terça-feira, 4 de julho de 2017

Sobre mulheres loucas como eu

Há algumas semanas, eu disse que todo filme da Joan Crawford que eu já havia assistido rendia uma boa discussão sobre o papel da mulher na sociedade. Preciso adicionar Manequim (1937) a essa lista. No filme, Crawford interpreta Jessie Cassidy, uma garota de família pobre que mora num cortiço e trabalha numa fábrica de roupas. No começo do filme, o espectador descobre que Jessie é arrimo de família, apesar de ter um irmão apto para o trabalho. Jessie chega em casa um dia e descobre que a mãe está dando o dinheiro que ela ganha na fábrica pro irmão, porque é o dever da mulher cuidar dos homens da casa. Revoltada com a situação, Jessie se recusa a descascar batatas para seu pai ou deixar sua mãe fazê-lo, desafiando a figura do patriarcado em sua casa. Ela pede para o namorado, o pugilista em ascensão Eddie Miller (Alan Curtis), para se casar com ela e tirá-la daquele lugar e daquela situação desesperadora em que ela se encontra.

Só que sua vida não melhora. Mais uma vez, Jessie se vê num lar onde ela é a única que trabalha. O marido perde o contrato e ela começa a trabalhar como corista na Broadway para que eles possam continuar comendo. De vez em quando ele pede uns dólares para a esposa, que cede, iludida de que a situação deles é temporária. Ao invés de trabalhar, Eddie se envolve com a jogatina e chega a ser preso. Aos poucos, as ilusões de Jessie em relação ao marido vão se desfazendo. Certa noite, num jantar na casa de seus pais, Jessie ouve da mãe, sempre servil ao pai e ao irmão dela, o conselho de que ela não deve desperdiçar sua força de vontade por quem não está disposto a fazer o mesmo por ela. A cena poderosa é um lamento de quem viveu a vida inteira por seu marido sem jamais ser reconhecida por isso. Chegando em casa do jantar, Eddie revela que tem um plano para eles melhorarem de vida.

Spencer Tracy e Joan Crawford em foto
promocional do filme Manequim.
Jessie se anima com a possibilidade de que finalmente seu marido iria se dedicar ao sucesso financeiro do casal do mesmo jeito que ela vinha se dedicando. No entanto, o plano dele envolve eles darem um golpe no milionário John Hennessey (Spencer Tracy). Ela se casaria com ele para, mais tarde, pedir o divórcio e sair com metade da fortuna dele. Jessie fica horrorizada com a ideia e percebe que o marido não possui nenhum tipo de ética pessoal e decide pela separação. Ela reergue sua vida trabalhando como modelo – daí o título do filme – e acaba reencontrando e se apaixonando pelo milionário Hennessey, com quem se casa em Paris. Os dois passam por uma longa lua-de-mel na Europa, mas, ao retornarem para os Estados Unidos, o ex-marido de Jessie, agora especialista em falsificação de perfumes, reaparece em sua vida para atormentá-la.

Eddie chantageia Jessie, ameaçando dizer para John que ela ter se casado com ele ainda fazia parte do plano dele. Só que o negócio de John fale devido à agitação sindical de seus empregados e ele perde toda sua fortuna. Para a surpresa de ambos os homens, Jessie permanece ao lado de seu marido atual. Com uma condição: que ele trabalhe também. Ela se recusa a ficar com um marido que se recusa a dividir as contas. Ainda hoje, muitas mulheres se submetem a relacionamentos desse tipo, pois foram encalcada-lhes a noção de que o que importa é ter um homem para dividir a cama. Manequim predata o movimento feminista, mas retrata a personagem da sociedade estadunidense que permitiu seu surgimento: a garota trabalhadora, que cresceria em números durante a Segunda Guerra Mundial, quando as mulheres assumiram os postos de trabalho que os homens, que foram lutar contra o nazismo na Europa, deixaram vagos. Ainda hoje, o filme permanece relevante.

Consigo me identificar, pois estive num relacionamento semelhante ao de Jessie e Eddie. Meu Eddie também achava-se bom demais para trabalhar, também fazia com que eu pagasse as contas, perdia oportunidades que a vida lhe dava e culpava a todos – menos a si mesmo – por seus fracassos. Assim como Jessie, eu me sentia exausto por ter que ser o responsável daquele relacionamento e também me iludia de que ter um ao outro bastava. Mas não basta. Como diz uma das coristas em determinado momento do filme, quando Jessie está se gabando dos gestos românticos de Eddie, "não venha me falar de caras que fazem o mínimo. Quero ouvir sobre caras que fazem o máximo". Não adianta nada trazer rosas e não trazer o almoço. Para mim, o tipo de situação retratada pelo filme configura-se como um relacionamento abusivo, mas não falamos sobre isso porque não é tão evidente.

Assim como Jessie, eu sentia que devia algo a meu ex porque ele me tirou da situação ruim em que eu me encontrava antes de conhecê-lo. E ele sabia disso e reproduzia, num relacionamento homossexual, o mesmo tipo de submissão retratado num filme de oitenta anos atrás. Assim como Eddie, ele alimentava minhas ilusões de que um dia nós dividiríamos as contas porque sabia que assim eu continuaria pagando tudo sozinho. Além disso, eventualmente me fazia eu me sentir mal por não ter fé em sua capacidade de se tornar rico sozinho, como Eddie faz com Jessie numa cena no metrô. E eu era tão grato por ele ter me salvado da escuridão do armário que eu fazia vistas grossas ao verdadeiro caráter dele. Afinal de contas, a gente aprende desde cedo que o amor pode tudo, inclusive mudar as pessoas. Como se um beijo pudesse transferir meus valores morais para ele.

A relevância dos filmes de Joan Crawford me faz pensar que o ataque a sua imagem não seja também um ataque à mulher independente. Sejam verdadeiras ou não as acusações de abuso infantil feitas contra ela, nenhuma outra atriz esteve tão identificada com a garota trabalhadora do que ela que, vindo de uma família pobre ela mesma, oferecia verossimilhança às personagens que interpretava. Assim como elas, Joan veio do nada e chegou ao topo, estando disposta a sacrificar os papéis tradicionais da mulher para isso. Era referência até sua morte. Meses depois, sua filha adotiva denunciou-a como mãe abusiva no livro de memórias Mamãezinha Querida, mais tarde transformado num filme caricaturesco com Faye Dunaway. Cinquenta anos dedicados a inspirar as mulheres foram jogados no lixo em menos de cinco. A mulher que recusa se submeter ao papel que lhe é imposto pela sociedade só pode ser louca e é assim que muitos veem Joan Crawford hoje.