domingo, 29 de maio de 2016

O problema de Alexandre Frota

O problema de Frota não é o fato dele ter
construído sua carreira posando nu.
Na quarta-feira passada, o ministro interino da educação, Mendonça Filho, recebeu uma personalidade para lá de polêmica em seu gabinete: o ex-ator pornográfico, diretor, comediante, modelo e apresentador Alexandre Frota. A notícia causou um rebuliço nos blogs de esquerda e logo o passado dele — no qual consta participação em 20 filmes pornográficos e quatro ensaios para a finada revista de nu masculino G Magazine — veio à tona. Isso para mim é irrelevante e só reforça o quanto a esquerda nativa ainda é machista e precisa evoluir. O ator austro-americano Arnold Schwarzenegger também posou nu no início de sua carreira e isso não influenciou em sua eleição como 38° governador da Califórnia. O que o indivíduo faz com seu corpo, não é problema de ninguém além dele, a não ser que ele não prejudique outras pessoas. E é aí que reside o maior problema de Alexandre Frota.

Durante uma entrevista para o talk-show Agora é Tarde, exibida há pouco mais de um ano, Frota confessou ter estuprado uma mãe-de-santo. O apresentador do programa, Danilo Gentili — conhecido por suas piadas contra grupos socialmente marginalizados — em momento algum repreendeu o entrevistado. A plateia, por sua vez, riu do relato de Frota, que afirmou que a mãe-de-santo gritava para ele parar, mas que ele fez "tanta pressão na nuca dela que ela dormiu". Após a repercussão negativa da entrevista, Frota se defendeu dizendo que havia inventado a história, que era apenas uma "piada" que fazia parte do roteiro de seu show de stand-up. Quem é que ri de estupro? Não assisto Law & Order: SVU para rir. Justo pelo contrário, muitas vezes me emociono com as histórias das vítimas de estupro, embora elas sejam ficcionais. Sem falar que o relato de Frota representa o próprio estupro das religiões afro-brasileiras pela cultura branca.

O problema de Alexandre Frota não é ele ter sido um ator pornô entre 2004 e 2009. Isso não diz nada sobre o caráter de uma pessoa. Não estamos na Roma Antiga, onde os profissionais do sexo não eram cidadãos. A maioria deles deve até ser mais honesta do que nossos nobres deputados em Brasília. O problema de Frota é a petulância e o cinismo, tão característicos da direita brasileira. A petulância de narrar um estupro — mesmo que seja fictício, o que eu duvido — em rede nacional de televisão sem preocupação com a consequência de suas palavras num país onde uma mulher é estuprada a cada 10 minutos. A petulância de minimizar a importância dos crimes sexuais, tratados como piada. E o cinismo de, quando cobrado, responder "estava só brincado", frase esta tão característica da classe média brasileira quando colocada contra a parede por quem ela oprime. Como homem gay, sei bem disso. E aí é que reside o restante do cinismo de Frota.

O que será que Bolsonaro pensava de Frota nos anos 2000?
Quem cresceu como homossexual no final dos anos 1990 e início dos anos 2000 tinha na G Magazine uma grande referência. Nunca comprei a revista, mas sempre via os ensaios em sites especializados em vazar as imagens dos ensaios assim que a revista era lançada nas bancas. Existia — e ainda existe — um tabu muito grande em relação às revistas que publicam ensaios nu, como se ver uma mulher ou um homem pelado não fosse algo completamente natural. Comprar uma revista dessas é um atestado de homossexualidade e eu não iria arriscar revelar minha orientação sexual por causa da minha libido. Preferia esperar as imagens vazar online. (Para ler mais sobre a minha dificuldade em me assumir, clique aqui). Alexandre Frota era, ao lado de Mateus Carrieri, um dos modelos que eu mais gostava de ver, embora nos últimos ensaios ele já não estivesse mais tão bem quanto nos primeiros, devido ao abuso de esteroides. Era bonito, musculoso e bronzeado e, ao contrário dos demais ratos de academia, não via problema em ser desejado pelo público gay 

Em algum momento, no entanto, ele decidiu rechaçar esse passado que lhe deu muito dinheiro. Uma notícia da Folha Online de fevereiro de 2008 dá conta de que ele teria se convertido ao evangelicalismo e todos sabemos qual é a moral sexual das igrejas evangélicas e o que elas pensam sobre a homossexualidade. Agora regenerado, Frota é o típico macho brasileiro de classe média (embora sou inclinado a achar que ele nunca tenha deixado de ser e só fingia ser liberal devido ao pink money). Gaba-se de suas conquistas sexuais em público — "estupro" não é bem conquista, mas na mente de quem pensa como ele é — e odeia os homossexuais que lhe deram muito dinheiro e fizeram com que seus ensaios para a G Magazine estivessem entre os mais vendidos da história da revista. Não fosse a repercussão de seus ensaios e filmes pornográficos, já teria sido esquecido há muito tempo, como muitos atores que tiveram papéis secundários em novelas dos anos 1980. 

O problema de Alexandre Frota é querer ser aceito pelos mesmos que olhavam para ele com desprezo quando liam alguma notícia relacionada a um de seus ensaios. Como, por exemplo, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), de quem espera ser companheiro de chapa na próxima eleição presidencial. Esse é um problema de muitos brasileiros pobres e de classe média: foram picados pela mosca azul e agora querem andar de braços dados com uma elite que os despreza. Não percebem que são apenas um peão no jogo de xadrez de quem é verdadeiramente rico e poderoso. Recordo-me, então, de Colby Keller, um dos maiores astros da indústria pornô dos Estados Unidos. Criado na Assembleia de Deus, descobriu o marxismo no curso de mestrado em belas artes que fez no Maryland Institute College of Art. Libertou-se das amarras sociais e ingressou na indústria pornográfica no mesmo ano que Frota. Sua popularidade é tão grande que participou de uma campanha da grife de Vivienne Westwood ao lado de modelos não-pornográficos.

Keller e as esculturas que fez de Lênin.
Keller, ao contrário de Frota, é consciente das contradições geradas pelo capitalismo e reconhece seu papel dentro desse sistema econômico. "Faço isso para sobreviver e não é um trabalho fácil. É um meio. Como marxista, essa é a minha força de trabalho", disse numa entrevista. "Não há como escapar do sistema", afirmou em outra. Reconhecer sua força de trabalho ou — em palavras cristãs — seu propósito nesse mundo é algo que todos nós precisamos fazer. Alexandre Frota, aos 52 anos de idade e já tendo tentado uma série de ocupações, parece ainda não saber qual é a sua. Entrou na crista da onda do conservadorismo político, adaptou-se a ele e espera ser essa sua verdadeira vocação. Como afirmei no início desse texto, ser um profissional do sexo não determina o caráter de ninguém. O problema de Frota é querer usar a fama advinda da pornografia para foder a sociedade, seja através de falas (como a "piada" do estupro) ou de ações (como a proposta que apresentou ao MEC).

sábado, 28 de maio de 2016

Temer e a retórica nazista

Algumas coisas é definitivamente preciso ver para crer. Já tinha visto várias vezes, nas redes sociais, fotos de outdoors com a inscrição "Não pense em crise, trabalhe!", mas o impacto foi completamente diferente quando vi um anúncio com a frase ao vivo. Estava na Avenida T-6. Na ocasião, tinha ido ao Fujioka com minha mãe para comprar uma televisão e, saindo da loja, vejo o outdoor que conseguiu tirar toda a alegria da compra que havíamos terminado de fazer. A sensação que tive foi de morar numa ditadura totalitária onde é proibido discutir o porquê de uma minoria ser rica e frequentar os melhores restaurantes e bares enquanto a maioria labuta duro e nem tem o que comer direito. Parece a China onde colocam redes nas janelas das fábricas de produtos eletrônicos para evitar que os operários cometam suicídio. "Não pense em suicídio, trabalhe!". O correspondente do Los Angeles Times, Vincent Bevins, foi certeiro ao dizer que a frase do novo presidente brasileiro parecia saída do departamento de propaganda da antiga União Soviética.

"O trabalho liberta", frase contida na entrada dos campos
de concentração construídos pela Alemanha.
A crise brasileira — que não é só econômica — não é o Beetlejuice. Ela não vai desaparecer contanto que não falemos dela. Ela está por todos os lados: está no mendigo que lhe estende a mão no sinal e até mesmo na notícia da moça que foi estuprada por três dezenas de homens numa favela da cidade-sede dos Jogos Olímpicos de 2016. Questionar qual a ligação entre ambos os fatos e a decadência política-econômica e, principalmente, moral do Brasil, é algo que incomoda as autoridades, sobretudo aquelas filiadas a partidos que defendem que as injustiças sejam resolvidas com a intervenção da polícia ostensiva. Não é por acaso que governos autoritários interditam o debate sobre questões sociais. Quem pensa incomoda. "Não pense, trabalhe!". A negação, seguida de um verbo de discussão me lembra uma frase dita pelo ditador português António Salazar: "Não discutimos a glória do trabalho e o seu dever". "Não discutimos". Como é possível uma nação crescer sem questionar seus problemas e, no caso do Brasil, sem questionar a relação desigual entre capital e trabalho?

O Brasil já tentou avançar valendo-se da retórica nazista que, ao mesmo tempo em que exigia servidão, negava à população o direito de debater sobres os problemas que afligiam-na. Em 1974, o "país do futuro" enfrentava uma crise de meningite que matou quase 3.000 crianças apenas nas duas maiores cidades do país. A ditadura militar, valendo-se da censura prévia em vigência desde 1968, proibiu os veículos de comunicação de informar à população sobre a epidemia, contribuindo para ainda mais mortes. A população não podia descobrir que o governo que reorganizaria o Brasil, que tirou-o das mãos dos comunistas comedores de criancinhas e que promovia o "milagre econômico" falhava naquilo que deveria ser o mais básico num país civilizado: garantir o direito à vida dos pequenos. Questionar o governo era questionar a própria nação e um agressivo slogan convidava os insatisfeitos com o regime a deixar o país: "Brasil: Ame-o ou deixe-o!". Assim como no governo atual, um outro slogan exigia da população que trabalhasse, ou melhor, servisse ao país: "Quem não vive para servir ao Brasil, não serve para viver no Brasil". Não é à toa que a bandeira presente no logo do governo Temer seja aquela usada até 1968. Sua publicidade inspira-se no regime militar!

"Enquanto estivermos lutando, trabalhe pela
vitória
". Pôster da Alemanha Nazista.
A servidão, ou melhor, o sacrifício coletivo pelo bem da nação é uma ideia reforçada a todo o momento nos governos autoritários, que se impõem pela força e não pelo voto (como é o caso de Michel Temer). Certa vez, Adolf Hitler proclamou que a Alemanha teria sido mais bem sucedida caso tivesse sido uma nação não-cristã: "Por que não temos a religião dos japoneses, que coloca o sacrifício pela pátria como maior bem? (...) Por que tinha que ser o cristianismo, com sua resignação e flacidez?". Por que Hitler disse isso se a ideia de que o trabalho dignifica o homem é bastante presente na Alemanha, onde Max Weber publicou A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo? Porque nas mentes dos líderes autoritários Estado e governo confundem-se e quem não está pronto para se sacrificar pelo governo é visto como um traidor da nação. É essa a ideia que Michel Temer busca incutir nas mentes dos brasileiros. Conta para isso, com a ajuda de líderes religiosos como Silas Malafaia e Marco Feliciano, que incorporam mais o espírito capitalista do que o Espírito Santo. A esses líderes, não interessa um povo pensante. "Não pense em crise, pague o dízimo!".

Apesar da exigência do sacrifício, quase sempre os líderes autoritários moram em palácios luxuosos e andam em carros de luxo. No entanto, não se pode enganar a todos ao mesmo tempo. O tabloide britânico Daily Mail já percebeu a dissimulação de um presidente que propõe cortes nos gastos orçamentários com a área social manter os muitos caprichos da esposa, descrita como sendo uma versão tropical de Maria Antonieta. Tenho certeza de que até mesmo os alemães de meados da década de 1940 percebiam que seu führer levava uma vida relativamente tranquila enquanto seus filhos morriam nos campos de batalha em sacrifício pela nação. Só que, obviamente, tinham medo de dizê-lo publicamente. E aí é que está uma questão essencial para a sobrevivência do governo Temer. Começa a cair sua máscara — e também a dos grupos "apartidários" que colocaram-no no poder. Como ele fará para mantê-la e garantir-se no cargo? Será que a única coisa que ele — que assim como Hitler ascendeu ao poder graças a um golpe parlamentar — vai tomar emprestado dos nazistas será a retórica? Espero que sim.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Em defesa do Times

Há exatamente uma semana o jornal estadunidense New York Times publicou um editorial, intitulado "Piorando a crise política no Brasil", em que criticava o impeachment da presidenta constitucional do Brasil, Dilma Rousseff. O mais respeitado diário do mundo escreveu que Dilma está pagando um preço desproporcionalmente alto por irregularidades administrativas que são cometidas por quase todos os governantes do país — segundo Cenk Uygur do Young Turks se todos os políticos americanos que violam a lei orçamentária fossem afastados não sobrariam mais políticos no país. Segundo o Times, "vários dos detratores mais ardentes [de Dilma] são acusados de crimes mais escandalosos". Como, por exemplo, o novo líder do governo na Câmara, André Moura (PSC-SE), investigado por tentativa de homicídio. A opinião da família Ochs Sulzberger é de que os líderes políticos brasileiros querem "removê-la para retomar a política de pagamento de propinas, o que é indefensável".

Como cantava o Bee Gees, talvez um dia conseguiremos
entender o efeito que o New York Times provoca nas pessoas. 
Mal o editorial foi impresso e os lacaios da mídia nativa correram para desmerecê-lo. O papel mais patético foi protagonizado por Lúcia Guimarães, ex-produtora do Manhattan Connection e atual colunista do Estado de S. Paulo, aquele jornal que apoiou acriticamente o golpe de Estado de 1964 para depois ser censurado pelos próprios golpistas. A jornalista escreveu diversos tuítes (em inglês) para o perfil oficial do jornal estadunidense, corrigindo-o. Foi sumariamente ignorada pelo gestor de redes sociais do Times, que deve ter achado se tratar de mais uma militante do PSDB e não de alguém que diz ser uma profissional da informação. Se em 1964 a grande mídia brasileira conseguiu entorpecer a maioria dos brasileiros através de uma narrativa uníssona da crise política de então, parece estar tendo dificuldade em fazer o mesmo agora que as fronteiras entre os países estão cada vez menores e os olhos do planeta se voltam para o Rio devido aos Jogos Olímpicos.

Publicado continuamente desde 1851, o New York Times é referência mundial em jornalismo, tendo suas reportagens recebido 117 prêmios Pulitzer, mais do que qualquer outro veículo de imprensa. Foi nos arquivos deste jornal que descobri quem foi a revolucionária alemã Rosa Luxemburgo. Foi este jornal que revelou ao mundo quem era Chico Mendes e por que ele estava sendo ameaçado de morte — e o governo de José Sarney, que agora negocia cargos com Michel Temer, ignorou solenemente a reportagem, o que levou ao assassinato do líder ambientalista e sindical pouco antes do Natal de 1988 na porta de sua casa em Xapuri, no Acre. Trata-se de uma das maiores fontes historiográficas do mundo — e é por isso que incomoda à elite brasileira e seus lacaios que ela não esteja reproduzindo a versão deles. Mas se o Times não se dobrou a líderes muito mais espertos e a elites muito mais sanguinárias, por que se dobraria a Temer e à elite paulista?

Página de O Globo de 7 de abril de 64,
sugerindo nomes para a tortura.
Quando precisei pesquisar dados sobre o plebiscito de 1934 que tornou Adolf Hitler führer da Alemanha foi no New York Times que os encontrei e não no arquivo do Estadão. O jornal tinha um correspondente em Berlim em plena escalada do nazismo! Se hoje é possível desmentir rumores antissemitas sobre a ascensão de Hitler, é devido, em parte, ao Times. Se o jornal se limitasse a reproduzir a mídia oligopolizada da Alemanha dos anos 1930, como os lacaios da elite paulista desejam que ele faça ao reportar a crise política brasileira, provavelmente teria defendido o extermínio de judeus. Mas aí é que reside parte importante da grande diferença entre o Times e os jornalões brasileiros. Em 1896 ele foi comprado por Adolph Ochs, um comerciante judeu, e os judeus só foram completamente integrados à sociedade estadunidense após a Segunda Guerra Mundial. Já os principais jornais brasileiros sempre foram dirigidos por homens brancos cristãos que nunca sentiram o peso da opressão. 

Apesar das críticas que nutro ao New York Times por sua postura excessivamente pró-establishment — como a decisão de apoiar as candidaturas de Hillary Clinton e John Kasich nas eleições presidenciais deste ano —, ele merece respeito. É mais antigo do que todos os jornais brasileiros de abrangência nacional e, o mais importante de tudo, nunca fez parte de um grupo que monopoliza a mídia, como é o caso do maior jornal carioca. A mídia oligopolizada do Brasil não pode dar lições de jornalismo a ninguém. Segundo a insuspeita ONG Repórteres Sem Fronteiras,"os meios de comunicação incitaram o público a derrubar a presidenta Dilma". Trata-se de uma mídia partidarizada que não convence mais ninguém de sua imparcialidade. Faria muito bem ao país se, assim como o Times, confessasse sua postura política — no caso de defesa dos interesses da burguesia —, ao invés de espernear toda vez que tem sua postura de militante anti-PT denunciada por veículos como Guardian ou New York Times.

Assim como o Estado de S. Paulo tem o direito de apoiar Aécio Neves, o New York Times não comete nenhum crime ao apoiar Dilma Rousseff, embora não tenha sido isso que ele fez, ao contrário do que sugeriu o incauto Jorge Pontual na GloboNews. O Times apoiou a frágil democracia brasileira e não a Dilma. O editorial dizia: "Esta crise política está minando a fé na saúde da jovem democracia [do Brasil]". O maior jornal dos Estados Unidos diz-se preocupado com a democracia brasileira e a mídia brasileira classifica-o de dilmista. Diz muito sobre a nossa mídia, não? Acho que aquilo que o Times escreveu como alerta para os políticos brasileiros, pode muito bem valer para os veículos de comunicação também: "Eles podem se dar conta em breve que grande parte da ira da população focada na presidente será redirecionada a eles". E que não reclamem se isso acontecer, pois essa ira contra as instituições foi muito bem incitada por eles durante anos a fio. 

Para alguns, defender a democracia é o mesmo que defender
Dilma Rousseff acriticamente (o que o Times não fez).
Isto pode ocorrer porque o brasileiro está insatisfeito com a ordem. E desconheço instituição maior em defesa da manutenção da ordem do que a mídia brasileira. Trata-se de uma mídia que compra briga até com veículos respeitadíssimos da mídia mundial, como o Guardian ou o Times para defender sua visão de mundo. À mídia internacional parece insensato — para não dizer hipócrita — que políticos sob investigação, como Eduardo Cunha, Renan Calheiros e André Moura, julguem uma presidenta sobre a qual não pesa acusação alguma além de uma tecnicalidade fiscal que governadores de todos os partidos praticam. Não adianta o João Roberto Marinho enviar cartinha pro Guardian, este impeachment está tendo sua legitimidade questionada até mesmo por veículos ultra-liberais como a revista Economist. Uma hora a população vai perceber isso e se revoltar contra quem os fez apoiar a troca de pouco por nada. E a culpa não vai ser do Times.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

O golpe à saúde das mulheres

Na última quinta-feira, após muitos meses de articulações, o golpe contra Dilma Rousseff foi finalmente concretizado. Uma das primeiras notícias veiculadas sobre o governo do presidente interino, Michel Temer, é de que se trata do primeiro sem ministras desde 1979. Esta notícia não me surpreendeu nem um pouco. Eu já havia indicado o caráter sexista do golpe de Estado em texto escrito para a United Society, serviço de missão da Igreja da Inglaterra. O que me surpreende, no entanto, é que até hoje a direita brasileira não tenha aberto espaço para as mulheres em suas agremiações partidárias. O recado que passaram para mim na composição do novo gabinete é de que mais da metade do eleitorado brasileiro não importa para eles.

Simone Veil: Na França a direita política não
está necessariamente ligada à religiosa.
Isto me faz recordar a trajetória política de Simone Veil, ministra da saúde da França entre 1974 e 1979 no governo de centro-direita do presidente Valéry Giscard d'Estaing. Ela apresentou ao Parlamento francês um projeto de lei descriminalizando o aborto até 12 semanas após a concepção e até 14 semanas após a última menstruação. O projeto foi aprovado, após ataques de grupos católicos à família da ministra, no dia 17 de janeiro de 1975 e é conhecido, desde então, como "Lei Veil". A política se tornou símbolo da saúde das mulheres e foi eleita para o Parlamento Europeu em 1979, se tornando a primeira presidenta daquele órgão legislativo. Por seus esforços civilizatórios, Simone Veil foi transformada em dama do Império Britânico pela Rainha Elizabeth II em 1998.

No Brasil a direita política parece não sobreviver sem a direita religiosa, com quem forma uma relação de simbiose. Em 2006 a deputada federal fluminense Jandira Feghali foi alvo de intensa campanha apócrifa durante a eleição para o Senado após ter sugerido que o aborto deveria ser tratado pelo viés da saúde pública e não da moral religiosa. Quatro anos mais tarde, Dilma Rousseff foi acusada de ser favorável a "matar bebês" por Mônica Allende, esposa do então candidato a presidente José Serra (mais tarde foi revelado que ela própria, hipócrita, havia abortado no Chile). A tentativa de associar Dilma à legalização do aborto contou até mesmo com a ajuda do Papa Bento XVI, que divulgou mensagem aos brasileiros para que não votassem em candidatos pró-escolha.

Desde que Serra e o PSDB optaram pela aliança com a direita religiosa para derrubar o PT, o discurso irresponsável contra a consolidação dos direitos individuais ganhou força no país. Ano passado o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, conseguiu emplacar um projeto de lei que dificulta o acesso à pílula do dia seguinte em hospitais públicos. Na posse de seu correligionário, Michel Temer, era possível ver o pastor pentecostal Silas Malafaia, maior ativista pró-vida do país, ao lado dos membros do novo governo. Para marcar sua posição no debate, o deputado Jean Wyllys apresentou, em 2015, um projeto de lei despenalizando o aborto. Mesmo com chances mínimas de ser aprovado no Congresso mais conservador da história, o deputado sofreu toda sorte de ataques de grupos religiosos.

Ao invés de escutarmos os profissionais de saúde e as próprias mulheres na hora de escolher o que é melhor para a saúde delas, deixamos Cunha, o cirurgião da propina de Furnas, decidir. Enquanto o "doutor" Cunha (palavra banalizada nos trópicos) decide quem pode ou não tomar a pílula do dia seguinte no Brasil, o projeto de descriminalização do aborto no Reino Unido, no longínquo ano de 1967, foi supervisionado pelo Dr. John Peel, presidente da Faculdade Real de Obstetrícia e Ginecologia e ginecologista pessoal da Rainha Elizabeth II de 1961 a 1973. Ao deixar as mulheres de escanteio em seu gabinete e privilegiar religiosos como Malafaia em sua cerimônia de posse, o governo Temer mostra ao que veio: aumentar o já escandaloso número de mulheres que morrem ao se submeter a abortos insalubres.

Eduardo Cunha, correligionário de Temer, já deu o recado.
Até mesmo o aborto legal — previsto desde 1940 para casos de gestações fruto de estupro e que oferecem risco à vida da mulher — está sob o ataque dos grupos religiosos do Congresso. Isto se dá porque o Brasil não é governado por damas e cavalheiros. E parece se orgulhar disso! Só não sei porque ainda nos damos ao trabalho de fingir que somos civilizados quando estamos na presença de europeus ou americanos do norte. Não adianta ir na página dos jornais gringos reclamar da cobertura desses veículos ao golpe machista a Dilma e às mulheres brasileiras. Eles já sacaram qual é a nossa. Somos hipócritas. Nossa moral só é relaxada durante o Carnaval. No resto do ano varremos nossos problemas para debaixo do tapete. E é exatamente isso que Temer vai fazer com os cadáveres das vítimas de aborto insalubre. O golpe por ele liderado foi orquestrado com grupos da direita religiosa e, por isso mesmo, também será um golpe à saúde das mulheres.

Atualização 1 (18/05/2016 às 05:15): Um dia após a publicação desse artigo o novo ministro da saúde, Ricardo Barros, afirmou que o governo interino não deve se posicionar sobre a questão do aborto sem antes ouvir as igrejas. É um recado claro às mulheres: a saúde delas está submetida à moral cristã num Estado que se diz laico.

Atualização 2 (12/06/2016 às 08:29): A Secretária de Políticas para Mulheres de Michel Temer, a ex-deputada evangélica Fátima Pelaes (PMDB-AP), é contra o aborto até mesmo para gravidezes resultantes de estupro.

Poema: Isto é o Brasil

Andando na selva de concreto
Avisto uma sem-teto
Com ela, ninguém se importa
Sorrio e ela me sorri de volta
No horizonte, prédios bonitos são erguidos
No chão, símbolos de um Estado falido
Seres humanos deitados na própria sujeira
No meu celular, a democracia vira poeira

Sindicatos queimando
Sem-teto agonizando
Do tiro que levou de um milico
Índios amaldiçoando
O governo do pudico
Meu coração bate a mil
Isto é o Brasil

Moro num país tropical abençoado por Deus
Onde seus filhos morrem de frio em noites de breu
No metrô, um celular é roubado
No coletivo, mais um morre esfaqueado
Nisso, a elite comemora o fim da democracia com festança
E o povão não consegue ver futuro nem ter esperança

Mais injustiça, mais indignação, mais repressão
Mais balas saindo das armas dos milicos
Aos Estados Unidos, garantimos nossa submissão
E as mulheres lamentam sua não-representação 
No governo exclusivo dos ministros ricos
Meu coração bate a mil
Isto é o Brasil

Sessenta e quatro, o jornais passaram a recriar
O povo está chocado demais para protestar
Policiais e militantes à paisana nos interrogam
As manifestações culturais eles já calaram
Mas já tivemos sequer cultura alguma
Além do ódio e do preconceito que agora fecundam?

À psicóloga cristã, foi garantido
Homofobia na educação agora é institucionalizada
O processo civilizatório está oficialmente perdido
E a carestia segue louca e descontrolada
Mas não pense em crise, trabalhe!
Esqueça como o Brasil falha
Parabéns, conseguiram seu país de volta
Governem agora sem negros na escolta

Povo queimando
País agonizando
Do golpe que levou de um burrico
Índios amaldiçoando
O governo desse pudico
Meu coração bate a mil
Isto é Brasil

quarta-feira, 11 de maio de 2016

Tentativas de afastar a presidente do Brasil são sexistas


Os ataques sexistas à presidenta Dilma Rousseff começaram durante os protestos antigovernamentais de 2013. Foi a primeira vez em que vi pessoas atacando Dilma por causa de sua condição de mulher. Mas eram protestos esparsos. Só mais recentemente é que os ataques sexistas se tornaram mais orquestrados.

Durante a Copa do Mundo de 2014, no jogo de abertura, sempre que Dilma aparecia no telão, os torcedores brasileiros cantavam "Ei, Dilma, vai tomar no c*" (Não me orgulho em repetir isso, mas as pessoas precisam saber).

Ano passado, os manifestantes anti-Dilma fizeram um adesivo para colocar no buraco de gasolina de seus carros. Ele retratava Dilma com as pernas abertas de forma que seu órgão sexual estava posicionado onde o bocal está. Assim sendo, toda vez que uma pessoa com este adesivo colocava gasolina em seu carro, Dilma seria simbolicamente estuprada.

A "querida" é a chefe das Forças Armadas e está em posição
hierárquica superior à dos deputados.
Mais recentemente, a revista de notícias Istoé fez uma capa sobre as "explosões nervosas de Dilma" — caso clássico de associar uma postura profissional de uma mulher a uma condição mental histérica. Cristina Kirchner, que está passando por seu próprio inferno pessoal na Argentina, usou a capa da revista como exemplo de como a mídia tem se baseado no sexismo para criticar tanto ela quanto Dilma.

Durante a votação do impeachment, deputados seguraram cartazes dizendo "Tchau, querida". "Querida" é a comandante-chefe do Brasil, alguém que é hierarquicamente superior a eles.

Veja, a maior revista de notícias, fez um perfil de Marcela Temer, a esposa bem mais nova do principal opositor de Dilma, Michel Temer, e a elogiou por ser "bela, recatada e do lar". Tudo aquilo que Dilma não é.

Punida por ser mulher

Tenho a impressão de que Dilma não teria sido tão punida por seus erros se ela fosse um homem. Incomoda aos deputados e demais homens ver uma mulher sentada numa cadeira que era um privilégio de homens.

Dilma fala como um homem, age como um homem e não se coloca em seu devido lugar — o que a arquetípica Marcela faz. Ela deu um "mau exemplo" para as mulheres brasileiras ao sugerir que as mulheres são capazes de gerenciar um país.

É interessante notar que 40 por cento das deputadas votaram contra o impeachment, ao passo em que mais de 70 por cento dos deputados votaram a favor. Mas apenas 8 por cento dos deputados são mulheres, embora as mulheres representam 60 por cento do eleitorado.

Se o Brasil tivesse uma representação de gênero mais equânime no Congresso, talvez Dilma não teria sido afastada em primeiro lugar, o que prova que este impeachment também possui uma conotação sexista que muitas pessoas — incluindo as próprias mulheres — parecem não perceber.

Atualização (12/05/2016 às 15:18): Consumada a destituição de Dilma, minhas previsões de que se tratava de um golpe sexista contra a primeira presidenta do Brasil infelizmente confirmaram-se. O governo Temer será o primeiro desde 1979 a não contar com ministra alguma, para a decepção até mesmo de mulheres de direita como Míriam Leitão.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

O suposto resultado de uma eleição nada presumível

A última semana foi agitada para aqueles que acompanham o processo eleitoral nos Estados Unidos. Após uma vitória acachapante na primária republicana de Nova York, onde teve 60% dos votos, o empresário Donald Trump tornou-se matematicamente imbatível por seus opositores — o senador texano Ted Cruz (porta-voz do movimento radical Tea Party) e o governador de Ohio John Kasich (representante da centro-direita). Numa tentativa final de vencer Trump, Cruz anunciou que a ex-CEO da HP Carly Fiorina seria sua companheira de chapa. Apesar disso, Trump venceu a primária de Indiana em 3 de maio, o que levou o senador texano a suspender sua campanha no mesmo dia. Kasich anunciou o fim de sua campanha no dia seguinte, sendo que Trump, o único candidato ainda na disputa pelo lado republicano, já é tratado  pela mídia como o "presumível candidato" do partido.

No meio disso tudo, na última segunda-feira uma pesquisa divulgada pelo Instituto Rasmussen indica que a "presumível candidata" democrata Hillary Clinton estaria dois pontos percentuais atrás de Trump na eleição geral, a ser realizada em 8 de novembro. É verdade que o instituto é conhecido por favorecer os republicanos, tendo previsto a derrota de Barack Obama para Mitt Romney em 2012, mas é também verdade que o favoritismo de Clinton face a Trump vem caindo na média das pesquisas desde março. Era de 11,2% em 23 de março e agora está em 6,5%, segundo o Real Clear Politics. A disputa para Clinton — que não foi tão tranquila quanto ela e os cabeças do Partido Democrata imaginavam que seria na fase primária, quando teve que enfrentar o senador social-democrata Bernie Sanders —, será ainda pior na eleição geral.

Sanders representa a insatisfação dos jovens com o Partido
Democrata, transformado em antro pró-negócios por Clinton.
O FBI investiga Hillary Clinton desde 1992, quando seu marido era candidato à presidência e o New York Times divulgou que nos anos 1970 o então advogado-geral do Arkansas e sua esposa compraram lotes no empreendimento Whitewater e teriam sido beneficiados por transações ilegais realizadas pelo outro sócio do empreendimento, Jim McDougal. Desde 2012, quando era secretária de Estado, Clinton vem sendo acusada de responsabilidade pelo ataque ao consulado americano em Benghazi, na Líbia, que matou o embaixador Chris Stevens e outros três americanos. A ex-secretária testemunhou no Senado em 2015, no que foi considerado uma vitória para ela, mas em seguida descobriu-se que ela usava uma conta de e-mail pessoal enquanto secretária de Estado para se comunicar com seus subordinados e, juntos, eles decidiam quais e-mails arquivar no sistema do governo e quais descartar.

Além disso, há o escândalo Monica Lewinsky, sempre muito apelativo aos eleitores evangélicos (que correspondem a 36% do eleitorado). O fato é que Hillary Clinton é uma das figuras mais polarizadas e polarizantes da política americana. De cada dez americanos, cinco a odeiam e quatro a amam. Desde 8 de abril ela possui mais odiadores do que admiradores, conforme indica o HuffPost Pollster. Mesmo em estados onde ela venceu as primárias, a maioria do eleitorado afirma confiar mais em Bernie Sanders do que nela. Segundo a pesquisa boca-de-urna realizada pela CNN em Nevada, por exemplo, 82% dos eleitores acreditam que Sanders é mais confiável do que Clinton. E ela ganhou com 53% dos votos. Trata-se de uma figura extremamente desgastada, que seus próprios apoiadores têm dificuldades em definir como confiável.

Agora que as chances de Bernie Sanders diminuem  ele precisa ganhar na Califórnia para ter alguma chance de vencer Clinton  o movimento Bernie or bust ("Bernie ou nada", em tradução livre) ganha força. Trata-se de eleitores de Sanders que se recusam a apoiar Clinton numa eleição geral. Preferem escrever o nome dele na cédula (o voto de protesto conhecido como write-in) ou sequer se darem ao trabalho de ir votar, uma vez que a participação em eleições nos Estados Unidos não é obrigatória e se ausentar do processo não acarreta em nenhuma punição legal para os cidadãos. Creio eu que os votos de Sanders irão se dividir da seguinte forma: abstenção, write-in, Jill Stein (candidata do Partido Verde) e Clinton. Só não sei ao certo em quais proporções, pois é fato que Clinton deve tentar atrair os eleitores de Sanders nos próximos meses.

Duvido que a ex-secretária de Estado ofereça ao senador o cargo de companheiro de chapa. Ele é muito anti-establishment para isso e a família Clinton transformou o Partido Democrata num antro de políticos amigos dos negócios. "Conservador na política fiscal e liberal na política social" é o lema dos clintonianos. O cargo deve ser oferecido à senadora Elizabeth Warren, companheira de Sanders na denúncia da ganância predadora de Wall Street, mas duvido que ela aceite renunciar sua ideologia pelo poder. Há inclusive um vídeo circulando nas redes sociais em que Warren denuncia as várias facetas de Clinton. Em 2004 Warren contou a Bill Moyers que conseguiu convencer a então primeira-dama a fazer campanha contra um projeto de lei, patrocinado pelas operadoras de cartão de crédito, que redefinia o conceito de falência. Ao ser eleita senadora, Clinton apoiou o mesmo.

Por casos como este, Clinton não inspira confiança no eleitorado mais jovem, justamente aquele que ganhou força com a entrada de Sanders na disputa. Em 1996, Clinton apoiou a decisão do marido de banir o casamento gay a nível federal, enquanto atualmente se apresenta como defensora dos LGBTs. Sem falar no faux pas horrível de ter afirmado que o casal Reagan foi crucial na tomada de consciência de que algo precisava ser feito para conter a epidemia da AIDS nos Estados Unidos. A eleição de 2016 está sendo tudo menos "presumível", então não é ingenuidade minha imaginar que a pesquisa do Instituto Rasmussen tenha soado um alerta na campanha de Clinton. Odiada pela direita desde a presidência de seu marido e perdendo o apoio da esquerda, a ex-secretária de Estado pode perder uma eleição que estava praticamente ganha para os democratas.

Tanto Trump quanto Clinton compraram a indicação em seus
respectivos partidos.
Não digo que a eleição será fácil para a direita também não. Ao acolherem elementos radicais em seu partido, os republicanos transformaram-se numa caricatura patética de si mesmos. A esta altura do campeonato, não é possível presumir nada a respeito da eleição geral em novembro. Só que deverá ser uma campanha muito suja, com a direita raivosa ressuscitando todos os escândalos em que o casal Clinton se meteu nos últimos 30 anos. Há dois anos parecia que a disputa seria entre Jeb Bush e Hillary Clinton, com a última seguindo para uma vitória inevitável. Hoje ela segue enfraquecida para a eleição geral e sequer é possível afirmar se os Estados Unidos terá uma presidenta. Se por um lado a eleição de Trump será ruim para o mundo, por outro será bom porque significará o fim da submissão da esquerda à política clintoniana.

O Partido Democrata, graças a Sanders e sua nada insignificante base eleitoral, será obrigado a encarar o erro de ter aderido a um sistema que praticamente obriga os filiados a votarem em quem compra o diretório nacional do partido. Tanto Clinton quanto Trump compraram a indicação em seus respectivos partidos. Os eleitores democratas, cansados da velha política que os iguala aos republicanos, não precisarão mais renunciar à ideologia por medo do candidato do outro lado. É disso que se trata: escolher Hillary Clinton para não escolher Donald Trump é votar no menos pior. A esperança prometida — e não-cumprida — por Obama, poderá enfim ter razão de ser. A "terceira via", o "novo trabalhismo", ou seja, a roupagem neoliberal que deram à esquerda será enfim enterrada. Mas isso, é claro, não passa de um suposto resultado de uma eleição nada presumível.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Não podemos ter tempo para o ódio

Na minha terra prometida,
No Oriente Médio,
O que faremos quanto ao terrorismo?
Na minha terra prometida,
No Oriente Médio,
O que faremos quanto ao fanatismo?
Você e eu em paralelo
Você e eu, somos a chave
(Ofra Haza — "Middle East")

Uma de minhas cantoras favoritas é a israelense Ofra Haza. Nascida em 1957 numa periferia de Tel-Aviv, é a mais nova de nove filhos de Yefet e Shoshana Haza, um casal de imigrantes do Iêmen. As oportunidades eram escassas para os jovens do bairro de Hatikvah, negligenciado por sucessivos governos israelenses, sendo o teatro uma das poucas portas de saída da pobreza. Assim sendo, aos doze anos de idade Ofra se juntou a uma trupe de teatro local gerenciada por Bezalel Aloni, que mais tarde se tornaria seu empresário. Em 1979 ela atingiu o sucesso nacional após protagonizar o filme Schlager, sendo a canção "Shir Ha'frecha", que interpretou no  longa-metragem, um de seus primeiros sucessos. Após lançar três álbuns com o Shechunat Hatikvah Workshop Theatre, Haza finalmente se tornou conhecida o suficiente para lançar seu primeiro disco solo aos 22 anos de idade.

Ofra Haza
Em 1983 Ofra derrotou Yardena Arazi num concurso para representar Israel no Festival Eurovisão. Ela interpretou "Chai", canção escrita por Ehud Manor em homenagem aos atletas israelenses mortos por terroristas árabes nas Olimpíadas de 1972 em Munique, mesmo local em que era realizado o festival. A despeito da resistência que enfrentou de parte da própria sociedade israelense, que se incomodava com sua origem operária e seu sotaque típico de judeus oriundos de outros países do Oriente Médio, Ofra conquistou para Israel uma de suas melhores colocações no festival (o segundo lugar). Em 1988, despontou na Europa e na América do Norte com um remix de "Im Nin'alu", canção tradicional dos judeus iemenitas, composta no século XVII pelo rabino Shalom Shabazi. Ofra atingiu o Top 10 de oito países e o álbum Shaday, que continha o hit, vendeu mais de um milhão de cópias em todo o mundo.

No auge de sua carreira, Ofra Haza se apresentava na Europa e nos EUA, apareceu no Tonight Show de Johnny Carson e se tornou a primeira israelense a ser indicada a um Grammy em 1993. No ano seguinte, cantou na cerimônia de entrega do Prêmio Nobel da Paz a Yitzhak Rabin, Shimon Peres e Yasser Arafat. Apesar do sucesso, Ofra estava dividida entre a carreira profissional e o desejo de sua mãe de que ela formasse uma família, conflito este retratado na canção "Ya Ba Ye", que compôs com Aloni e gravou em 1989 no álbum Desert Wind. Em 1997, sucumbiu à pressão familiar e se casou com o empresário Doron Ashkenazi. Entretanto, ela não só não conseguiu engravidar como ainda teria sido infectada com o vírus da AIDS pelo marido. A doença ainda era alvo de forte estigma na sociedade israelense e, envergonhada de sua condição, Ofra optou por não buscar tratamento médico.

A morte da jovem cantora, aos 42 anos de idade, pegou a todos de surpresa em 2000. Afinal de contas, em 1998 ela havia gravado a canção "Deliver Us" para a animação O Príncipe do Egito, o que significava que as portas de Hollywood estavam se abrindo para ela. Sua morte foi destaque na CNN, sendo uma das poucas, se não a única cantora israelense a ser destaque no canal de notícias. A decisão do jornal Ha'aretz de divulgar a causa da morte de Ofra foi polêmica. Tanto Aloni quanto a família da cantora acusaram Ashkenazi de ter transmitido a doença para a esposa. O viúvo, sob intenso escrutínio da mídia, se defendeu dizendo que Ofra contraiu a doença após uma transfusão de sangue num hospital turco. A família Haza e o viúvo disputaram entre si o espólio da cantora até que Ashkenazi morreu de uma overdose de metanfetamina em 2001.

Além do inglês, Ofra Haza gravava tanto em hebraico quanto em árabe, idioma de seus pais. Em 1984 lançou o álbum Yemenite Songs que incluía canções tradicionais dos judeus iemenitas. Apesar de ser bem vendido, foi boicotado por algumas estações de rádio por ser interpretado em árabe. Apesar disso, a canção "Galbi" foi remixada e fez sucesso nas pistas de dança da Inglaterra, abrindo caminho para o sucesso de "Im Nin'alu" na Europa. Algumas das canções de Ofra, como "Eshal" ou aquela que escolhi para introduzir este post, estendem a mão aos palestinos. Algo que pouquíssimos cantores israelenses fazem hoje em dia. Ofra Haza é o retrato de um Estado de Israel que não existe mais — para o bem (como no caso dos costumes que evoluíram) e para o mal (como no aumento da segregação racial). Deve ser por isso que gosto tanto dela.


Em seu último álbum, epônimo, lançado em dezembro de 1997, Ofra canta que não tem tempo para o ódio. O que mais vejo nos dias de hoje são pessoas arranjando tempo para odiar outras pessoas. Por mais atarefadas que estejam, sempre sobra um tempinho na agenda para manifestar seu ódio. E não apenas em Israel, infelizmente. Em relação ao século passado, a islamofobia tomou o espaço do antissemitismo e a homofobia do racismo. Já o preconceito de classe, esse nunca sai de moda enquanto for mais importante entrar nos portões dos ricos do que no de Deus. Mudam os tempos, mudam os personagens, mas não muda a perseguição e nem o ódio. Nesses tempos de cólera em que vivemos, a música de Ofra Haza me traz um pouco de paz e de esperança, tão difíceis de se encontrar ultimamente. Ela me ensina que não podemos ter tempo para o ódio.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

As Olimpíadas da desesperança

Brasil olímpico: do orgulho...
Há quase quatro anos, lembro-me de assistir à festa de encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres e ficar extasiado pelo segmento de oito minutos criado pelos diretores de cinema Cao Hamburger e Daniela Thomas para apresentar ao mundo um pouco do Rio de Janeiro, próxima cidade-sede do evento. Intitulado “Embrace” (Abraço), o segmento começou com o limpador de rua Renato Sorriso, ícone do Carnaval carioca, sambando, passou por uma performance de Marisa Monte vestida da deusa africana das águas Iemanjá e terminou com Pelé vestido com sua icônica camisa número 10 da seleção brasileira. Me enchi de orgulho e esperança de que o mundo finalmente veria o melhor de nós.

Dois anos se passaram e o Brasil se mostrou um país extremamente feio para o mundo. Na abertura da Copa do Mundo de 2014, a presidenta Dilma Rousseff foi mandada tomar no cu por gritos que ecoaram inicialmente da área VIP do Estádio de Itaquera. Mesmo com esse episódio, minha esperança não se esvaiu. A reeleição de Dilma em outubro daquele ano me provou que, embora crescente, a feiura ainda não era majoritária. Até que veio o ano de 2015. Acuada pela mesma elite paulista que a queria ver tomar no cu, Dilma decidiu adotar um programa de austeridade fiscal. Não só não conseguiu agradar a elite como também se distanciou da base trabalhadora que a reelegeu.

Durante todo o ano de 2015, Dilma enfrentou o fantasma do impeachment. Conseguiu afastá-lo graças ao apoio do PMDB do vice-presidente Michel Temer. Em dezembro, no entanto, trocou o ministro da Fazenda pró-austeridade por um nome mais ligado ao PT. Foi quando foi traída por Temer, que recebeu da elite econômica a incumbência de derrubar o governo e colocar a ordem de volta na casa, ou seja, tirar dinheiro de programas sociais para colocar no pagamento dos juros da dívida pública. O imbróglio deveria ter sido resolvido já no início do ano, mas o PT conseguiu barrar seu andamento no Supremo Tribunal Federal após questionar a forma de eleição dos membros da comissão do impeachment.

O Supremo decidiu que a eleição deveria ser aberta. Eleitos os membros da Comissão, a Câmara se apressou para tirar Dilma do poder, o que culminou com a votação do dia 17 de abril, um domingo, quando os deputados votaram a favor de tudo, menos do relatório que condenava Dilma. Agora o circo mudou de picadeiro. Está no Senado onde, após discussões inflamadas, a presidente deverá ser afastada por 180 dias. Enquanto Dilma prepara sua defesa contra o afastamento final, que deve ser referendado por 2/3 dos senadores, Temer deve apresentar seu pacote de maldades à nação: desvinculação das aposentadorias do salário mínimo, fim do reajuste automático do mínimo com base na inflação, entrega do pré-sal para as empresas petrolíferas estrangeiras, etc.

Nesse cenário de perda de direitos é impossível nutrir algum sentimento bom pelas Olimpíadas. No mesmo dia em que a tocha olímpica era acesa em Atenas, uma ponte caiu no Rio de Janeiro e matou duas pessoas. Desde 2010 o estado é governado pelo PMDB e desde 2012 a cidade está nas mãos do mesmo partido, que foi o responsável pela execução das obras olímpicas. Muitas delas, como a despoluição da Baía de Guanabara, ficaram só no papel. Outras, como a construção de locais de competição, foram realizadas às custas da retirada ilegal de moradores de suas casas. Muitos fizeram uma analogia entre a ponte caída e o título do projeto do PMDB para o Brasil: "Uma Ponte para o Futuro".

...à desesperança.
Qualquer clima de orgulho foi morto pelo PMDB. Mostramo-nos para o mundo em Londres como um país que respeita as religiões de origem africana. Temer já recebeu a bênção do pastor Silas Malafaia, que abomina qualquer religião que não é cristã. Mostramo-nos como um país que respeita seus trabalhadores. Porém em 2013 o prefeito carioca ameaçou de demissão 1.200 limpadores de rua em greve por melhores condições de trabalho. Temer, por sua vez, deve apresentar projetos anti-sindicais nas próximas semanas. O orgulho foi destruído para satisfazer aos anseios insaciáveis de uma pequena parcela da população brasileira, que, a despeito de sua fortuna, sempre quer mais. E vai até mesmo derrubar uma presidente honesta e democraticamente eleita se ela estiver atrapalhando seu lucro. Por isso, essas são, pelo menos para mim, as Olimpíadas da desesperança.