders, apresenta-se como forasteiro dos grandes partidos. Ele foi repudiado, inclusive, por Mitt Romney, candidato republicano à presidência em 2012.

Às vezes, na ânsia de ficarmos livre de algo ruim, damos
poder a algo ainda pior.
Assim como os britânicos rejeitaram a União Europeia por enxergarem nela o símbolo do modelo econômico que penaliza-lhes, enquanto concentra renda em 1% da população, o mesmo ocorre com a rejeição a Hillary Clinton. Claro que ela tenta se afastar das medidas econômicas de Bill, mas o sobrenome é o mesmo e evoca muitas lembranças. Tanto que, para se defender das acusações de assédio sexual que surgiram há duas semanas, quando sua campanha já era dada por encerrada, Trump relembrou o longo histórico de acusações contra o ex-presidente. O fato é que a eleição do magnata dos imóveis, caso se confirme, será a versão norte-americana do "Brexit". Atrapalhadamente, os EUA terão dito não ao modelo neoliberal. O "USexit", assim como seu paralelo do outro lado do Atlântico, terá muitos de seus partidários arrependidos logo após a votação. Às vezes, na ânsia de ficarmos livres de algo ruim, damos poder a algo ainda pior. Os brasileiros que estavam batendo panela até abril e que agora encontram-se num silêncio de vergonha sepulcral, que o digam.

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Pode o novo nascer de práticas antigas?

O segundo turno das eleições municipais no Brasil não poderia ter sido marcado em data mais apropriada. Será no dia 30 de outubro, véspera do Dia das Bruxas. A disputa em cidades como Belo Horizonte, Porto Alegre e Goiânia — todas elas antigos redutos do Partido dos Trabalhadores — mais parece o enredo de um filme de terror. Candidatos de partidos de direita se digladiam naquela que deve ser a campanha mais baixa e menos propositiva de toda a história recente desses locais. Após ter subtraído 54,5 milhões de votos e tomado o poder central de assalto, a direita, que falou em voz uníssona durante o processo que culminou no golpe de Estado contra a presidenta Dilma Rousseff, agora digladia entre si para definir quem irá ditar os rumos da política nacional. Aqui em Goiânia a disputa será entre o velho coronel Iris Rezende (PMDB), patrocinado pelo senador Ronaldo Caiado (DEM), e o empresário Vanderlan Cardoso (PSB), ex-prefeito de Senador Canedo e candidato do governador Marconi Perillo (PSDB). Nenhum desses golpistas merecem o meu voto, mas precisamos falar sobre aquele que vem se apresentando como o "novo" para a população da capital.

Em qual Vanderlan devemos acreditar? No de 2010...
Em outubro de 2010, o então candidato a governador Iris Rezende fez um comício na Região Noroeste de Goiânia para receber o presidente Lula e a então candidata à presidência Dilma Rousseff. É inútil repetir que Iris e seu PMDB mais tarde trairiam Lula e entregariam Dilma aos lobos golpistas; isso todos já sabem. Vale frisar, no entanto, que neste comício Iris recebeu o apoio e o elogio de Vanderlan Cardoso, que também concorreu ao governo, mas não avançou para o segundo turno da disputa. Segundo Lula, a oposição aos tucanos em Goiás procurou-lhe para definir os nomes que concorreriam ao governo e ele abençoou as candidaturas tanto de Iris — com quem seu PT estava coligado — quanto de Vanderlan. Eu sei disso porque eu estava lá. Presenciei o discurso de Lula e também presenciei quando Vanderlan disse que o melhor para o futuro de Goiás era a eleição do ex-governador Iris Rezende, então recém-saído da prefeitura de Goiânia. Hoje, o mesmo Vanderlan ataca o peemedebista por sua aliança com o PT no passado, da qual ele também fez parte no segundo turno de 2010, e coloca-se como seu rival na disputa pela prefeitura da capital do Estado.

Vanderlan apresenta-se na televisão como uma espécie de "João Dória goiano". O empresário, dono da fábrica dos salgadinhos Micos, apresenta-se como um gestor que irá revolucionar a prefeitura ao aplicar à administração pública as práticas do mundo empresarial. Se há algo que o fenômeno Donald Trump nos ensinou é que a melhor maneira de construir uma candidatura viável nas democracias liberais hoje em dia é, além de denunciar os inimigos que estão destruindo a família tradicional, apresentar-se como o "não-político". Segundo a campanha do candidato socialista, Iris Rezende, do alto de seus quase 83 anos de idade, possui práticas políticas obsoletas. Não discordo, mas substituir as práticas paternalistas do velho coronel por "novas" práticas que incluem a privatização e a diminuição da máquina pública me parece como trocar seis por meia-dúzia. Além do mais, gostaria de saber o que provocou uma mudança tão súbita em Vanderlan em seis anos para que ele negasse tudo aquilo que disse para mim e outros eleitores goianienses naquele comício de 2010. Não padeço da doença da amnésia, tão comum a grandes parcelas do eleitorado brasileiro.

Em qual Vanderlan o eleitorado de Goiânia deve acreditar? No de 2010 ou no de 2016? E, mais importante de tudo, o que fez com que ele mudasse tão radicalmente de opinião sobre o governador Marconi Perillo, contra quem concorreu nas eleições de 2010 e 2014? Teria algo a ver com o enorme aporte financeiro que sua campanha recebeu desde que aceitou coligar-se com o PSDB, que governa, aparelha e dilapida o Estado há 18 anos? A rejeição aos tucanos em Goiânia é notória, então dessa vez o governador preferiu concorrer com alguém distante de seu grupo político e que apresenta-se como o "não-político", para conseguir a chance de abocanhar as finanças municipais também. A enorme estrutura de campanha que o PSDB forneceu a Vanderlan seria, segundo alguns, bancada pelos recentes desvios promovidos pelos tucanos na empresa estatal de saneamento, a Saneago. Vanderlan apresenta-se na disputa pela prefeitura de Goiânia como o novo, mas para ter uma chance real de finalmente chegar ao poder aliou-se com os políticos sujos e corruptos que tanto criticava em campanhas passadas. Fica a dúvida: pode o novo nascer de práticas antigas?

...ou no de 2016?
Ao aliar-se ao PSDB, Vanderlan incorreu na prática mais comum da "velha" política de Iris: o conchavo. O peemedebista já esteve coligado com todos os grupos políticos imagináveis, do PT ao DEM. Ao incorrer no primeiro e mais grave pecado do político ordinário, passou a diferenciar-se do oponente apenas no discurso. Na prática, são iguais: dois políticos que só visam o poder a qualquer custo e não estão nem aí para a ideologia dos partidos com os quais se coligam. O povo, que dizem representar, é um mero espectador na construção de suas alianças programáticas e partidárias. Por um momento, antes da eleição de 2010, cogitei votar em Vanderlan Cardoso para governador. A eterna polarização entre Iris e Marconi, que perdura desde que eu tinha oito anos de idade, me causa náuseas. No entanto, em determinado programa eleitoral, ele propôs conceder a administração das comunidades terapêuticas que tratam dependentes químicos para igrejas. Aquele foi o momento em que percebi que havia algo de velho no "novo" candidato. Foi ali que percebi que se tratava de um político "mais do mesmo", que confunde o Estado laico com sua crença religiosa pessoal.

Agora que Vanderlan aliou-se ao PSDB de Marconi Perillo. prometendo governar Goiânia, mas na verdade visando a eleição de 2018, tenho certeza absoluta de que ele é um político como outro qualquer. Por que uma pessoa que sequer mora em nossa cidade e que exerceu o cargo de prefeito de outra cidade completamente diferente está tão interessada em governá-la? Não é para "gerir" nossa Goiânia e melhorar a qualidade de vida de nosso povo. É para fazer palanque para o próximo pleito de governador. Marconi Perillo não pode concorrer ao governo em 2018, então nada melhor do que colocar alguém "novo", que não enfrentou grandes casos de corrupção em seu histórico político, para substituí-lo. Vanderlan apesenta-se como o "pós-político", mas a política dele é a mesma de sempre. Não sintam-se surpresos caso ele seja eleito prefeito e abandone a cidade para concorrer ao governo do Estado como o candidato pós-Marconi e, uma vez eleito, reproduza todas as práticas de Marconi Perillo e seu PSDB. Vocês foram avisados por quem percebeu a incongruência entre o discurso e a prática de Vanderlan Cardoso desde o início.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Pátria educadora ou Haiti?

Quando escolheu "Pátria Educadora" como slogan de seu segundo mandato, Dilma Rousseff estava pensando nos royalties do pré-sal que ela, enquanto ministra-chefe da Casa Civil do governo Lula (2003—2010), havia garantido para a educação. Com o início da exploração da camada pré-sal dos campos petrolíferos descobertos pela Petrobras, a educação brasileira veria aportes de recursos jamais imaginados para o setor na história do Brasil. Inclusive, se houve um ministério que Dilma não descuidou no seu segundo e breve mandato, este ministério foi o MEC. Primeiro ela nomeou como ministro o ex-governador do Ceará, Cid Gomes, responsável por uma revolução no ensino médio daquele estado. Após um bate-boca com Eduardo Cunha, Gomes foi substituído pelo brilhante professor de filosofia da Universidade de São Paulo, Renato Janine Ribeiro, que introduziu o tema da violência de gênero no ENEM, para o desespero dos misóginos.

O pré-sal é, ao mesmo tempo, uma benção e uma maldição. Trata-se da maior riqueza mineral encontrada no século XXI. O PSDB, partido que representa os interesses das empresas internacionais na política brasileira, não iria deixar o PT usá-lo como bem entendesse. Primeiro, acionou seus contatos na imprensa (que, segundo a própria presidente da Associação Nacional de Jornais, virou um partido de oposição) para demonizar o PT de forma que os brasileiros passassem a achar que se tratava do partido mais corrupto da história da Via Láctea, embora o nível de corrupção em ambos os partidos seja praticamente o mesmo. Depois, demonizou a própria Petrobras, de forma a inviabilizar sua participação na exploração do pré-sal. Para isso, acionou seus contatos no Ministério Público e na Justiça para promover uma devassa nos contratos da empresa. A ideia a ser vendida à população era simples: o PT destruiu a empresa e só Sérgio Moro seria capaz de moralizá-la.

Ficou claro agora, no entanto, que a "moralização" da Petrobras não passou de um espetáculo político-midiático para justificar a entrega de nossa maior riqueza mineral para os estrangeiros. A empresa, supostamente destruída pelo PT — embora sua saúde financeira estivesse bem antes de ser atacada por agentes do próprio Estado brasileiro —, só irá se recuperar com a ajuda dos estrangeiros "bonzinhos". Afinal, tudo o que vem de fora é melhor, não é mesmo? Um próprio exemplo disso é o juiz Moro, que volta e meia faz cursos de treinamento, quer dizer, reciclagem nos Estados Unidos. Era preciso, no entanto, derrubar a presidente Dilma para concluir a transição do nosso petróleo para o estrangeiro. Entra em cena o PMDB. Michel Temer tentou negociar com Dilma para que ela entregasse o poder e mantivesse o cargo, mas ela não aceitou. Recentemente, o traidor confessou para empresários norte-americanos que Dilma caiu porque não aceitou sua Ponte Para o Futuro, que nada mais é do que a negação completa do projeto vencedor da eleição de 2014.

Pense no Haiti. Reze pelo Haiti. O Haiti é aqui.
Dilma preferiu cair do que sucumbir à pressão entreguista dos peemedebistas. Embora tenha colocado em prática uma tímida política de austeridade, ela jamais defendeu o corte de gastos na área social. Sua crença no Estado enquanto agente de transformação social custou-lhe o poder, assim como havia custado a João Goulart em 1964. Estava inflexível e precisava ser derrubada. Agora que foi feito isso, não há mais empecilhos para o desmonte do Estado social brasileiro. Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 4567/16, que desobriga a Petrobras a participar na exploração de pelo menos 30% de cada bloco do pré-sal. Os argumentos dos deputados é que a Petrobras, após a devassa que sofreu na Lava Jato, não teria condições de arcar com as despesas de explorar os campos de petróleo. Estima-se que o Fundo Social do Petróleo, cuja 75% da arrecadação iria para a educação, deve perder quase 50 bilhões de reais com a mudança na legislação.

O referido projeto é de autoria do senador paulista José Serra que, segundo o WikiLeaks, é um informante da multinacional petrolífera Chevron no Brasil. Políticos como ele morrem de medo da melhoria do sistema educacional. A votação do último dia 5 fez-me lembrar de Caetano e Gil: "na TV, se você vir um deputado em pânico, mal dissimulado, diante de qualquer, mas qualquer mesmo, qualquer, qualquer plano de educação que pareça fácil, que pareça fácil e rápido, e vá representar uma ameaça de democratização do ensino de primeiro grau (...) pense no Haiti, reze pelo Haiti. O Haiti é aqui". O Brasil tinha uma escolha em suas mãos. Ou virava a "Pátria Educadora" ou virava o Haiti. Protestou nas ruas contra o primeiro e escolheu o segundo. Espero que estejam orgulhosos de sua escolha! Agora está claro para mim: nunca foi por passe livre, por "escola padrão FIFA" ou por uma política livre de corrupção. Foi para o Brasil voltar a ser o Haiti. Pode até não ter sido esse o desejo de todos que saíram às ruas, mas era o desejo dos organizadores e é o resultado que teremos.

sábado, 17 de setembro de 2016

O problema do Brasil não é a Dilma; é o Setor Bueno

Estou cada vez mais convicto de que o problema do Brasil nunca foi o PT. O problema do Brasil é que o Estado deve servir a uma classe minoritária que nada produz. As grandes fortunas do país não existiriam se não fossem as generosas tetas do Estado. O PT errou, na minha opinião, por não promover um desmembramento completo disso. Enquanto o cenário externo favoreceu a economia do país, as gestões petistas na máquina federal mantiveram um sistema que favoreceu tanto os parasitas do Estado quanto o grosso da população. Com o arrefecimento da economia global a partir de 2013, o partido (mais especificamente Dilma) viu-se numa encruzilhada: ou rompia com a elite financeira que locupleta-se do Estado ou com o povo. Dilma acabou tentando servir aos dois senhores e caiu. Michel Temer surgiu em seu lugar para acabar com o tímido Estado de bem-estar social criado pelo PT. Ele está no Palácio do Planalto para promover o retorno do modelo anterior, segundo o qual todos são iguais em direitos e deveres aos olhos do Estado, mas uns são mais iguais do que os outros. O Estado possui seus filhos preferidos e Temer governa para eles. Caso o contrário, ou seja, se tivesse se mantido fiel ao programa de governo que o elegeu em 2014, o golpe teria sido dado para colocar o mau perdedor e garoto de ouro das elites, Aécio Neves, no poder. 

Meu carro não tem o direito de existir no
Setor Bueno assim como "atores petistas"
não têm o direito de viver.
Agora que o golpe foi dado, os mamadores da teta do Estado estão empoderados. Aqueles que acham que fazem parte desse grupo também. Digo isto pois, como diz um amigo meu, o brasileiro compra um carro e um apartamento no Setor Bueno (pagando consórcio durante anos e anos) e acha que faz parte da elite, que compreende aquela parcela mínima da sociedade que mantém sua riqueza intacta por mais de 400 anos. E não é que um episódio interessante ocorreu comigo justamente no dia do golpe final contra Dilma e no referido setor, o bairro de Goiânia com mais eleitores de Aécio Neves por metro quadrado. Estava eu atrasado para a minha sessão de terapia, quando passei pela Panificadora Della. Havia um carro saindo do local, mas, por estar com pressa, não dei-lhe passagem. Meu carro é um Uno Mille velho, mas que tem o mesmo direito de estar transitando pelas vias da cidade quanto o Honda Civic daquele condutor. Mas essa não é a mentalidade dos moradores daquele bairro. Eles acham que têm mais direito ao espaço público por fazerem parte de uma determinada classe social. Assim sendo, o condutor esbarrou propositalmente no meu carro, a despeito da minha buzina estar anunciando "ei, você está invadindo o meu espeço pessoal!". Eu poderia ter sido mais simpático e lhe dado passagem, mas imagina se fôssemos nos vingar de todos que não nos dão passagem no trânsito?

No Brasil pós-golpe, as leis não têm mais validade alguma. Vale a lei da rua. E a lei da rua no Setor Bueno é que aquele é um bairro de elite e que tem mais direito à rua quem tem o melhor automóvel (tadinho do meu Uno velho e batido!). Lá não está em vigor o Código Brasileiro de Trânsito, está em vigor a mentalidade do brasileiro coxinha. E digo "coxinha" (ou seja, aquele que faz parte de um grupo social, mas julga-se melhor por causa da roupa que veste na origem do termo) porque a elite goianiense não habita entre nós desde o final dos anos 1990, quando houve um êxodo dessa classe social para os condomínios fechados. O Setor Bueno é o bairro onde a classe média se reúne para achar que é rica. Os ricos de verdade estão segregados da classe média. Agora que Dilma e o PT foram solapados do poder, a mentalidade do Setor Bueno vai ganhar espaço para triunfar. Estão empoderados. A invasão ao espaço do outro por quem julga-se portador de mais direitos está apenas começando. O problema do Brasil, como sempre suspeitei, não é a Dilma e sua lambança na economia. O problema do Brasil é a mentalidade do Setor Bueno que não enxerga o outro como portador dos mesmos direitos e deveres que si próprio. E, sinto informar, a tendência é só vermos ainda mais violações em relação ao direito de existir do outro que não se encaixa nesse padrão.

Agora é a vez do PSOL

Passado o espírito olímpico, o Brasil se prepara para as primeiras eleições pós-golpe. No primeiro conjunto de debates foi notória a exclusão de alguns candidatos de esquerda. Seguindo a nova legislação eleitoral – aprovada em 2015 durante a minirreforma eleitoral realizada pela Câmara dos Deputados – a Rede Bandeirantes não convidou os candidatos do PSOL em algumas capitais. Os paulistanos não puderam conhecer as propostas da ex-prefeita Luiza Erundina, terceira colocada nas pesquisas de intenção de votos, assim como os cariocas foram subtraídos da visão do deputado estadual Marcelo Freixo, segundo colocado no Rio. Segundo a nova legislação, as emissoras são obrigadas a convidar aos debates os candidatos que concorrem por partidos que possuem menos de dez deputados federais – e o PSOL possui seis. Anteriormente, a lei exigia a participação de todos os candidatos cujos partidos possuíam representação no Congresso, independente do número de deputados. A exclusão dos candidatos do PSOL deve se repetir em várias cidades e em várias emissoras até o dia 2 de outubro, quando será realizado o primeiro turno das eleições.

Não é uma surpresa que o PSOL seja a nova vítima da máquina estatal. A única maneira através da qual a esquerda consegue acesso à mídia hegemônica no Brasil é através da força da lei. A articulação pelo golpe de Estado uniu Parlamento, Judiciário e mídia, que tentaram dar um véu de legalidade ao processo de impeachment para tentar vendê-lo como legítimo para a opinião pública, insatisfeita com o governo de Dilma Rousseff. Essas mesmas forças agora se unem contra o PSOL. O Legislativo, que se tornou um balcão de negócios, está pouco interessado na promoção de um partido que não se pauta pelos interesses das grandes empresas e, assim sendo, excluiu seu acesso aos veículos de comunicação de massa. O Judiciário, por sua vez, aplica a legislação eleitoral com um rigor ímpar contra os candidatos psolistas. A campanha de Freixo está sendo alvo de uma fiscalização rigorosa do TRE-RJ, o mesmo tribunal que faz vistas grossas para a relação incestuosa entre candidatos e milícias nas favelas. O Estado tão rigoroso contra o candidato que mobiliza a juventude carioca do asfalto, inexiste no morro.

Embora eu esteja ideologicamente distante do PSOL, solidarizo-me com seus candidatos e militantes. Eles agregam muito ao fétido ambiente político nacional e ao debate político apodrecido, pautado pelo falso moralismo de uma direita que aponta os desvios do PT, mas não deixa ninguém investigar seus próprios delitos. O PSOL luta para que a hipocrisia não seja a força motora da política brasileira. Para tal, apresenta soluções práticas e coerentes para a moralização da política, para além dos gritos vazios de "Fora Dilma". Preocupa-me que, em período de "pausa na democracia" (segundo as palavras de um ex-presidente do STF), um cara como Freixo, um ícone da luta contra a confusão entre o público e o privado – que está na raiz da injustiça social e do nosso índice Gini, um dos mais elevados do mundo – esteja sendo perseguido de maneira tão descarada pelas forças da burguesia infiltradas no Estado brasileiro. Entretanto, não posso dizer que isso me surpreende. Já havia alertado para o fato de que, liquidado o PT enquanto legenda naturalmente identificada pelos trabalhadores, a próxima vítima do macartismo à brasileira seria o PSOL. Não podem deixar o substituto do PT sequer nascer.

Parece-me óbvio que as forças conservadoras da máquina estatal (e paraestatal, no caso da mídia) do Brasil voltariam suas baterias contra o PSOL em determinado momento. O Poder Judiciário que agora quer multar Freixo por um deslize da cantora Fernanda Abreu num comício é o mesmo que permitiu que o Legislativo fizesse o impeachment sem base constitucional da presidenta Dilma Rousseff. É o mesmo Judiciário que deixou Sérgio Moro se eleger como herói da classe média "oprimida" pelos programas sociais (e não pelos banqueiros) às custas da própria imagem do Judiciário enquanto estrutura justa e imparcial. Por sua vez, a grande imprensa, da qual a Bandeirantes orgulha-se de fazer parte, está mancomunada com os perseguidores da esquerda no Judiciário desde que viram a oportunidade de manipular a opinião pública contra Dilma e o PT. Destruídas as chances de elegibilidade do PT, que os jornais anunciam a todo o momento que está "em crise" – uma crise que eles mesmos cultivaram com todo o carinho do mundo desde a eclosão do escândalo do mensalão – a tríplice aliança golpista que engloba Judiciário, Legislativo e mídia agora se volta contra o PSOL.

Me desculpem a franqueza, mas foi muito ingênuo quem achou que os autores da narrativa oficial brasileira permitiriam que o PT fosse trucidado e que o PSOL continuasse livre para denunciar o apartheid social brasileiro livremente. Se o pouco que o PT fez – Bolsa Família, ProUni, FIES, Luz para Todos, Mais Médicos, etc. – já ameaçou a manutenção do status quo nas três esferas de poder, imagina aquilo que o PSOL propõe fazer nas prefeituras? Não é preciso ser nenhum gênio ou visionário para saber que os psolistas seriam os novos petistas em termos de perseguição política. Basta olhar para as experiências de golpe de Estado contra forças progressistas ocorridas no passado. Durante a Guerra Civil Espanhola, cuja eclosão completou 80 anos no último mês de julho, foram perseguidos todos aqueles que defendiam a função social do Estado: de trotskistas a social-democratas, de marxistas a liberais e não apenas os militantes do PSOE. Não era possível na Espanha dos anos 1930 – assim como não é possível no Brasil de hoje – manter o status quo sem eliminar as entidades que denunciam e lutam contra a injustiça social.

O poeta Federico García Lorca, por exemplo, estava longe de ser um militante radical, mas defendia a separação entre o Estado e a Igreja Católica e, por isso mesmo, foi uma das primeiras vítimas do golpe de 17 de julho de 1936. Lorca era homossexual e queria viver num país onde pudesse amar quem quisesse; onde o amor consensual entre adultos não fosse crime para satisfazer à visão torta do Evangelho defendida pela Opus Dei. Os perseguidores tanto de Dilma quanto de Freixo odeiam os excluídos do apartheid brasileiro e aqueles que vêem como representantes deles. Quiseram separar o Brasil do Nordeste devido à identificação daquela região com Dilma na eleição presidencial de 2014. Chamam Dilma de "sapatão" desde 2010. De maneira semelhante, Freixo não pode participar dos debates porque é o candidato mais identificado com as minorias no Rio. Minha solidariedade a ele perpassa questões partidárias. É um apoio àquilo que ele representa para nós, membros de grupos oprimidos deste país que buscam a liberdade. Agora é a vez do PSOL ser a vítima dos ataques de um Estado que persegue aqueles que denuncia suas mazelas. Mas este não fala em meu nome e é por isso que eu grito: Viva Freixo! Viva aquilo que ele representa.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Obrigado, golpistas!

Hoje a farsa contra a presidenta Dilma Rousseff foi finalmente consumada e seu mandato foi oficialmente abreviado pelo Congresso Nacional. Por não terem conseguido provar qual crime Dilma teria cometido, os senadores cassaram-na, mas deixaram seus direitos políticos intactos. Transformaram o mecanismo do impeachment previsto na Constituição de 1988 num voto de confiança, embora o regime de governo no Brasil seja o presidencialismo e não o parlamentarismo. Na Espanha, seria perfeitamente legal afastar o presidente de governo pelo "conjunto da obra", mas no Brasil isto é — ou era — juridicamente impossível em razão do fato do presidente ser também o chefe de Estado e o cargo, acumulando as duas funções, necessitar de certa estabilidade institucional. Assim sendo, não há outra forma de classificar o impeachment de Dilma Rousseff que não seja através da palavra "golpe". É o golpe frio do qual a revista alemã Der Spiegel falou.

Apesar de terem ajudado a instituir uma nova modalidade de golpe na América Latina, que até mesmo o jornal conservador argentino Clarín vê com cautela, não guardo rancor em relação aos partidários do golpe contra Dilma. Pelo contrário, gostaria de agradecer aos golpistas do fundo do meu coração. Desde que vocês decidiram se fechar ao diálogo e se isolar do resto da sociedade que não pensa como vocês, minha vida só melhorou. Quando vocês decidiram que sua estratégia de ação política para derrotar Dilma e o Partido dos Trabalhadores seria o ataque à própria democracia, percebi que seria obrigado a me afastar de vocês. Não quis conviver no mesmo ambiente tóxico de ódio e rancor no qual vocês vivem. Vocês desnudaram sua falta de caráter e valores morais e isso me desagradou. Assim sendo, a única opção que me restou foi conviver com pessoas que pensam de maneira semelhante a mim. Graças a vocês, golpistas, entrei em contato com pessoas maravilhosas.

Busquei me afastar de pessoas cujos valores eu percebia como dúbios. Não conseguia mais aturar mesquinhos, hipócritas e falsos moralistas. Gente que falava que não tinha "bandido de estimação", mas que celebrou o fato de Eduardo Cunha ter estado do seu lado na luta contra o PT. Gente que cobrava retidão de caráter dos políticos, mas que pede pro colega bater o ponto em seu lugar no trabalho. Gente que se diz cristã, mas que xingava uma senhora de 68 anos de idade, avó de duas crianças, de "puta" no protesto de domingo após a missa ou culto. Gente que nunca vai suportar ter que dividir as vias públicas com pobres em carros mais humildes. Gente que grita quando contrariada. Gente cujo ódio é o próprio combustível que as move e as faz sair da cama todas as manhãs. Num primeiro momento, parecia que eu havia me isolado do mundo e que não havia mais ninguém como eu ao meu redor. Mas isto não era verdade.

Lentamente, fui me aproximando de um variado leque de pessoas que também não suportam o "dois pesos, duas medidas" tão característicos dos brasileiros que se julgam informados quando na verdade estão sendo manipulados. São pessoas que, sob circunstâncias normais, eu não teria tido a oportunidade de conhecer no meu até então restrito círculo de convivência social. A primeira demonstração de hipocrisia ocorreu num templo da Igreja Católica, da qual me desvinculei logo em seguida para, felizmente, encontrar uma igreja mais afinada com os meus valores. Em seguida, ao voltar a participar de protestos de rua, descobri o quão rica é a militância progressista no Brasil. Me abri para pessoas com as quais, num passado recente, eu teria vergonha de ser visto em público. Se hoje tenho diversos amigos — virtuais ou não — de diversas partes do Brasil e do mundo, de várias etnias, orientações sexuais e identidades de gênero, é por causa do terremoto político que o golpismo causou.

Além disso, voltei a prestar a atenção na produção musical nacional. Redescobri a obra de muitos artistas graças a sua militância anti-golpe. Quem poderia imaginar que eu tenho tanto em comum com o Tico Santa Cruz, por exemplo? São artistas que fazem cultura de primeira e que dificilmente terão o reconhecimento que merecem do grande público. Nesse sentido, o serviço sueco de streaming Spotify foi de grande importância para me fazer romper o boicote à música popular brasileira imposto pelas rádios FM de Goiânia. Assim como a reação popular às organizadíssimas neo-marchas da Família com Deus pela Liberdade me aproximou de negras e negros que não escondem suas raízes, pessoas trans que não escondem sua identidade e muitos — muitos mesmo — homossexuais que, num passado recente eu teria considerado "espalhafatosos" demais. Houve também o que chamo de "invasão nordestina" aos meus perfis nas redes sociais.

Desde que vocês, golpistas, decidiram não reconhecer o resultado da eleição presidencial de 2014, eu cresci bastante. Muitas vezes, as adversidades nos impõem o crescimento. Romper laços é doloroso, mas nem sempre é maligno. Isolar-me de vocês forçou meu crescimento nas relações interpessoais — e garantiu-me uma paz de espírito inédita em minha vida. Resistir ao golpe parlamentar tem sido uma experiência fascinante de auto-conhecimento através do outro. Finalmente entendi o que significa ser cristão. Não significa dar a outra face para vocês o tempo todo. Significa estender a mão para todos que são rejeitados por vocês, que são a expressão política de uma minoria gananciosa. Significa aceitar-me e poder assumir, por exemplo, que acho um homem trans bonito e que ficaria com ele. Libertei-me do fardo que vocês representavam em minha vida. Por isso, obrigado, golpistas! O ódio de vocês me uniu em amor a pessoas incríveis. E o que o amor une, o ódio não pode separar.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Há 80 anos, fascistas matavam a poesia na Espanha


Federico García Lorca (1898–1936)
Há exatos oitenta anos, no início da Guerra Civil Espanhola (1936–1939), o conhecido poeta e dramaturgo Federico García Lorca foi assassinado por soldados fascistas. Um mês antes de morrer, aos 38 anos de idade, Lorca havia terminado de escrever a peça A Casa de Bernarda Alba que, com Bodas de Sangue Yerma, faz parte de sua trilogia rural. A morte, presente nas três peças, é um tema artístico central de sua breve vida. Dez anos antes de ser assassinado, quando morava em Nova York e acompanhou o desespero gerado nas pessoas pela quebra da bolsa, Lorca parece ter previsto o destino violento que encontraria ao compor os seguintes versos: "Então eu percebi que fui assassinado / Me procuraram em cafés, cemitérios e igrejas / Mas não me acharam / Eles nunca me acharam? / Não, eles nunca me acharam". O mais assustador em sua premonição é que até hoje seu corpo não foi, de fato, encontrado.

Poucos artistas representaram e encarnaram o espírito coletivo de sua nação tão bem quanto Lorca – o que torna sua morte ainda mais emblemática. A morte de Lorca precedeu a censura que matou a arte na Espanha. Logo após a eclosão da Guerra Civil, em julho de 1936, Lorca tomou a decisão desastrada de deixar o seguro enclave de Madri para ficar com seus familiares em Granada, a região conservadora em que nasceu. O interior da Espanha e seus costumes fascinavam Lorca, que retratou-o em suas peças. Imediatamente após sua chegada, Granada foi sitiada pelo partido político paramilitar que orquestrou o golpe de Estado contra o presidente Manuel Azaña, a Falange Espanhola. Apesar de cultivar uma imagem pública de artista apolítico, sua associação com a República, suas peças contra a repressão e algumas declarações anti-católicas em entrevistas transformaram Lorca num alvo em potencial dos conservadores. Outro fator que contribuiu para o ódio dos falangistas ao poeta era sua homossexualidade.

Lorca manteve-se escondido, mas os falangistas caçaram-no até o dia 16 de agosto, quando foi preso e condenado à morte sem base legal ou julgamento. Às três da madrugada de 19 de agosto, foi algemado a um outro prisioneiro – um professor – e lavado de carro a um prédio chamado La Colina na cidade Viznar, que a Falange havia transformado em presídio para prisioneiros políticos. Pouco após o amanhecer, Lorca foi levado para o lado de fora do edifício, onde foi fuzilado ao lado do professor e de dois toureiros, membros do sindicato anarquista CNT. Segundo uma testemunha, o poeta foi levado para uma sala antes da morte, onde foi torturado devido a sua homossexualidade. Lá, balas foram enfiadas em seu ânus. Após o fuzilamento, o corpo de Federico García Lorca, um dos maiores escritores do século XX e um dos filhos pródigos da Espanha, foi lançado sem cerimônia num barranco, que em breve se tornaria uma vala comum para as vítimas dos falangistas.

Barranco de Viznar, onde o corpo de Lorca teria sido jogado.
Após seu fuzilamento, os livros de Lorca foram queimados publicamente na Plaza del Carmen em Granada e, com a ascensão ao poder do caudilho Francisco Franco, sua obra foi rapidamente banida de todas as províncias da Espanha. Anticlericalismo, republicanismo e liberdade não eram valores que interessavam ao novo regime integralista, que promovia o nacionalismo, o militarismo, o catolicismo, o anti-comunismo e o anti-libertarismo. E a homossexualidade? Existe algo mais subversivo para um governo escorado no fundamentalismo católico da Opus Dei do que relações entre pessoas do mesmo sexo? Em 1953, uma versão censurada das Obras Completas de Lorca foi lançada. Entre as ausências mais notáveis da antologia encontra-se o poema homoerótico "Sonetos do Amor Obscuro", escrito em 1935. Este era considerado perdido até os anos 1980, quando foi publicado na forma de rascunho, uma vez que a versão final do poema jamais foi encontrada.

A última peça de Lorca, A Casa de Bernarda Alba, só foi encenada pela primeira vez em 1945 em Buenos Aires. Vinte anos mais tarde, uma versão censurada da peça foi apresentada na Espanha, mas a censura ao resto da obra do poeta só terminou após a morte do caudilho em 1975. Durante o francoísmo, menções à vida e à morte do poeta também foram censuradas. Para a narrativa oficial dos vencedores da guerra, Lorca nunca existiu. Foi somente após a morte de Franco, em 1975, que a Espanha pôde finalmente discutir abertamente sobre a morte de um de seus maiores ícones literários. Além da censura política, havia uma relutância da família García Lorca em permitir a publicação de seus poemas e de suas peças. Era um trauma que não estavam prontos para reviver. Devido ao fato de ter se tornado um assunto proibido por 36 anos, até hoje não se sabe ao certo onde estão os restos mortais do poeta. Atualmente suas peças são encenadas frequentemente na Espanha.

Monumento em Viznar: "Lorca era todos". Era? A depender
da direita brasileira, histérica, Lorca serei eu.
Embora imagina-se que exista um dossiê sobre o assassinato de Lorca, a falta de emersão do mesmo continua a atormentar sua família. Em 2009, um juiz espanhol abriu uma investigação sobre as circunstâncias do assassinato de Lorca e a família do poeta finalmente permitiu que fosse realizada uma busca a seus restos mortais no Barranco de Viznar. Segundo Ian Gibson, biógrafo de Lorca, esta ação foi adiada por tempo demais: "Acho que é essencial encontrar o corpo, em respeito à memória de Lorca. Só sua morte renderia 100 livros... Lorca pertence à humanidade e não a sua família. Ele é um emblema que deu sua vida pela Espanha. Ele é um mártir". Apesar da iniciativa, nada foi encontrado no local. Enquanto o assassinato de um dos maiores poetas do século passado é relembrado em todo o mundo, o Brasil ataca seus poetas e deixa-se fascinar pela mesma histeria fascista que permitiu à Espanha matar sua arte e embarcar em 36 anos de trevas. Como escritor, gay e libertário (assim como Lorca) não posso deixar de me incomodar com este paralelo histórico.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

A crise desnudou os caracteres

Que diferença uma década faz! Em 2007, a possibilidade dos Estados Unidos da América eleger Hillary Clinton como sua primeira presidenta me deixou extasiado. Não entendia muito bem de política, mas achava que esse fato, por si só, representava um avanço no cenário político mundial. Ao mesmo tempo, reconectei-me à minha brasilidade. O Brasil crescia muito em termos sócio-econômicos durante o segundo mandato do presidente Lula e ser brasileiro era algo que dava orgulho. Tínhamos acabado de sediar os Jogos Pan-americanos e fomos escolhidos como sede da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Duas figuras foram particularmente importantes nesse processo: a cantora e compositora baiana Daniela Mercury, que cantou "Cidade Maravilhosa" na abertura do Pan e cuja obra eu redescobri naquela época, e a então ministra do turismo e eterna candidata à prefeitura de São Paulo Marta Suplicy, cujos artigos entrei em contato pela primeira vez ao ler um texto de sua autoria sobre a emancipação feminina no colégio.

As aparências enganam...
Outro aspecto importante do meu amadurecimento foi meu distanciamento crescente em relação à Igreja Católica. O rompimento definitivo ocorreu em 2009. Após o estupro de uma menina de 9 anos pelo próprio padrasto no sertão de Pernambuco, o então arcebispo de Recife e Olinda decidiu excomungar o obstetra Olímpio Moraes, que realizou um aborto nela. A decisão do clérigo foi criticada pelo então presidente Lula, a quem o bispo mandou estudar teologia. Indagado se não iria excomungar o estuprador, dom José Cardoso Sobrinho disse que não, justificando que o estupro não é um crime contra a vida – portanto, passível de excomunhão – segundo o Direito canônico. A Igreja de Roma passou uma mensagem bem clara para o jovem impressionável que eu era. Para a instituição, a vida das mulheres é menos importante do que a vida dos fetos. A campanha velada que a Igreja fez no ano seguinte a favor de José Serra, o candidato tucano à presidência, só reforçou meu distanciamento. O próprio papa Bento XVI sugeriu que Dilma Rousseff era favor do aborto!

É, portanto, justificável que eu tenha observado o processo de eleição do papa Francisco em março de 2013 com uma grande dose de desconfiança. Jorge Bergoglio, então cardeal de Buenos Aires, havia sido acusado de ter ajudado os militares durante a ditadura argentina, a mais implacável do continente. Trata-se de uma acusação grave e não muito implausível para aqueles que conhecem a história latino-americana. Hoje minha visão sobre cada uma dessas figuras mudou muito. Se alguém me dissesse, há cinco anos atrás, que Dilma seria derrubada por uma manobra parlamentar com o voto favorável de sua ex-ministra Marta Suplicy – e o voto contrário de Kátia Abreu – eu chamaria essa pessoa de louca. Como as aparências enganam! Marta era uma militante histórica do PT e foi eleita senadora na coligação de Dilma, enquanto Kátia apoiou Serra. No entanto, quem estava ao lado da mandatária em sua cerimônia de despedida do cargo era a última e não a primeira. Fiz um julgamento errado do caráter de Marta, assim como fiz um julgamento errado sobre o atual papa.

...mas a crise desnudou os caracteres.
O líder espiritual dos católicos romanos demonstrou estar pouco interessado em defender um status quo retrógrado e opressor. Pelo contrário, sempre denuncia o culto ao dinheiro que tem levado milhões de vidas à ruína. Assim sendo, as oligarquias latino-americanas não mais podem contar com a ajuda do bispo de Roma na defesa de seus interesses políticos. Não que a Igreja vá adotar a pauta de partidos progressistas, como a defesa do aborto e do casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas também não vai tentar interferir em eleições como Bento XVI fez no segundo turno de 2010, quando disse que os fiéis não deveriam votar em quem apoia o aborto. As manifestações de Francisco são mais sutis. Recentemente ele enviou um rosário para a ativista política argentina Milagro Sala – considerada prisioneira política pelos opositores do governo neoliberal de Mauricio Macri – e tem demonstrado preocupação com a "pausa democrática" no Brasil. Segundo interlocutores, o papa tem um relacionamento amistoso com Dilma e teria, inclusive, escrito uma carta de apoio a ela.

Os momentos de crise, creio eu, revelam o verdadeiro caráter das pessoas. Quando Dilma tornou-se a presidente mais bem avaliada da história do Brasil, a então secretária de estado americana Hillary Clinton referiu-se a ela como "padrão mundial na luta contra a corrupção". Depois que a popularidade da mandatária brasileira dissipou-se e ela foi condenada por um crime que não cometeu, Clinton não deu um pio sobre o processo de impeachment. Enquanto o governo Obama – do qual fez parte – oferece apoio tácito aos golpistas, 37 congressistas americanos denunciam o golpe contra a democracia brasileira. Assim como Marta, Clinton está interessada apenas no poder. Por outro lado, seu rival na disputa pela candidatura presidencial dentro do Partido Democrata, Bernie Sanders, orgulha-se de nunca ter trocado de lado na batalha política. Dois dias após o episódio circense da Câmara que autorizou a abertura do processo de impeachment contra Dilma, afirmou que "os EUA não podem continuar derrubando governos na América Latina". Mais recentemente lançou nota condenando o processo.

Tudo o que temos para oferecer são nossos valores

Marta não quer perder votos em São Paulo por estar associada à Dilma. Clinton, por sua vez, não quer perder o financiamento de setores interessados no golpe em curso no Brasil, em especial a indústria de combustíveis fósseis. Sanders, por outro lado, defende o mandato de Dilma, conquistado em eleições livres e democráticas, sem nunca tê-la conhecido pessoalmente. Já não admiro mais Marta e Hillary Clinton como fazia-o nos idos de 2007, mas no meio da crise política brasileira, meu respeito à cantora Daniela Mercury manteve-se intacto. Em maio, após ter sido consumado o golpe do PMDB contra Dilma, Marta incumbiu-se da função de encontrar uma mulher para o cargo de secretária nacional da cultura. Temer, atacado por artistas por ter extinguido o MinC e por feministas por não ter nomeado nenhuma ministra, queria uma mulher para exercer a função. Marta – que traiu a colega antes mesmo de Temer fazê-lo com sua cartinha ridícula – assumiu felizmente o papel de coveira do Ministério da Cultura, o mesmo que dirigiu por mais de dois anos entre 2012 e 2014. 

Uma das pessoas procuradas pela ex-ministra da cultura de Dilma foi justamente Daniela Mercury. Não querendo se indispor com a classe artística, Daniela repetiu o gesto de Fernanda Montenegro quando esta foi convidada para ser ministra da cultura por José Sarney e por Itamar Franco e negou-se à empreitada. Caso tivesse aceitado, Daniela trairia a si mesma. É uma mulher e Temer compôs o primeiro governo sem mulheres desde 1982. Além disso, o governo atual não dialoga com minorias e, em suas músicas, Daniela canta sobre a luta de negros e mulheres pela liberdade. Trata-se da primeira cantora de axé a receber de braços abertos o público gay no carnaval de Salvador. Fez isso enquanto houve quem colocasse fim a seu bloco quando ele começou a se tornar "mal frequentado", ou seja, frequentado por gays demais. Nada mais natural. Afinal de contas, Daniela é bissexual e, apesar das tentativas da imprensa de obrigá-la a se assumir, viveu dentro do armário até 2013, quando finalmente teve coragem para assumir sua parceira, a jornalista Malu Verçosa, com quem cria três filhas adotivas.

Daniela Mercury manteve-se coerente com seus valores.
No Brasil atual, é de se admirar.
A única coisa que importa para Marta Suplicy desde 2005 é voltar ao Palácio do Anhangabaú. Daniela tem outras preocupações. Tem nas pessoas LGBT um grande público e não quis se indispôr com seus fãs para fazer parte de um governo que compõe com a bancada evangélica. Como fã, eu teria me sentido traído se ela fizesse parte de um governo cujo principal articulador é Eduardo Cunha, o mesmo que proibiu os cartazes do Seminário LGBT do Congresso Nacional – no qual Daniela aparecia trocando intimidades com Malu – de serem afixados nos corredores da Câmara. O poder muda as pessoas, e com certeza mudou Marta Suplicy e Hillary Clinton, transformando-as em pessoas sem palavra. Ainda bem que a cantora baiana não caiu na armadilha sedutora do poder. Teria ganhado o desprezo dos artistas que lutavam contra a extinção do MinC e de seus fãs, que através de suas músicas sonham com um futuro de maior liberdade para todos. Teria se tornado mais uma hipócrita que, como Marta, vendeu seus sonhos "tão barato que eu nem acredito".

Dito tudo isso, gostaria de parabenizar, com um certo atraso, a decisão de Daniela. No calor do momento, deixamos de fazer algumas análises importantes do caráter das pessoas. Enquanto Marta morreu pela boca ao trocar Dilma pela dupla Temer–Cunha, Daniela manteve-se firme em suas convicções. Chega numa idade da vida em que tudo o que temos para oferecer àqueles que nos admiram são nossos valores. Precisamos agir de forma coerente com as palavras que saem de nossas bocas. A grande defensora dos LGBT na política aliou-se com os maiores vilões deles em troca de espaço na disputa para a prefeitura de São Paulo. Daniela, por outro lado, continua defendendo os mesmos valores que defendia em 2007. Talvez até de forma mais intensa agora que saiu do armário. Pra essa gente careta e covarde, que não suporta a luta se esta lhe tornar impopular, desejo piedade. Pra gente inovadora e corajosa como Daniela, desejo axé. Pois é com muita felicidade que afirmo que minha cantora favorita ainda viva tem caráter!

Eu já admirei Marta Suplicy e Hillary Clinton e, por ignorância, desprezei Kátia Abreu e Jorge Bergoglio, o Papa Francisco. Os dois últimos possuem visões políticas diferentes da minha em várias áreas e eu julgava isso como sendo mau-caratismo. Há direitistas de bom caráter e esquerdistas oportunistas. De que adianta concordar com políticos como Marta e os Clintons se eles não possuem ideologia alguma e mudam de visão para ganhar votos? Por outro lado, a crise do capitalismo apresentou-me à trajetória do senador Bernie Sanders, que mantém-se firme na defesa dos oprimidos desde os anos 1980. Quando Bill Clinton apresentou a homofóbica Lei de Defesa do Casamento em 1996, ele votou contra, mesmo correndo o risco de se tornar impopular. Ignorando a história, as principais ONGs gays apoiaram Clinton. Daniela Mercury, por outro lado, continua sendo a mesma diva gay que era em 2007. Seu "Canto da Cidade" continua sendo, para mim, um hino de liberdade. A conclusão que tiro disso tudo é que não se pode e não se deve julgar um livro pela capa. A não ser que este livro seja Bernie Sanders ou Daniela Mercury.