sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Meu dia sem celular

Já estava sem usar o Facebook há um dia quando tomei a decisão de ficar sem meu celular por 24 horas. Minha intenção é ficar sem usar essa rede social até o Natal para provar para mim mesmo que não sou viciado nela. A decisão surgiu na terça-feira à noite. Naquele dia, eu tinha ido ao supermercado com minha mãe e, ao chegar em casa, decidi ocupar minha mente com outras coisas que não fossem as postagens da rede social de Mark Zuckerberg. Preparei comida para mim, fiz um suco de pêssego que ficou delicioso e fui dar uma volta no parque com o Bruce, meu cachorro. Estava ansioso por não usar o Facebook e também porque estava esperando visita, o que gerou em mim uma expectativa que contribuiu para que minha ansiedade explodisse quando ele não veio e nem deu motivo para não ter vindo.

Nem Will & Grace consegue aplacar minha ansiedade.
Quando cheguei em casa, liguei para ele. Ele não me atendia e, na segunda vez que o chamei, pareceu que ele havia rejeitado a chamada. Isso fez minha ansiedade, que já estava acima do normal, atingir um nível altíssimo, já que a última vez que isso acontecera, ele estava com outro (que não é só qualquer "outro", mas sim o ex dele). Tentei não deixar a ansiedade consumir minhas energias e fui assistir Will & Grace, o seriado que eu tanto amava quando era adolescente e que voltou de maneira um tanto quanto inesperada neste ano. Posso não ter tecido comentários no Facebook enquanto assistia — o que é de costume para mim —, mas os fiz no Twitter, que foi a forma genial que eu encontrei de driblar meu autoimposto banimento do Facebook.

Quando o episódio acabou, liguei novamente para ele. Ao todo foram sete ligações não-atendidas em uma hora e meia. Comecei a ficar preocupado, então deixei mensagens para ele em todas as plataformas possíveis: Messenger, Instagram, WhatsApp e até mesmo SMS. Foi então que eu percebi o quão desesperado eu estava sendo. Logo eu, que tanto critico a Adele por correr atrás de homens nas letras de músicas como "Hello". Estava agindo de maneira ainda pior. Mas foi a tecnologia que me deixou assim. A possibilidade de encontrar qualquer pessoa que more em qualquer canto do mundo em qualquer hora do dia me deixa extremamente frustrado quando ela não se concretiza. Isso para não dizer que alimenta demônios antigos que me habitam, como o medo de me entregar e me decepcionar.

Mais tarde, ele me respondeu, dizendo que estava com um amigo. Me senti ainda mais estúpido por ter me desesperado tanto. Foi então que decidi levar o experimento de largar o Facebook um passo adiante: abriria mão do celular como um todo. Li crônicas de três pessoas que, por variados motivos, desistiram de seus aparelhos celulares por um dia inteiro. A conclusão de todas elas foi a mesma: estavam se tornando escravas de seus aparelhos celulares e, por causa disso, perdiam detalhes importantes da vida, como a risada dos filhos no parquinho, detalhes da arquitetura inusitada da cidade onde moram ou as instruções de segurança do metrô, pois estavam sempre com os olhos grudados em suas telas pretas. Estavam tão presas ao mundo virtual de seus celulares que não aproveitavam o mundo real.

Todos os autores relataram sentir o celular vibrando no bolso da perna de suas calças mesmo após começarem o experimento, ou seja, quando o aparelho não estava mais lá. A "vibração fantasma" é um dos sintomas do vício em celular. Felizmente, não o tive. Infelizmente, acho que isso se deve ao fato de que meu celular não vibra ao receber chamadas ou notificações. Já algo que nenhum deles relatou e que eu experimentei foi que, sem usar o celular até pouco antes de dormir, eu sonhei muito mais do que de costume. Sem ser bombardeado por informações — em sua vasta maioria inúteis para mim — até a hora de seu descanso, minha mente teve energia o suficiente para se expressar de maneira bem mais criativa e livre durante o sono.

Isso me fez pensar no tanto de energia que investimos na tecnologia para não investirmos em nós mesmos. E não foi só do campo onírico que o celular estava roubando energia. É um fato conhecido que o mundo externo desvia muito da nossa atenção do mundo interno, ou seja, de nós mesmos. Sem o celular, sem a expectativa de receber chamadas ou mensagens, me dei ao direito de finalmente ficar de luto pela morte do meu cachorro. Sem distrações, finalmente pude pensar nessa perda e em como ainda me sinto culpado pelo fato de ter dado atenção para o cara com o qual estou saindo, que conheço há pouco mais de dois meses, do que para o meu companheiro de dez anos que tantas vezes me inspirou a seguir vivendo. Percebi que não posso viver para o mundo. Tenho que viver para mim mesmo.

Quando eu acordei de manhã, o dia começou como qualquer outra quarta-feira: fui à academia e, sem o celular para me distrair, cheguei lá surpreendentemente cedo. Quando vou para lá, deixo o celular em casa, então não senti a falta dele. Voltei e usei o computador um pouco. Depois, tomei whey protein. Quando voltei para o PC, ele travou. Fui lavar a louça então e, depois, fui almoçar e a caminhada de ida e volta até o restaurante tornou-se muito mais interessante sem meu celular. Só o almoço em si que foi meio difícil de suportar, pois os comerciantes no Brasil têm o hábito irritante de deixar seus televisores ligados na Rede Globo e eu estava pouco me lixando para a prisão do Paulo Maluf ou para a subida da avaliação positiva de Michel Temer de 3% para 6%. Era justamente isso que as pessoas deveriam estar comentando no Facebook, que estou fazendo muito esforço para evitar.

O "modo avião" me salvou.
Cheguei em casa  após uma tentativa frustrada de comprar uma imagem de São Francisco para o altar que estava fazendo para as cinzas do Obama e coloquei o celular na gaveta. Não queria correr o risco de ficar tentado a usá-lo e achava que ele pudesse receber chamadas mesmo estando no "modo avião". Só depois de algumas horas percebi que isso não seria possível. Confesso que um grande desafio foi não usar o aparelho enquanto estava sentado no vaso sanitário. Este é um hábito — pouco higiênico, eu sei — de vários e vários anos, mas não é nada que um papel e uma caneta não resolvam. Inclusive foi assim que iniciei esse registro, antes mesmo dia dia terminar, pois achei importante registrar as sensações que esta experiência estavam me causando conforme ela esta se desenrolando.

Reiniciei o computador e fiquei tentado a pegar o celular para ver quais guias estavam abertas no Google Chrome antes da máquina travar. Primeiro abri o Spotify e, sem espanto algum, constatei que havia perdido toda a minha fila de reprodução. Em seguida, abri o Chrome e, depois de algum esforço mental e com a ajuda do TabCloud, consegui reabrir as guias que estavam abertas quando o PC travou. Passei um tempo no computador e, depois, decidi passar o aspirador de pó na casa. Já estava preparado para iniciar a limpeza quando percebi que se eu fizesse isso não ouviria quando o carteiro viesse entregar a urna com as cinzas do Obama. Decidi, então, começar a montar o quebra-cabeças que eu havia comprado no dia anterior no supermercado.

Quando as quatro da tarde chegou, horário em que geralmente o carteiro passa, comecei a arrumar o espaço que eu tinha reservado para ser o altar do Obama. Imprimi uma foto nossa juntos, onde ele parece sorrir para mim e coloquei seu certificado de cremação ao lado dela. Foi então que decidi rastrear a encomenda no site dos Correios e vi a mensagem "a entrega não pode ser efetuada - carteiro não atendido" pela segunda vez, o que não fez o menor sentido, pois tanto eu quanto minha mãe ficamos de plantão o dia inteiro para receber as cinzas de nosso querido cão. Fiquei com muita raiva daquela situação e voltei a montar o quebra-cabeças, o que me acalmou aos poucos. Confesso que é um jogo viciante e que fiquei em cima dele durante mais tempo do que eu havia planejado.

Em seguida, fui na vendinha com minha mãe. Ao voltar, lanchei e montei mais um pouco o quebra-cabeças. Foi então que trapaceei — de certa forma — no meu desafio. Offline, li a entrevista de um pesquisador italiano a um jornal goiano que foi uma completa perda de tempo. Ele era super otimista em relação à influência das novas tecnologias na sociedade, o que não deixa de ser irônico quando se está justamente tentando passar um dia sem elas por reconhecer seus efeitos nocivos em sua vida. Essa ironia me motivou a continuar meu experimento solitário. Por curiosidade, também abri o Spotify e fiquei bem feliz ao contatar que a lista de reprodução que eu havia perdido no PC ainda estava lá. Alegrou-me saber que da próxima vez em que for usar o celular, será possível ouvir as músicas que eu tinha planejado ouvir na terça-feira.

Depois mandei um e-mail para o crematório para saber qual endereço havia sido colocado no pacote, pois não fazia sentido a confusão dos Correios (depois, descobri que o endereço estava errado e meu nome também) e levei o Bruce para dar uma volta no parque. Enquanto caminhávamos, escutei música no celular, ainda no "modo avião". Hábitos antigos são difíceis de quebrar. Inclusive, foi por este motivo que acabei lendo a tal entrevista antes de sair de casa. Chegando lá, chamei o Bruce de Obama. Foi então que cheguei à conclusão de que não posso usar aqueles que estão chegando em minha vida para preencher o espaço vazio deixado por aqueles que estão partindo. Sempre fiz isso, mas não é justo nem com os que chegam, nem com os que vão e nem comigo mesmo.

Cheguei em casa e descansei um pouco antes de passar o aspirador de pó enquanto ouvia música na rádio. Constatei duas coisas incômodas enquanto eu limpava a casa, que talvez não teria percebido se tivesse limpado com o celular a meu lado — se é que ele me permitiria limpar a casa para começo de conversa. A mancha de saliva que o Obama havia deixado na minha porta pouco antes de sucumbir à morte ainda estava lá (e eu provavelmente briguei com ele por causa disso). A outra coisa foi que o Bruce fez um pouco de cocô no meu tênis enquanto caminhávamos no parque. Também percebi que haviam várias manchas de tinta no chão do meu quarto. Isso deve ter sido da reforma que minha mãe fez na casa e que acabou no final de outubro. Essa foi a primeira faxina que fiz desde então e o espaço estava menos sujo do que eu esperava.

Depois, tomei um banho — o que, em banheiro limpo, é outra vida — e jantei. Ou melhor, fiz uma ceia. Tirei uma foto do meu prato para postar no Instagram, mas não postei. Assisti Friends e comecei a me questionar se os comentários que eu posto nas redes sociais enquanto assisto algum seriado são realmente necessários e, se forem, por que não posso escrevê-los para mim mesmo num caderno (foi o que eu fiz) ao invés de de publicizá-los para o mundo inteiro ver numa rede social. Sem o celular para me distrair, fui dormir antes da uma da madrugada, o que é até cedo para mim. Também sonhei nessa noite, embora não na mesma intensidade da noite anterior.

O meu dia, sem o celular, rendeu bem mais. Embora eu tenha enrolado para fazer o que eu queria fazer, fiz tudo o que eu tinha para fazer. No geral, sou uma pessoa que se distrai e perde o foco muito facilmente e o celular, com suas infinitas possibilidades, potencializa isso a um extremo que torna minha vida insuportável. Sou extremamente ansioso com o celular. Sem ele, tornei-me mais produtivo, introspectivo e focado. Também fui dormir bem mais cedo do que geralmente vou, pois não precisei me libertar do celular para fazer isso. Estou confiante de que a quinta-feira, dia em que vou ligar o celular novamente, será bem mais tranquila do que de costume. Estava com medo, pois esse é um dia em que tradicionalmente uso muito o celular, pois não tenho nada para fazer.

Cansei de me sentir como um personagem de Black Mirror.
Não tenho mais medo. Vou continuar boicotando o Facebook até o Natal, conforme eu havia planejado no último domingo, e descobri que o "modo avião" do celular é algo maravilhoso para aplacar minha ansiedade, que é potencializada ao extremo pela ultra-conectividade do mundo moderno. Pretendo usá-lo com mais frequência, principalmente quando eu estiver lendo, escrevendo ou simplesmente curtindo um seriado no Netflix. Quero que todas as minhas atenções estejam voltadas para o que eu estiver fazendo no mundo real e não para as expectativas que um mundo falso, virtual, gera em mim. Se quarta-feira foi no geral um dia tranquilo, sem muita ansiedade, a quinta-feira tem todas as possibilidades de ser também.

O celular tornou-se minha vida. Viver 24 horas sem ele foi um desafio necessário para mim. Eu precisava tomar minha vida de volta para mim. Cansei de me sentir como um personagem da realidade distópica de Black Mirror, para quem não resta saída a não ser aceitar ser oprimido pela tecnologia. Foi por isso que me propus esse desafio. O professor italiano que me desculpe, mas se é assim que os avanços da tecnologia me fazem sentir, não tenho motivos para percebê-los como a saída que nos levará a um futuro utópico. Concordo com o ex-vice-presidente do Facebook, para quem esta rede social está destruindo o tecido social. E vou além: a tecnologia está destruindo nossa própria humanidade, deixando-nos entorpecidos demais para vivermos nossas próprias vidas. Prefiro não viver confinado a esse espelho preto. Quero recuperar a alegria de viver.


P.S.: Na quinta-feira, acabei por não usar o celular também. Acordei um pouco tarde e fiquei a tarde inteira no Centro de Distribuição dos Correios tentando pegar a urna com as cinzas do Obama. Depois, fui no Bapi com minha mãe. Chegando em casa, montei o quebra-cabeças um pouco mais e, depois, caminhei com o Bruce no parque. Em seguida, fiz um pequeno ritual para colocar as cinzas do Obama em seu altar e publiquei este texto. Foi só então que retirei o celular do "modo avião". Vi suas centenas de notificações, mas decidi não dar atenção para elas. Não agora que eu sei que isso mais atrapalha do que ajuda minha ansiedade. Também percebi que é falsa a premissa de que não tenho nada para fazer. Essa é uma desculpa que dou para continuar viciado no celular. Me recuso a viver para mim para viver para esta tecnologia e isso não pode continuar mais.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Obama (4/11/2007—3/12/2017)

É difícil escrever sobre alguém que você perdeu. Não quero que meu luto vire motivo para "curtidas" numa rede social. Mas também não quero que essa morte passe em branco. Eu vi uma alma sair de um corpo e isso me marcou muito. Vi como a vida é breve e frágil e as coisas mesquinhas deste mundo — e de mim — deixaram de fazer sentido. Num momento a vida está lá e, no outro, não está mais. É algo muito precioso para gastarmos-na com coisas banais. E também para passar em branco.

Tudo começou em agosto, quando ele passou mal e teve de ser internado por uma semana. Vivi dias de angústia e esperança durante todo o momento em que ele esteve no hospital. Mas foi quando descobri quem são meus amigos de verdade. Quando ele voltou para casa, já não era mais o mesmo. Parece que parte de sua alegria havia ficado no hospital. Queriam operá-lo assim que foi diagnosticado com doença do pericárdio. Não deixei. Estava velho demais e não queria que ele morresse numa maca.

Apesar da dor que sentiu nos momentos finais, ele não gemia ou chorava. Sempre foi forte, ao mesmo tempo em que era meigo e doce. Nunca foi de reclamar. Há um mês, fez dez anos. Uma década juntos é tempo pra caramba. E, várias vezes, eu não soube aproveitar esse breve tempo que tivemos para ficarmos juntos. Tomei-o por garantido. Achei que ele sempre estaria me esperando quando eu chegasse em casa. Fui um tolo e eu espero que ele me perdoe por isso, onde quer que ele esteja agora.

Quando alguém morre, é da natureza humana ficar pensando "e se...?". Penso direto nisso. E se eu tivesse aceitado o risco de operá-lo e ele vivesse mais alguns anos? E se eu tivesse levado-o ao hospital antes? Até porque comecei a perceber que ele estava agindo de maneira estranha uma semana antes dele falecer. Encontrei-me, então, numa encruzilhada: levava-o ao hospital para dar-lhe uma sobrevida horrível ou deixava-o descansar em paz? Escolhi a última opção e ainda me questiono se agi certo.

Obama (*4 de novembro de 2007 ✝3 de dezembro de 2017).
A minha escolha de Sofia não foi nada fácil, principalmente quando ele me olhava com um olhar que mesclava um pedido de socorro com uma despedida. Eu não suportava aquele olhar. Como as coisas teriam sido bem mais fáceis se ele pudesse falar e dizer para mim o que ele queria que eu fizesse, como esperava que eu agisse em relação a ele. Mas decidi que se ele piorasse ao ponto de não conseguir mais andar, como aconteceu em agosto, levaria-o ao hospital.

Não poderia ter escolhido parâmetro pior, pois ele andou até o fim. Quando caiu no chão foi para perder a consciência e morrer. A médica nos explicou que, como o coração dele estava expandido e pressionando os demais órgãos da caixa torácica, deitar traria-lhe muita dor. Mas ele nunca reclamou de dor alguma! Só decidi levá-lo ao hospital porque ele começou a salivar muito, estava febril e parou de comer.

Não sei se o estresse de tirá-lo daqui de casa foi demais para seu coração ou se ele realmente não aguentaria muito mais tempo, mas só sei que ele morreu assim que chegou no hospital. Uma das últimas memórias que tenho dele foi de quando abri o porta-malas e ele fez um esforço enorme para entrar lá dentro, como se soubesse que a ajuda que tanto havia nos pedido com seu olhar nos dias anteriores finalmente viria. Isso cortou meu coração e não parei de pensar que fiz a escolha errada.

Mas a ajuda estaria vindo e ele ficaria bem. Pelo menos era o que eu achava. Eu não acreditei, até o último segundo de sua vida, que ele iria me deixar para sempre. Meu cachorro se foi e levou uma parte de mim com ele. Meu peito está oco. Não deixa de ser engraçado que quem tinha sido nomeado em homenagem ao cara que supostamente traria a esperança de volta para os Estados Unidos foi-se justamente agora, em tempos tão desesperançosos.

Me desculpa, Obama, por não ter sido tão presente em sua breve vida como eu gostaria de ter sido. Enfrentei muitos demônios pessoais nessa última década — faculdade, primeiras viagens pro exterior, morte do meu avô, saída do armário, casamento, depressão, outra faculdade, um golpe de Estado que acabou com meu psicológico, outro namoro, uma oportunidade de emprego frustrada em Brasília, separação dos meus pais, distensão no pé, mini-amores e amizades frustradas, etc. 

Mas não deixe de pensar, por um segundo, que eu não te amei. Você esteve lá durante tudo isso e muito mais. Muitas vezes eu achava que o que eu estava vivendo era demais para mim e você me dava motivos para viver. Agora você morreu e eu morri um pouco com você. Não consigo pensar que você não estará mais aqui conforme vivo novas experiências. É estranho e assustador pensar nisso. Mas pelo menos você estava aqui quando essa experiência linda e nova que estou vivendo no momento começou.

Obrigado, Obama. Por vezes, questionei o nome que eu havia te dado, mas a verdade é que eu não poderia ter escolhido um nome melhor para você, pois em 2007 eu achava que o Obama era uma esperança e você de fato me dava esperança para viver. Sempre que eu estava triste, eu te procurava e o seu carinho me dava forças o suficiente para querer seguir em frente. Você me amava sem exigir nada em troca e isso é simplesmente lindo. Você foi mais do que um cachorro, você foi um amigo e eu sempre irei te amar.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

O complexo de Gastão na comunidade gay

Ontem eu estava com uma insônia do cão causada por uma crise de ansiedade, então fui ler sobre A Bela e a Fera (2017), filme que eu havia assistido no cinema algumas horas antes. Num dos artigos que li descobri que as canções do filme original, a animação lançada em novembro de 1991, representavam uma metáfora para a epidemia da AIDS, que até 1991 havia matado cerca de 60 mil pessoas apenas nos EUA desde a descoberta do vírus causador da doença dez anos antes. As canções foram escritas por Howard Ashman, que morreu pouco antes da estreia do filme devido a complicações de saúde causadas pelo HIV, vírus até então indetectável por qualquer tipo de exame laboratorial.

É bastante óbvia de que a maldição que acomete o príncipe — jogando-lhe no ostracismo, afastando-lhe do convívio social e desgraçando também as vidas daqueles que cuidavam dele — é uma metáfora para a AIDS. A Fera, assim como um portador de HIV do início dos anos 1990, vive enclausurada, duvida da capacidade de ser amada incondicionalmente por quem quer que seja e luta contra o tempo para que um milagre a salve daquela maldição. Chamou-me mais atenção, no entanto, a relação entre a canção "Gaston", interpretada por LeFou (cuja versão de 2017 é o primeiro personagem gay de um filme da Disney) no bar, e a epidemia, muito menos óbvia.

Gastão.
Trata-se de uma canção altamente homoerótica que, na versão de 2017, com atores de verdade, tornou-se ainda mais provocativa. Ela exalta a força, a virilidade e a masculinidade do vilão, que deseja se casar com a Bela a qualquer custo. Mas o que isso tem a ver com a AIDS? Pois bem. Durante a epidemia da doença, os homens gays escondiam um de seus sintomas, a perda de peso, através da musculação excessiva. Como já havia dito, o HIV não era detectável em exames laboratoriais, então quem suspeitava que possuía a doença, para evitar um diagnóstico que lhe traria a mesma ruína da Fera, escondia os sintomas o máximo possível dos médicos e da sociedade em geral através da prática excessiva de atividades físicas.

A imagem que se tinha dos portadores do HIV na mídia era aquela de pessoas definhando na cama, emagrecendo até a morte. Como estratégia de sobrevivência num meio que já lhes era hostil antes mesmo do aparecimento da doença — inicialmente chamada pela comunidade médica de Deficiência Imunológica Relacionada aos Gays (GRID, na sigla em inglês) —, os homossexuais, mesmo aqueles que já haviam sido infectados, começaram a encher as academias para provar que eram sadios e que a doença atingia apenas uma pequena parte de sua comunidade. Essa é uma das teorias que explicam a ditadura do corpo musculoso ainda hoje vigente na comunidade gay.

É possível que Ashman exaltasse os músculos de Gastão porque era isso que ele desejava para si: um corpo que negasse a doença que lhe estigmatizava perante os olhos da sociedade. Creio, no entanto, que a canção, dado o contexto maior do filme, seja uma denúncia aos gays do tipo Gastão. Ela apresenta as características de um vilão, o que num desenho infantil sempre significa um modelo de vida a não ser seguido. Ao mesmo tempo em que exalta o corpo musculoso de Gastão, o letrista de A Bela e a Fera queria que ele não fosse seguido como exemplo pelas crianças que assistiriam ao desenho. Não é isso que deveria fazer alguém tornar-se aceito pela sociedade.

No contexto maior do filme, Gastão seria o gay saudável aos olhos da sociedade, que ataca o homossexual "amaldiçoado" para satisfazer uma multidão que canta "não gostamos do que não entendemos". O esforço de Gastão para matar a Fera e ser bem visto pelos habitantes de seu vilarejo equivale aos esforços dos gays musculosos em invisibilizar os gays magros — vistos como portadores de HIV — e conquistarem o respeito da sociedade ao se afastarem do estigma da "doença dos gays". Esta minha leitura é reforçada pela versão de 2017, pois há uma cena em que LeFou abandona o parceiro ao reconhecer que ele é o verdadeiro monstro e não a Fera.

Ainda hoje a comunidade gay reproduz a ditadura do corpo musculoso, o que não faz o menor sentido, visto que há toda uma geração de homossexuais cuja vida sexual iniciou-se quando a epidemia da AIDS já estava sob controle. Embora ainda exista a associação entre magreza e HIV tanto dentro da comunidade LGBT quanto na sociedade em geral, agora os corpos musculosos simbolizam, para os homens gays, a reconquista da virilidade que eles sentem que perdem quando saem do armário. É como se seus músculos servissem para provar para a sociedade não só que eles não têm AIDS como também que ainda são homens.

Estar satisfeito com seu próprio corpo é algo maravilhoso e se as pessoas sentem que atingem isso através da musculação, fico feliz por elas. O problema é que ainda persiste a estigmatização dos gays magros, mesmo com os estudiosos afirmando que nossa comunidade vive na era pós-AIDS. Isso ocorre porque nossa sociedade é heteronormativa e os gays dão mais valor ao que os héteros pensam deles e, assim, buscam parceiros que aparentar ter a virilidade dos homens heterossexuais. Mesmo que nós, magros, sejamos tão sadios quanto os musculosos, parte da nossa comunidade ainda está sob efeito do complexo de Gastão e continua a nos tratar como inferiores. Espero que isso não se torne um "conto tão antigo como o tempo".

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Calem a boca, brancos!

De todas as asneiras que eu li nesse dia da consciência negra, a maior veio da Ana Paula do Volêi, que abdicou da aposentadoria como uma das melhores jogadoras do país para virar animadora de torcida do golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff no Twitter. Segundo ela, os negros não devem honrar a memória de Zumbi dos Palmares. É isso mesmo: uma pessoa branca, completamente alheia ao que significa ser negro no Brasil, quer dizer aos negros quem eles devem ter como herói de sua libertação. E o ídolo proposto por ela aos negros brasileiros sequer é brasileiro.

Crianças africanas libertadas de um navio negreiro em 1868.
Como a escravidão já havia sido abolida nos EUA, elas
provavelmente estavam vindo para o Brasil.
O líder quilombola Zumbi dos Palmares (1655–1695) pode até ter sido o monstro estuprador de mulheres e escravizador de pessoas, como faz crer uma direita iletrada que aprende história com Leandro Narloch, que se quer é historiador. É até provável que ele não buscasse a libertação de todos os negros e sim apenas reproduzir sua sociedade africana — que também mantinha relações de escravidão — no território liberto de Palmares, no atual estado de Alagoas. Mas é praticamente impossível que Zumbi tivesse cometido as mesmas atrocidades que qualquer homem branco de seu tempo.

A crueldade já começava na África, durante a captura dos escravos. Os negros eram tirados do convívio de suas famílias e perdiam filhos, cônjuges, pais, irmãos, tios, primos, avós. Eles eram acorrentados pelo pé e enfiados nos porões escuros de navios onde amontoavam-se até 600 pessoas num espaço de 300–360 metros quadrados em média. Sem ventilação, a temperatura dentro dos navios negreiros podiam atingir os 50°C, o que propiciava o surgimento de doenças como disenteria e escorbuto. Dos vinte milhões de africanos que foram colocados nesses navios, três milhões jamais chegariam ao continente americano.

Ser transportado como carne a ser exportada era apenas o começo do martírio dos negros. Quando chegavam no litoral brasileiro, eram vendidos em mercados de escravos, como o Cais de Valongo, no Rio de Janeiro, e marcados a ferro quente para indicar a quem pertenciam. Este procedimento causava infecções que muitas vezes levava à morte dos escravos. Nas fazendas, as torturas eram ainda mais intensas e sádicas. O negro — constantemente vigiado e punido pelos feitores — deveria aceitar a escravidão caso não quisesse morrer no açoite.

A condição do negro de membro subalterno da sociedade brasileira era reforçada até nos pequenos aspectos. Ele era obrigado a mudar seus costumes e assimilar e venerar o Deus dos brancos 
— que, embora tivesse surgido no Oriente Médio, foi embranquecido pela Igreja Católica, que fazia vistas grossas para o tráfico negreiro — e açoitado se não o fizesse. Foi assim que surgiu o sincretismo religioso que uniu o culto aos orixás aos santos católicos, ainda hoje forte em regiões litorâneas do país, apesar da forte investida contra das igrejas evangélicas.

O negro que se recusasse a ser inferiorizado pelos brancos, para os quais era obrigado a trabalhar de graça, era colocado no tronco (nas fazendas) ou no pelourinho (nas cidades) e espancado com chicotes, varas ou barras de ferro. Os outros negros eram forçados a assistir o que acontecia com quem não se dobrasse à escravidão. Após a sessão de espancamento, jogava-se sal sobre as feridas do escravo "insubordinado" para que elas não cicatrizassem e ele e os demais pudessem sempre ver qual era o preço da insubmissão. Ele era mantido preso, servindo de "exemplo" até que o senhor de engenho tivesse misericórdia dele.

Segundo os brancos, os negros deveriam receber os três Ps: pano, pão e porrada. Muitos, devido ao excesso de tortura, eram acometidos pelo banzo, um sentimento de melancolia que levavam-nos ao suicídio, comumente praticado por greve de fome ou geofagia (ingestão de terra). Muitos acreditavam que a África esperava-lhes após a morte. O suicídio entre escravos era duas ou três vezes maior do que entre os homens livres. Também mais comum entre a população negra do que a branca era a prática de aborto e infanticídio. As mães negras preferiam ver seus filhos mortos do que passando pela mesma privação de liberdade pela qual elas passavam.

Augusto Gomes Leal com sua ama-de-leite
 Monica
(1860). Foto de João Ferreira Villela.
Segundo o historiador Luiz Felipe de Alencastro,
"o Brasil inteiro cabe nessa foto".
Os brancos não tinham mais misericórdia delas por elas serem mulheres. As negras eram frequentemente estupradas pelos senhores. Daí surge o nosso povo mestiço: da violência sexual contra as negras. Como muito bem defendem as feministas, o estupro não tem a ver com sexo e sim com poder e hoje o Brasil é um país mestiço porque os brancos violavam o corpo das negras para reafirmar seu poder sobre os escravos. Não bastasse o estupro das mulheres dos negros, os senhores de engenho ainda colocavam cintos de castidade neles, para que eles reproduzissem quando esses quisessem.

A tortura da mulher negra não parava por aí. Elas eram atacadas até em sua maternidade. Quando nascia uma criança na casa-grande, pegava-se uma negra da senzala que estivesse amamentando para servir de ama-de-leite para o filho do senhor e da senhora de engenho. Esta não podia ocupar-se de uma tarefa tão banal quanto amamentar seu próprio filho. A criança negra desmamada era privada do leite e do convívio de sua mãe, o que muitas vezes resultava em sua morte. Em alguns registros, é perceptível a saudade do filho no olhar duro das amas-de-leite para a câmera.

A vida na senzala não era uma colônia de férias, embora existam empresários criando colônia de férias inspirada na experiência brutal dos negros que foram escravizados no Brasil. Isso eu falo sem muita propriedade sobre o assunto. Sei pouco sobre a história colonial desta nação, mas penso que todo brasileiro — negro ou não — deveria saber e se envergonhar do que esse país fazia com os negros até 129 anos atrás. Está tudo documentado, assim como a presença da escravidão nos quilombos que, segundo alguns autores, em pouco se assemelhava à escravidão de negros por brancos.

Ao invés de acreditar em quem de fato pesquisa a história do Brasil, a maioria das pessoas preferem acreditar em quem tem pouca ou nenhuma propriedade para falar sobre esse assunto — graças à mídia, em grande medida, que abre espaço para figuras como a aposentada do vôlei falar sobre um tema que não lhe diz o mínimo respeito. Assim sendo, não só não conhecemos o martírio dos negros no Brasil como ainda não nos envergonhamos por ele. É o caso da minha avó que, aos noventa anos de idade, escreveu um livro onde conta que sua avó materna ganhou escravos de presente de casamento sem nenhum pudor.

Quem somos nós — brancos que não conhecemos nossa própria história — para dizer aos negros quem eles têm que ter como símbolo de luta? Calem a boca, brancos! Quem tem propriedade para dizer quem representa a luta pela libertação dos negros são os negros. Ou, no mínimo, pessoas que estudam a história afro-brasileira e não uma ex-jogadora de vôlei ou um ex-jornalista da desonesta revista Veja que decidiu escrever "história pop" para entrar na lista dos mais vendidos daquela publicação. Resta a nós, pessoas pouco entendidas sobre o assunto, reconhecermos nossa ignorância e calarmos nossas bocas — que só não passaram fome devido aos privilégios que este país historicamente dá a seus cidadãos de pele branca — e respeitar o povo negro, sua história, sua luta e seus ícones.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Por que as mulheres não são donas de sua narrativa?

Ontem assisti à comédia romântica The Bride Wore Red — cujo título literalmente significa "A noiva vestia vermelho", mas que foi toscamente traduzido para "Felicidade de mentira" —, de 1937, estrelada pelo então casal Joan Crawford e Franchot Tone, cuja união teria sido a origem da rixa da atriz com Bette Davis. Baseada em obra do romancista húngaro Ferenc Molnár, o filme conta a história de Anni, uma cantora de cabaré de Triste, na Itália, que recebe a oportunidade de sua vida: passar duas semanas num hotel de luxo nos Alpes com tudo pago. Chegando lá, ela chama a atenção de dois homens: o carteiro Julio (Tone) e o aristocrata Rudi (Robert Young), noivo de outra mulher. Anni precisa, então, decidir se vai viver o amor de sua vida ou continuar naquele universo de riqueza e luxo em que começou a viver. Seria apenas mais um filme do gênero, não fosse por um detalhe marcante que diferencia-o dos demais: foi dirigido por uma mulher. Isso torna-o muito mais sensível do que qualquer outra comédia romântica que eu já assisti.

Um filme feito para mulheres, dirigido e escrito por mulheres, é algo que foge completamente do usual. Como diz Anni, no começo do filme, as mulheres que ela vê no cinema são "simples, burras e artificiais". Não é o caso das mulheres de The Bride Wore Red. Elas são naturais. Você vê aquelas mulheres interagindo umas com as outras na tela e imagina-as conversando daquela maneira na vida real. Sua malícia, sensibilidade, ousadia e fragilidade são palpáveis. Infelizmente, isso ainda é uma raridade hoje em dia. Em pleno século XXI, obras supostamente feitas para mulheres são dirigidas e escritas por homens. O exemplo mais notório disso é o seriado e os filmes da franquia Sex and the City, que, embora baseados na obra da autora Candance Bushnell, foram idealizados para as telas por um homem: Michael Patrick King. Nem mesmo nessas obras, que se propunham a revolucionar as discussões sobre a sexualidade feminina, as mulheres tiveram o direito de serem donas de sua própria narrativa.

Joan Crawford sendo dirigida por Dorothy Arzner.
The Bride Wore Red foi pouco usual para sua época por unir algumas das mulheres mais notórias da indústria cinematográfica numa única obra. O filme foi co-escrito por Tess Slesinger, editado por Adrienne Fazan e dirigido por Dorothy Arzner. Esta foi a única cineasta mulher dos anos 1930, o que fica bem claro no filme, que mostra situações que não eram apresentadas sob a ótica feminina em outras obras lançadas na mesma época. Reza a lenda que Crawford estava ansiosa para trabalhar nessa produção, pois esta seria sua primeira vez sendo dirigida por uma mulher. No entanto, as duas teriam se desentendido a tal ponto que se comunicavam por bilhetes no final das filmagens. Elas possuíam visões artísticas muito diferentes. A estrela, que estava declinando em popularidade, precisava de um sucesso e não estava disposta a ousar; a diretora, como evidenciado pela cena em que Anni critica a representação das mulheres no cinema, desejava fazer um filme mais autoral.

Crawford estava certa. The Bride Wore Red foi um fiasco. Foi este um dos filmes responsáveis por colocá-la na lista de "venenos de bilheteria", compilada pela Associação dos Donos de Salas de Cinema dos EUA em 1938 (ao lado de Manequim). Ela eventualmente recuperou a fama ao reinventar-se como atriz dramática na década de 1940, trocando a MGM pela Warner Bros. Retornou à lista das estrelas mais rentáveis do cinema em 1947, ou seja, exatamente dez anos após ter saído da mesma. Arzner, por sua vez, não teve a mesma sorte e jamais se recuperou do fracasso deste filme. Dirigiu mais dois filmes antes de se aposentar de Hollywood para sempre. O musical A Vida é uma Dança (1940) teve uma recepção morna, enquanto o filme de guerra Crepúsculo Sangrento (1943), concluído por Charles Vidor após Arzner contrair pneumonia, foi mal recebido pela crítica e pelo público. Nos anos 1950, Crawford, então casada com o presidente da Pepsi, sugeriu o nome dela para a direção de comerciais de produtos da empresa.

Foi um fim melancólico para quem dirigiu o terceiro filme mais lucrativo de 1929 — o drama Garotas na Farra, primeiro filme falado da "it girl" Clara Bow. As obras da diretora traziam mulheres fortes, livres e independentes como ela mesma, que desafiou as convenções de sua época e manteve um relacionamento com a coreógrafa Marion Morgan durante 40 anos. Segundo a autora feminista Gwendolyn Foster, Garotas na Farra "articula meticulosamente o que acontece com as mulheres quando elas se afastam dos confinamentos de um ambiente seguro frequentado apenas por garotas". Já para a Livraria do Congresso, em A Vida é uma Dança "as dançarinas, interpretadas por Maureen O'Hara e Lucille Ball, tentam preservar suas integridades feministas enquanto lutam por seu lugar no holofote". É interessante notar a escolha da palavra "feminista" para descrever personagens criadas quando este termo ainda era marginal. De maneira semelhante, Garotas na Farra apresenta uma situação de sororidade antes mesmo deste conceito ter surgido.

Até quando narrativas femininas serão escritas por homens?
Talvez The Bride Wore Red tenha sido mal recebido porque Dorothy Arzner era muito evoluída para sua época. Em 1937 as pessoas não queriam ver uma mulher não só recusando um casamento por dinheiro como repreendendo o pretendente por trocar a noiva por ela. Novamente, a mensagem da sororidade se faz presente na obra da diretora, creditada por lançar as carreiras de atrizes como Katharine Hepburn, Sylvia Sidney, Lucille Ball e Rosalind Russell (em Mulher Sem Alma, mais tarde refilmado com Crawford como A Dominadora). Talvez se The Bride Wore Red tivesse se saído melhor nas bilheterias, Arzner teria continuado dirigindo, inspiraria outras mulheres e hoje teríamos um amplo catálogo de filmes dirigidos e escritos por mulheres. Talvez o universo delas não seria tão mal representado e mal interpretado por cineastas homens em obras como Sex and the City e demais comédias românticas que apresentam-nas como estereótipos unidimensionais sem muita profundidade. Não seriam "simples, burras e artificiais".

A história de Dorothy Arzner é a própria história de como é árduo o caminho das mulheres em nossa sociedade patriarcal e machista. Ao contrário de um homem, uma mulher, para se provar digna de continuar no emprego, seja ele em Hollywood ou na presidência da República, não precisa ser somente boa naquilo que faz — precisa ser excelente. Nunca saberemos como seria a indústria do entretenimento hoje caso Arzner tivesse sido mais bem sucedida. Apesar disso, sua filmografia se destaca como um exemplo de resistência numa indústria ainda hoje dominada por homens. Como disse Hepburn num telegrama enviado à diretora em 1975: "Não é incrível que você teve uma carreira tão brilhante numa época em que você não tinha sequer o direito de ter uma carreira?". Os filmes de Arzner evidenciam como o universo feminino retrata a si mesmo de maneira mais complexa, inteligente e natural do que o masculino. Não faz mais sentido negar às mulheres que sejam donas de sua narrativa. Talvez isso fosse algo avançado demais para 1937, mas não creio que seja para 2017.

sábado, 9 de setembro de 2017

Como a esquerda criou o "Bolsomito"

O deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) era um zé ninguém até aparecer no CQC em 2011. O programa humorístico da Rede Bandeirantes, exibido entre 2008 e 2015, gostava de abrir espaço para figuras bizarras da vida nacional, em especial do baixo clero da Câmara dos Deputados, como uma forma de aumentar sua audiência, sobretudo no Twitter. Emissoras como Record, SBT e Bandeirantes, que lutam entre si pelo segundo lugar nos índices de audiência, passaram a usar os trending topics daquele rede social como forma de atrair investimentos, mostrando para os anunciantes que possuíam um público mais jovem e antenado com as novas tecnologias do que a dominante Rede Globo. O IBOPE já era considerado um mecanismo defasado de medição de audiência naquela época.

A mídia tradicional precisava de um fascista para quando
estivesse precisando aumentar sua audiência.
A estratégia dos produtores do programa funcionou. Assim que o quadro em que o deputado respondia às perguntas da cantora Preta Gil foi ao ar, o CQC entrou para os trending topics. As barbaridades racistas ditas pelo até então desconhecido deputado foram repercutidas ad nauseum nas redes sociais por militantes de esquerda revoltados com suas palavras. São pessoas que acham que sua missão — na vida e nas redes — é combater as injustiças. Só que nessa luta incansável e sem tréguas a favor da justiça social, acabam dando espaço para as ideias que dizem combater. Depois de sua aparição no programa, amplificada pelos tuítes e retuítes de quem se propunha a denunciá-lo, Bolsonaro finalmente conseguiu o palanque que tanto desejava para suas ideias reacionárias.

Preciso fazer aqui um mea culpa. Na época, eu também ajudar a propagandear essa figura nefasta da política brasileira acreditando estar combatendo-o. Durante o tempo em que usava o Twitter, me tornei um extremista da justiça social, ao ponto em que não conseguia mais assistir a um episódio de um seriado qualquer sem problematizá-lo. O exemplo mais emblemático disso era quando eu assistia à comédia The Big Bang Theory. Para mim, o personagem Raj era utilizado pelos roteiristas do programa como mecanismo de afirmação da supremacia dos EUA sobre os países do terceiro mundo. Militantes de direita, percebendo o extremismo de certas problematizações, cunharam o termo pejorativo social justice warriors (guerreiros da justiça social) para se referir à esquerda, ainda em 2011.

Logo o Twitter virou um campo de batalha entre extremistas da justiça social e militantes que lutam contra a ditadura do politicamente correto. Em comum entre ambos está a falta de bom senso. E, num espaço onde a expressão é limitada a 140 caracteres, os xingamentos tornaram-se a lei. O debate político infantilizou-se desde então, como evidenciado pela recente troca de insultos entre o jornalista americano radicado no Brasil Glenn Greenwald e o deputado Bolsonaro. Longe de mim defender Bolsonaro, mas Greenwald não deveria ter esperado outra resposta do deputado ao chamá-lo de "cretino". A impressão que tive, ao ler a troca de mensagens entre os dois, foi a de que se tratavam de duas crianças brigando no pátio de uma escola:
— cretino!
— viado!

Greenwald também deve acreditar, como eu acreditava, que atacar o deputado, mesmo quando ele está quieto, é a menor maneira de derrotá-lo. Só que isso tem se provado falso. Depois que ele ganhou notoriedade ao aparecer no CQC e nas timelines de milhares de pessoas de esquerda revoltadas com suas ideias, militantes até então ligados à direita tradicional perceberam que ele incomodava muito mais a esquerda do que os políticos do DEM e do PSDB e elegeram-no como seu novo líder. Só não perceberam — ou fingiram não perceber — que isso se deve ao fato de que ele é fascista, o que deveria ser repudiado por todo o espectro político. Assim sendo, Bolsonaro se tornou o deputado mais votado em seu estado, saindo de pouco mais de 120 mil votos em 2010 para quase 470 mil em 2014. Hoje, encontra-se em segundo lugar nas pesquisas para a eleição presidencial de 2018.

Bolsonaro lidera as pesquisas em cinco estados e está em
situação de empate técnico com Lula em Goiás.
Faltou malícia, para mim e para os demais militantes de esquerda, em 2011, para perceber que a intenção da Bandeirantes era justamente a de criar um ícone fascista que eles pudessem explorar sempre que seus programas estivessem com problemas de audiência. A falta de bom senso dos empresários do setor e de regulamentação da mídia criou Jair Bolsonaro como um candidato viável para o futuro de uma nação decepcionada com seu sistema político. Desde que ele emergiu no imaginário nacional como solução para todos os problemas do Brasil, o baixo clero da Câmara cresceu, tomou o poder com Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e promoveu um golpe de Estado para conter a vontade soberana da nação de continuar no caminho da tímida inclusão social dos governos do PT.

A mídia empoderou o lixo político para gerar o caos, porque o caos — como admitiu cinicamente o presidente da CBS ao responder, em 2016, sobre o porquê de sua emissora dar tanto espaço para o então candidato a presidente Donald Trump — pode até ser ruim para a nação, mas é ótimo para os índices de audiência. E a militância da internet, que surgiu como uma promessa de revolucionar a comunicação e a política, tornou-se meramente um jogador de uma partida cujas regras já foram definidas pela mídia tradicional. Esta jogou sua isca e os twitters morderam-na cegamente. A militância de internet atendeu ao pedido da Bandeirantes e criou o "Bolsomito". E, o mais triste de tudo, é que eu não sei dizer se foi a de direita ou a de esquerda — que segue criando palanque para ele, como vimos Greenwald fazer.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

O problema da educação não é não poder bater nas crianças

A diretora de um colégio decidiu filmar uma criança durante um ataque de cólera e expô-la no Facebook. Segundo ela, não há nada que ela possa fazer além de deixar a criança quebrar tudo por causa do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que protege esses pequenos marginais. O vídeo está viralizando na rede social, mas não iriei compartilhá-lo porque porque se não vai ficar parecendo que apoio essa atitude e a mensagem do vídeo. Minha monografia foi justamente sobre a exposição indevida de menores em conflito com a lei pela imprensa.

O brasileiro médio adora citar o Primeiro Mundo quando lhe
convém, mas em toda Europa só é permitido o professor bater
nos alunos no Vaticano (em vermelho).
Diversas vezes, durante o vídeo, funcionários do colégio tentaram segurar a criança e evitar que ela virasse mesas e cadeiras. A diretora impede-os. Ela queria produzir uma evidência que reafirmasse sua ideologia pró-espancamento. Ela deixa a criança destruir o patrimônio do colégio — comprado com o dinheiro de todos nós — para provar seu argumento de que as crianças merecem apanhar dos professores, o que não ocorre em mais nenhum país da Europa. É um argumento do século XVIII, quando a pedagogia sequer era uma ciência ainda.

O entendimento corrente no campo da pedagogia é de que a criança é a parte mais frágil da sociedade e, assim sendo, tem o direito de receber educação sem ser submetida a tratamento degradante. Surpreende-me que uma pedagoga vá contra esse entendimento e defenda a punição corporal como forma de resolução do conflito entre aquele aluno e a escola. Que outras pessoas, alheias à situação, comentem a favor do espancamento só prova minha crença de que o brasileiro gosta de punir a revolta dos mais fracos ao invés da opressão dos poderosos.

A diretora deveria ser a parte racional da situação, tentando pôr fim ao que quer que seja que estivesse atormentando aquele ser, mas preferiu fazer ativismo político reacionário no Facebook. Além de desonesta — por manipular uma situação para defender seu ponto de vista — e anti-ética — por filmar uma criança sem a permissão de seus pais —, demonstra também que é anti-profissional, estando mais preocupada em publicar conteúdo na internet do que exercer sua função, a qual é paga pela coletividade. Se trabalhasse numa escola privada, com certeza seria demitida por justa causa.

Se dependesse de alguns, cenas como essa
sairiam dos livros de História e voltariam à
realidade. Diz muito sobre aquilo que somos
enquanto sociedade.
Por outro lado, duvido que ela deixaria a criança destruir tudo se trabalhasse numa escola particular. Mas no Brasil o que é público não é de todos (inclusive dela), é de ninguém. Ela fugiu de suas atribuições de zelar pelo patrimônio público e pelo bem-estar dos demais alunos. Só interessou-lhe, naquele momento, manipular uma situação para gerar "likes" contra o ECA. Afinal, é mais fácil culpar as crianças pelo atual estado do sistema educacional brasileiro ao invés de se olhar para o próprio descompromisso com as responsabilidades.

Aliás, ela culpa todo mundo pelo ocorrido — pais, assistentes sociais, polícia, políticos — menos a si mesma. É mais fácil culpar quem sequer estava na sala do que fazer o seu serviço, que nesse caso em específico se resumia a segurar a criança e tentar fazê-la se acalmar. É mais fácil também culpar a própria criança sem entender o motivo de sua raiva, o que poderia ajudá-la. Com certeza ela deve ter tido um motivo para o ataque de cólera, mas isso ficou sem explicação num vídeo que foi propositalmente tirado de contexto para defender um ponto de vista arcaico.

A educação no Brasil não está no estado atual porque porque o professor não pode mais bater nos alunos. É porque eles preferem postar vídeo no Facebook do que exercer as funções pelas quais são pagos pela coletividade para exercer. Não está escrito em lugar nenhum no ECA que não se pode conter uma criança durante um ataque de cólera. O que está escrito é que não se pode valer da violência para tal. Se a única forma que nós temos para resolver conflitos é abrir mão da violência, então é a nossa sociedade que tem um problema e não as crianças. As crises delas são apenas um reflexo disso.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Dietrich ou Jannings?

O final de semana foi marcado pelas notícias sobre o reaparecimento do nazismo enquanto movimento político que se manifesta publicamente no estado da Virgínia, no sul dos Estados Unidos. Nesse cenário, me vem à mente duas figuras alemãs do século passado: o ator Emil Jannings (1884–1950) e a atriz e cantora Marlene Dietrich (1901–1992). Ambos foram atores que despontaram na indústria cinematográfica dos Estados Unidos entre o final da década de 1920 e o início da década de 1930. Jannings venceu o primeiro Oscar de melhor ator em 1929, enquanto Dietrich foi indicada ao prêmio de melhor atriz na quarta cerimônia em 1931. Enquanto ambos encontravam fama em Hollywood, a nação deles experienciava um caos político, social e econômico sem precedentes que culminaria com o fim da breve experiência democrática conhecida como República de Weimar (1919–1933). Ambos estrelaram juntos no filme O Anjo Azul (1930), do cineasta austríaco judeu Josef von Sternberg. Mas as coincidências entre eles acabam por aí. Hoje ocupam papéis diametralmente diferentes no imaginário popular do ocidente.

Emil Jannings e Marlene Dietrich em O Anjo Azul (1930),
antes dele virar entusiasta do nazismo.
Marlene Dietrich, uma das raras figuras alemãs de seu tempo que defendia uma solução democrática para o fim da crise na qual seu país se encontrava, é lembrada hoje como a musa da resistência ao nazismo. Ela se apresentou para tropas aliadas em toda a Europa como forma de elevar a moral dos soldados que lutavam contra o avanço do nazismo no continente. Adolf Hitler, ciente da enorme popularidade da atriz no mundo, tentou levá-la de volta para o cinema alemão, a esta altura reduzido a um mero meio de propagação da ideologia ariana e da suposta superioridade alemã em relação aos outros povos do mundo. Enquanto filmava O Amor Nasceu do Ódio (1937) em Londres, membros do Partido Nazista se aproximaram dela e ofereceram-lhe um contrato lucrativo para retornar à Alemanha. Ela não só recusou a oferta como doou todo seu salário no filme — US$ 7,7 milhões em valores atuais — para iniciativas que ajudavam os refugiados do nazismo. Ao retornar aos Estados Unidos, deu entrada em seu processo de naturalização. Ela renunciaria à cidadania alemã ao se tornar cidadã estadunidense, em 1939.

Emil Jannings tomou um caminho completamente distinto. Com sua popularidade em declínio nos Estados Unidos — o que historiadores do cinema atribuem ao advento do cinema falado e ao forte sotaque do ator —, Jannings retornou à Alemanha em 1932 e aceitou ser o protagonista de uma série de filmes que exaltavam figuras históricas nacionalistas para o Terceiro Reich (1933–1945). Estrelou em doze filmes no período e foi, sem sombra de dúvidas, um dos atores mais famosos de seu país durante o reinado de Adolf Hitler. As filmagens de um décimo terceiro filme, Wo ist Herr Belling?, foram interrompidas quando as tropas aliadas invadiram a Alemanha na primavera de 1945. Segundo relatos, Jannings teria mostrado sua estatueta do Oscar aos soldados como prova de sua associação com os Estados Unidos e, consequentemente, evitar sua prisão. Devido a sua contribuição para a Alemanha Nazista, Jannings foi alvo de Berufsverbot (banimento profissional) pelos aliados, sendo proibido de exercer novamente sua profissão até a desnazificação do país. Ele preferiu se aposentar. Mudou-se para a Áustria, onde morreu em completo ostracismo em 1950.

Marlene Dietrich entretendo soldados aliados.
No final da década de 1940, Dietrich, por sua vez, recebeu as maiores honrarias civis dos governos estadunidense e francês. Seus esforços contra o nazismo começaram antes mesmo dos Estados Unidos declararem guerra à Alemanha. No final da década de 1930, ela se uniu ao diretor austríaco judeu Billy Wilder para criar um fundo de assistência aos judeus que desejavam escapar da Alemanha. Quando os Estados Unidos entraram no conflito, em 1941, Dietrich foi uma das primeiras celebridades a ajudar a vender títulos de crédito para financiar o exército estadunidense. Entre janeiro de 1942 e setembro de 1943 ela se apresentou para mais de 250 mil tropas no país. Em 1944 e 1945, ela se apresentou para tropas aliadas na Argélia, na Itália, no Reino Unido, na França e na Alemanha. Ao entrar na Alemanha, foi indagada do porquê faria isso, uma vez que estaria colocando sua própria vida em risco, estando a poucos quilômetros de distância dos nazistas. "Faço isso por decência", retrucou. Segundo Wilder, a atriz esteve presente em mais linhas de frente do que Dwight D. Eisenhower, general que comandava as Forças Expedicionárias Aliadas.

Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, e o
ator Emil Jannings.
Enquanto Dietrich usava seu talento para defender a "decência", Jannings — ainda hoje o único alemão vencedor do Oscar de melhor ator, descrito pela Encyclopædia Britannica como "um dos melhores atores de sua geração" — emprestava-o a um regime que matou aproximadamente 10 milhões de pessoas. Ele, na verdade, era o rosto deste regime. Jannings traduzia a ideologia nacionalista do regime para o alemão comum, ao interpretar a versão nazificada de heróis nacionais como Otto von Bismarck e Frederico Guilherme da Prússia nas telas. Em 1942, ano em que os trens da morte começavam a transportar os inimigos do nazismo para os campos de concentração, Jannings escreveu para a Nationalsozialistische Monatshefte, revista de cultura do Partido Nazista, sobre a meta do regime de mostrar, no cinema, homens e mulheres que conseguem dominar seus próprios destinos como modelos a serem seguidos pelo público. Do outro lado do Atlântico, Dietrich se tornava a celebridade que mais vendia títulos de crédito do exército estadunidense. Indagada sobre as atividades nazistas de seu ex-colega nas telas, Dietrich teria dito que ele era um "porco".

Embora tenha lutado incessantemente para livrar seu povo das garras do nazismo, o retorno da atriz à Alemanha não foi exatamente um sucesso. Em 1960, durante uma turnê em sua terra natal, Dietrich foi recebida de maneira amarga pela direita alemã. Os viúvos do nazismo acusavam-na de ser uma "traidora da pátria" e ameaçaram bombardear o palco de seus shows duas vezes. Durante sua apresentação no teatro Titania Palast, em Berlim, o público gritou "Fora Marlene!". Ela foi defendida pelo então prefeito da cidade, o social-democrata Willy Brandt, que, assim como ela, opôs-se ao nazismo e exilou-se do regime no exterior. A turnê foi um fracasso comercial e Dietrich, emocionalmente fragilizada pela hostilidade que encontrou em sua cidade natal, prometeu nunca mais retornar ao país. Na Alemanha Oriental, no entanto, ela foi melhor recebida. Em Israel, a turnê da artista que doou milhões de dólares para os refugiados judeus foi muito bem recebida. Ela cantou em alemão, quebrando o protocolo contra o uso do idioma no país, e ganhou a Medalha de Honra do governo, tornando-se a segunda mulher alemã a receber tal honraria. 

Goebbels (Sylvester Groth) mostrando o anel de honra que
deu para Jannings (Hilmar Eichhorn) em cena do filme
Bastardos Inglórios, de Quentin Tarantino.
Se a imagem de Dietrich não foi completamente reabilitada em vida, seria após sua morte em 1992. Naquele ano, uma placa comemorativa foi colocada no local de seu nascimento em Berlim, onde é possível ler: "Foi uma das poucas atrizes alemãs que conseguiram fama internacional e, apesar das ofertas tentadoras do regime nazista, emigrou para os EUA e se tornou cidadã americana". Um selo com sua imagem foi lançada pelos correios da Alemanha em 1997. No mesmo ano, uma praça na capital alemã foi inaugurada em sua homenagem. Lê-se numa placa no local: "Estrela berlinense do cinema e da música, dedicada à liberdade e à democracia, a Berlim e à Alemanha". Emil Jannings, por sua vez, foi "homenageado" no filme Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino, onde exibe para os outros personagens o anel de "artista do estado" que ganhou de Joseph Goebbels. Ele é apresentado não como um ator genial, mas como quem preferiu a fama à compaixão aos judeus, muitos dos quais ajudaram-no a construir sua carreira, como é o caso dos cineastas Sternberg, E.A. Dupont, Paul Leni e, principalmente, Ernst Lubitsch, que o dirigiu em sete filmes.

As ofertas tentadoras do regime nazista eram simplesmente boas demais para Emil Jannings recusar. Mesmo que se argumente que ele estava apenas tentando sobreviver num ambiente hostil à liberdade artística, um artista com o mínimo de decência — parafraseando Dietrich — não escreveria um artigo para a revista de cultura do Partido Nazista. Ao que tudo indica,  Jannings — ao contrário de outros artistas alemães do período, que mais tarde disseram que estavam apenas trabalhando na indústria sem apoiar os horrores da "solução final" para os judeus — foi um entusiasta do nazismo. Segundo Wagner Pinheiro Pereira, autor do livro O Poder das Imagens: Cinema e política nos governos de Adolf Hitler e de Franklin D. Roosevelt, o ator teria sugerido ao ministro da propaganda Joseph Goebbels a produção do filme Tio Krüger (1941), uma denúncia do imperialismo britânico, como forma de mostrar ao mundo que não foram os alemães que inventaram os campos de concentração, mas sim os britânicos, durante a Guerra dos Bôeres (1899–1902). Não coincidentemente, o ator recebeu o já mencionado anel de honra após esse filme.

Placa na Praça Marlene Dietrich em Berlim. Não existem
homenagens públicas a Emil Jannings no país.
A relativização dos campos de concentração criados pela Alemanha segue a mesma lógica das tentativas de muitos conservadores de relativizar as manifestações nazistas que ocorreram no último final de semana nos Estados Unidos. Trata-se de denunciar quem está denunciando: os alemães construíram 1.200 campos de concentração, mas os britânicos operaram 45 três décadas antes; a direita está pedindo abertamente a morte de minorias na rua, mas a esquerda também tem os seus crimes. A adoção dessa estratégia goebbeliana de defesa política mostra que o nazismo novamente faz a cabeça dos conservadores no mundo todo. Novamente a dita civilização chegou num ponto de radicalização e precisamos decidir se vamos agir pela decência ou se vamos aderir à opressão das minorias para recebermos as ofertas tentadoras de um movimento ideológico que, sete décadas após devastar a Europa, está novamente virando moda entre cidadãos histéricos e inconsequentes. Precisamos decidir a quem vamos querer ser comparados no futuro: Dietrich ou Jannings? Basicamente, trata-se de uma escolha entre a democracia e a barbárie.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Chamam-nos de selvagens

Ontem assisti ao filme Sangue Vermelho (Call Her Savage), o penúltimo estrelado pela "it girl" original Clara Bow. Na produção, lançada em novembro de 1932, a jovem Nasa Springer — para seu desgosto e de sua família — não consegue se adaptar às normas sociais. Ela comete uma série de decisões erradas durante a vida, sendo deserdada pelo pai milionário, até que descobre, no leito de morte da mãe, que é cabocla. Seu verdadeiro pai era um bravo líder indígena com quem sua mãe manteve relações durante uma das viagens de negócios de seu esposo. O filme flerta com a ideia de que os ameríndios são guerreiros por natureza e que, por isso, aqueles que possuem sangue indígena têm maior dificuldade em se adaptar às normas sociais estabelecidas pelos brancos.

De fato, os brancos definem o que é ser civilizado. Trabalhar oito horas por dia para garantir o lucro dos outros, passar 1/3 da vida no trânsito, comprar frango engordado à base de anabolizantes no supermercado, aplaudir as ações da PM mostradas na TV, protestar contra presidente que acaba com a fome e fazer silêncio sobre presidente que recebe mala de dinheiro, passear em shoppings nos fins de semana, dormir à base de remédios para não pensar nas coisas horríveis que dizemos e fazemos uns aos outros no dia a dia. Isso é a civilização. A todos aqueles que vivem de outra maneira, seguindo outros valores que não a busca desenfreada pela acumulação de dinheiro e pela dominação dos outros seres vivos que habitam nosso planeta, chamam de loucos. Chamam-nos de selvagens.

Chamam-nos de selvagens porque não podem
nos subjugar.
Esse é o nome do filme em inglês. Nasa é chamada de selvagem por um pretendente rico porque bateu na mulher que desonrou a memória de seu filho, morto num incêndio. Pessoas civilizadas não extravasam suas emoções em público. Elas engolem suas frustrações a seco para depois resolvê-las de maneira mais privada, seja insultando estranhos, desenvolvendo uma úlcera ou viciando-se em remédios ou outras adicções da moda. Pessoas civilizadas não falam o que pensam ou sentem e jamais reagem à altura das ações às quais foram submetidas. O cidadão-modelo é a Marcela Temer — "bela, recatada e do lar", segundo a revista Veja — ou o Rodrigo Hilbert, brilhantemente desconstruído pelo PC Siqueira nesse vídeo. Ambos brancos e privilegiados num país de caboclos pobres. Pois eu não consigo ser assim.

Tenho muito de Nasa em mim. Infelizmente, para essa sociedade doentia — que, hipócrita, prefere patologizar quem aponta os seus erros ao invés de fazer auto-crítica — e felizmente, para mim — que não vou aceitar os rótulos dela. Talvez isso se dê porque eu também tenho sangue indígena correndo em minhas veias. Independente do motivo, a norma social imposta pelos brancos no continente americano me entedia no campo dos costumes e me revolta no das relações sociais. Mais do que a morte até. Não só não a sigo como também ridicularizo-a. Se eu tentar me encaixar nela, estarei traindo o meu próprio espírito. Mas sou confiante. Se Nasa não precisou fazê-lo para encontrar seu "happy ending" no final do filme, penso que eu também não irei precisar fazê-lo.

Se tem algo que precisa ser revisto é esse modelo de organização da sociedade e não aqueles que não se conformam com ele. Como dizia Bertolt Brecht, chamam de selvagem o rio que tudo arrasta, mas nada dizem das margens que oprimem-no. Tudo aquilo que não pode conter e que não consegue oprimir, a sociedade rotula. O establishment já praticamente dizimou os índios mas, para seu azar, seu sangue guerreiro permanece mais vivo do que nunca. Toda vez que alguém se recusa a oprimir os que já nasceram fodidos, uma banana é dada à civilização branca. Pois eu não quero ser civilizado se ser civilizado significar reproduzir a norma social vigente. Não devo obediência a assassinos — reais ou potenciais — e seus cúmplices, que não vêem nada de errado em caçar os membros mais frágeis da sociedade. Vão ter que me chamar de selvagem!

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

O rosto de uma nação

Com seu silêncio apático sobre a continuidade do governo Michel Temer, garantida na última quarta-feira por uma Câmara dos Deputados comprada com emendas parlamentares, as classes mais abastadas do Brasil finalmente mostraram sua cara. O poeta Cazuza, incomodado com a hipocrisia da casta da qual ele fazia parte, queria que isso tivesse acontecido já no final dos anos 1980. Trata-se de uma cara desfigurada, como a de Anna Holm (Joan Crawford), personagem principal do filme clássico Um Rosto de Mulher (A Woman's Face), de 1941. Assim como Anna, o brasileiro de classe média é ridicularizado todas as vezes em que permite que os outros vejam seu rosto. Assim sendo, não conseguiu desenvolver-se de maneira saudável e encontrou na extorsão, na chantagem e na manipulação uma forma de subsistência. O "jeitinho", no entanto, parecia que iria ficar para trás quando entrou em cena quem estava disposto a mudar essa história.

Anna Holm (Joan Crawford) em cena
do filme Um Rosto de Mulher, de 1941.
Anna, assim como a classe média brasileira, tinha dúvidas das boas intenções de quem prometia dar-lhe um novo rosto. A operação, no entanto, foi um sucesso, apesar de ser demorada e invasiva. Mas Anna sente-se em dívida com o namorado, um bandido como ela, porque ele já amava-a quando seu rosto ainda era deformado. De maneira semelhante, o brasileiro médio, após ir ao paraíso do consumo na década passada com o PT, sente-se em dívida com o PMDB, um partido corrupto como ele, que sempre guiou sua vida e que melhor traduz suas atitudes cotidianas. Afinal de contas, este é o maior partido do Brasil sob qualquer número em que seja analisado: filiados (2,4 milhões), governadores (7), de prefeitos (1.028), senadores (22), deputados federais (68), deputados estaduais (142) e vereadores (7.551). O brasileiro médio sempre trocou juras de amor com o PMDB. E não dá para mudar o coração só mudando o rosto.

Durante o clímax de Um Rosto de Mulher, Anna precisa decidir se quer ser linda também por dentro ou se vai permitir que a imagem horrorosa de bandida, que construiu para si mesma como forma de se proteger do ostracismo social, vai continuar acompanhando-a. No caso do brasileiro médio, parece-me que essa escolha já foi feita. Escolhemos ser bandidos peemedebistas — ou, pelo menos, cúmplices deles. Talvez a operação que reformou o rosto do brasileiro não tenha sido tão bem sucedida assim e nosso rosto permaneça desfigurado de alguma forma, afetando nossa auto-imagem. Esta é a visão dos críticos de esquerda do PT. Já eu tenho opinião diversa. Penso que o governo que realizou esta cirurgia — muito bem sucedida entre os brasileiros pobres — não foi capaz de operar o milagre de reformar o caráter da classe média. E penso que governo nenhum será capaz disso, porque esta casta social se move por ideias egoístas e individualistas.

Independente da controvérsia se a operação foi bem sucedida ou não, sinto que nós, brasileiros de classe média, ainda iremos a julgamento por nossa opção pelo banditismo, assim como Anna Holm. Nem que seja o julgamento da História. E, assim como no filme, nossa cara será o assunto principal a ser discutido no tribunal. Um rosto que buscou ser operado, mas cuja cirurgia parece não ter tido influencia alguma sob nosso caráter. Chegamos no clímax da história e escolhemos continuar no caminho fácil e rápido do banditismo. Quando o dia do julgamento chegar, infelizmente estarei lá na mesma posição de arrependimento do cirurgião plástico de Anna, pensando que desperdicei meu tempo acreditando na mudança do coração de gelo de um ser com potencial através do embelezamento de seu rosto. Investi meu tempo na criação de um monstro: uma criatura linda e cheia de si por fora e horrível — cínica e hipócrita — por dentro. Eis o rosto de uma nação brasileira.

terça-feira, 4 de julho de 2017

Sobre mulheres loucas como eu

Há algumas semanas, eu disse que todo filme da Joan Crawford que eu já havia assistido rendia uma boa discussão sobre o papel da mulher na sociedade. Preciso adicionar Manequim (1937) a essa lista. No filme, Crawford interpreta Jessie Cassidy, uma garota de família pobre que mora num cortiço e trabalha numa fábrica de roupas. No começo do filme, o espectador descobre que Jessie é arrimo de família, apesar de ter um irmão apto para o trabalho. Jessie chega em casa um dia e descobre que a mãe está dando o dinheiro que ela ganha na fábrica pro irmão, porque é o dever da mulher cuidar dos homens da casa. Revoltada com a situação, Jessie se recusa a descascar batatas para seu pai ou deixar sua mãe fazê-lo, desafiando a figura do patriarcado em sua casa. Ela pede para o namorado, o pugilista em ascensão Eddie Miller (Alan Curtis), para se casar com ela e tirá-la daquele lugar e daquela situação desesperadora em que ela se encontra.

Só que sua vida não melhora. Mais uma vez, Jessie se vê num lar onde ela é a única que trabalha. O marido perde o contrato e ela começa a trabalhar como corista na Broadway para que eles possam continuar comendo. De vez em quando ele pede uns dólares para a esposa, que cede, iludida de que a situação deles é temporária. Ao invés de trabalhar, Eddie se envolve com a jogatina e chega a ser preso. Aos poucos, as ilusões de Jessie em relação ao marido vão se desfazendo. Certa noite, num jantar na casa de seus pais, Jessie ouve da mãe, sempre servil ao pai e ao irmão dela, o conselho de que ela não deve desperdiçar sua força de vontade por quem não está disposto a fazer o mesmo por ela. A cena poderosa é um lamento de quem viveu a vida inteira por seu marido sem jamais ser reconhecida por isso. Chegando em casa do jantar, Eddie revela que tem um plano para eles melhorarem de vida.

Spencer Tracy e Joan Crawford em foto
promocional do filme Manequim.
Jessie se anima com a possibilidade de que finalmente seu marido iria se dedicar ao sucesso financeiro do casal do mesmo jeito que ela vinha se dedicando. No entanto, o plano dele envolve eles darem um golpe no milionário John Hennessey (Spencer Tracy). Ela se casaria com ele para, mais tarde, pedir o divórcio e sair com metade da fortuna dele. Jessie fica horrorizada com a ideia e percebe que o marido não possui nenhum tipo de ética pessoal e decide pela separação. Ela reergue sua vida trabalhando como modelo – daí o título do filme – e acaba reencontrando e se apaixonando pelo milionário Hennessey, com quem se casa em Paris. Os dois passam por uma longa lua-de-mel na Europa, mas, ao retornarem para os Estados Unidos, o ex-marido de Jessie, agora especialista em falsificação de perfumes, reaparece em sua vida para atormentá-la.

Eddie chantageia Jessie, ameaçando dizer para John que ela ter se casado com ele ainda fazia parte do plano dele. Só que o negócio de John fale devido à agitação sindical de seus empregados e ele perde toda sua fortuna. Para a surpresa de ambos os homens, Jessie permanece ao lado de seu marido atual. Com uma condição: que ele trabalhe também. Ela se recusa a ficar com um marido que se recusa a dividir as contas. Ainda hoje, muitas mulheres se submetem a relacionamentos desse tipo, pois foram encalcada-lhes a noção de que o que importa é ter um homem para dividir a cama. Manequim predata o movimento feminista, mas retrata a personagem da sociedade estadunidense que permitiu seu surgimento: a garota trabalhadora, que cresceria em números durante a Segunda Guerra Mundial, quando as mulheres assumiram os postos de trabalho que os homens, que foram lutar contra o nazismo na Europa, deixaram vagos. Ainda hoje, o filme permanece relevante.

Consigo me identificar, pois estive num relacionamento semelhante ao de Jessie e Eddie. Meu Eddie também achava-se bom demais para trabalhar, também fazia com que eu pagasse as contas, perdia oportunidades que a vida lhe dava e culpava a todos – menos a si mesmo – por seus fracassos. Assim como Jessie, eu me sentia exausto por ter que ser o responsável daquele relacionamento e também me iludia de que ter um ao outro bastava. Mas não basta. Como diz uma das coristas em determinado momento do filme, quando Jessie está se gabando dos gestos românticos de Eddie, "não venha me falar de caras que fazem o mínimo. Quero ouvir sobre caras que fazem o máximo". Não adianta nada trazer rosas e não trazer o almoço. Para mim, o tipo de situação retratada pelo filme configura-se como um relacionamento abusivo, mas não falamos sobre isso porque não é tão evidente.

Assim como Jessie, eu sentia que devia algo a meu ex porque ele me tirou da situação ruim em que eu me encontrava antes de conhecê-lo. E ele sabia disso e reproduzia, num relacionamento homossexual, o mesmo tipo de submissão retratado num filme de oitenta anos atrás. Assim como Eddie, ele alimentava minhas ilusões de que um dia nós dividiríamos as contas porque sabia que assim eu continuaria pagando tudo sozinho. Além disso, eventualmente me fazia eu me sentir mal por não ter fé em sua capacidade de se tornar rico sozinho, como Eddie faz com Jessie numa cena no metrô. E eu era tão grato por ele ter me salvado da escuridão do armário que eu fazia vistas grossas ao verdadeiro caráter dele. Afinal de contas, a gente aprende desde cedo que o amor pode tudo, inclusive mudar as pessoas. Como se um beijo pudesse transferir meus valores morais para ele.

A relevância dos filmes de Joan Crawford me faz pensar que o ataque a sua imagem não seja também um ataque à mulher independente. Sejam verdadeiras ou não as acusações de abuso infantil feitas contra ela, nenhuma outra atriz esteve tão identificada com a garota trabalhadora do que ela que, vindo de uma família pobre ela mesma, oferecia verossimilhança às personagens que interpretava. Assim como elas, Joan veio do nada e chegou ao topo, estando disposta a sacrificar os papéis tradicionais da mulher para isso. Era referência até sua morte. Meses depois, sua filha adotiva denunciou-a como mãe abusiva no livro de memórias Mamãezinha Querida, mais tarde transformado num filme caricaturesco com Faye Dunaway. Cinquenta anos dedicados a inspirar as mulheres foram jogados no lixo em menos de cinco. A mulher que recusa se submeter ao papel que lhe é imposto pela sociedade só pode ser louca e é assim que muitos veem Joan Crawford hoje.