sábado, 17 de setembro de 2016

O problema do Brasil não é a Dilma; é o Setor Bueno

Estou cada vez mais convicto de que o problema do Brasil nunca foi o PT. O problema do Brasil é que o Estado deve servir a uma classe minoritária que nada produz. As grandes fortunas do país não existiriam se não fossem as generosas tetas do Estado. O PT errou, na minha opinião, por não promover um desmembramento completo disso. Enquanto o cenário externo favoreceu a economia do país, as gestões petistas na máquina federal mantiveram um sistema que favoreceu tanto os parasitas do Estado quanto o grosso da população. Com o arrefecimento da economia global a partir de 2013, o partido (mais especificamente Dilma) viu-se numa encruzilhada: ou rompia com a elite financeira que locupleta-se do Estado ou com o povo. Dilma acabou tentando servir aos dois senhores e caiu. Michel Temer surgiu em seu lugar para acabar com o tímido Estado de bem-estar social criado pelo PT. Ele está no Palácio do Planalto para promover o retorno do modelo anterior, segundo o qual todos são iguais em direitos e deveres aos olhos do Estado, mas uns são mais iguais do que os outros. O Estado possui seus filhos preferidos e Temer governa para eles. Caso o contrário, ou seja, se tivesse se mantido fiel ao programa de governo que o elegeu em 2014, o golpe teria sido dado para colocar o mau perdedor e garoto de ouro das elites, Aécio Neves, no poder. 

Meu carro não tem o direito de existir no
Setor Bueno assim como "atores petistas"
não têm o direito de viver.
Agora que o golpe foi dado, os mamadores da teta do Estado estão empoderados. Aqueles que acham que fazem parte desse grupo também. Digo isto pois, como diz um amigo meu, o brasileiro compra um carro e um apartamento no Setor Bueno (pagando consórcio durante anos e anos) e acha que faz parte da elite, que compreende aquela parcela mínima da sociedade que mantém sua riqueza intacta por mais de 400 anos. E não é que um episódio interessante ocorreu comigo justamente no dia do golpe final contra Dilma e no referido setor, o bairro de Goiânia com mais eleitores de Aécio Neves por metro quadrado. Estava eu atrasado para a minha sessão de terapia, quando passei pela Panificadora Della. Havia um carro saindo do local, mas, por estar com pressa, não dei-lhe passagem. Meu carro é um Uno Mille velho, mas que tem o mesmo direito de estar transitando pelas vias da cidade quanto o Honda Civic daquele condutor. Mas essa não é a mentalidade dos moradores daquele bairro. Eles acham que têm mais direito ao espaço público por fazerem parte de uma determinada classe social. Assim sendo, o condutor esbarrou propositalmente no meu carro, a despeito da minha buzina estar anunciando "ei, você está invadindo o meu espeço pessoal!". Eu poderia ter sido mais simpático e lhe dado passagem, mas imagina se fôssemos nos vingar de todos que não nos dão passagem no trânsito?

No Brasil pós-golpe, as leis não têm mais validade alguma. Vale a lei da rua. E a lei da rua no Setor Bueno é que aquele é um bairro de elite e que tem mais direito à rua quem tem o melhor automóvel (tadinho do meu Uno velho e batido!). Lá não está em vigor o Código Brasileiro de Trânsito, está em vigor a mentalidade do brasileiro coxinha. E digo "coxinha" (ou seja, aquele que faz parte de um grupo social, mas julga-se melhor por causa da roupa que veste na origem do termo) porque a elite goianiense não habita entre nós desde o final dos anos 1990, quando houve um êxodo dessa classe social para os condomínios fechados. O Setor Bueno é o bairro onde a classe média se reúne para achar que é rica. Os ricos de verdade estão segregados da classe média. Agora que Dilma e o PT foram solapados do poder, a mentalidade do Setor Bueno vai ganhar espaço para triunfar. Estão empoderados. A invasão ao espaço do outro por quem julga-se portador de mais direitos está apenas começando. O problema do Brasil, como sempre suspeitei, não é a Dilma e sua lambança na economia. O problema do Brasil é a mentalidade do Setor Bueno que não enxerga o outro como portador dos mesmos direitos e deveres que si próprio. E, sinto informar, a tendência é só vermos ainda mais violações em relação ao direito de existir do outro que não se encaixa nesse padrão.

Agora é a vez do PSOL

Passado o espírito olímpico, o Brasil se prepara para as primeiras eleições pós-golpe. No primeiro conjunto de debates foi notória a exclusão de alguns candidatos de esquerda. Seguindo a nova legislação eleitoral – aprovada em 2015 durante a minirreforma eleitoral realizada pela Câmara dos Deputados – a Rede Bandeirantes não convidou os candidatos do PSOL em algumas capitais. Os paulistanos não puderam conhecer as propostas da ex-prefeita Luiza Erundina, terceira colocada nas pesquisas de intenção de votos, assim como os cariocas foram subtraídos da visão do deputado estadual Marcelo Freixo, segundo colocado no Rio. Segundo a nova legislação, as emissoras são obrigadas a convidar aos debates os candidatos que concorrem por partidos que possuem menos de dez deputados federais – e o PSOL possui seis. Anteriormente, a lei exigia a participação de todos os candidatos cujos partidos possuíam representação no Congresso, independente do número de deputados. A exclusão dos candidatos do PSOL deve se repetir em várias cidades e em várias emissoras até o dia 2 de outubro, quando será realizado o primeiro turno das eleições.

Não é uma surpresa que o PSOL seja a nova vítima da máquina estatal. A única maneira através da qual a esquerda consegue acesso à mídia hegemônica no Brasil é através da força da lei. A articulação pelo golpe de Estado uniu Parlamento, Judiciário e mídia, que tentaram dar um véu de legalidade ao processo de impeachment para tentar vendê-lo como legítimo para a opinião pública, insatisfeita com o governo de Dilma Rousseff. Essas mesmas forças agora se unem contra o PSOL. O Legislativo, que se tornou um balcão de negócios, está pouco interessado na promoção de um partido que não se pauta pelos interesses das grandes empresas e, assim sendo, excluiu seu acesso aos veículos de comunicação de massa. O Judiciário, por sua vez, aplica a legislação eleitoral com um rigor ímpar contra os candidatos psolistas. A campanha de Freixo está sendo alvo de uma fiscalização rigorosa do TRE-RJ, o mesmo tribunal que faz vistas grossas para a relação incestuosa entre candidatos e milícias nas favelas. O Estado tão rigoroso contra o candidato que mobiliza a juventude carioca do asfalto, inexiste no morro.

Embora eu esteja ideologicamente distante do PSOL, solidarizo-me com seus candidatos e militantes. Eles agregam muito ao fétido ambiente político nacional e ao debate político apodrecido, pautado pelo falso moralismo de uma direita que aponta os desvios do PT, mas não deixa ninguém investigar seus próprios delitos. O PSOL luta para que a hipocrisia não seja a força motora da política brasileira. Para tal, apresenta soluções práticas e coerentes para a moralização da política, para além dos gritos vazios de "Fora Dilma". Preocupa-me que, em período de "pausa na democracia" (segundo as palavras de um ex-presidente do STF), um cara como Freixo, um ícone da luta contra a confusão entre o público e o privado – que está na raiz da injustiça social e do nosso índice Gini, um dos mais elevados do mundo – esteja sendo perseguido de maneira tão descarada pelas forças da burguesia infiltradas no Estado brasileiro. Entretanto, não posso dizer que isso me surpreende. Já havia alertado para o fato de que, liquidado o PT enquanto legenda naturalmente identificada pelos trabalhadores, a próxima vítima do macartismo à brasileira seria o PSOL. Não podem deixar o substituto do PT sequer nascer.

Parece-me óbvio que as forças conservadoras da máquina estatal (e paraestatal, no caso da mídia) do Brasil voltariam suas baterias contra o PSOL em determinado momento. O Poder Judiciário que agora quer multar Freixo por um deslize da cantora Fernanda Abreu num comício é o mesmo que permitiu que o Legislativo fizesse o impeachment sem base constitucional da presidenta Dilma Rousseff. É o mesmo Judiciário que deixou Sérgio Moro se eleger como herói da classe média "oprimida" pelos programas sociais (e não pelos banqueiros) às custas da própria imagem do Judiciário enquanto estrutura justa e imparcial. Por sua vez, a grande imprensa, da qual a Bandeirantes orgulha-se de fazer parte, está mancomunada com os perseguidores da esquerda no Judiciário desde que viram a oportunidade de manipular a opinião pública contra Dilma e o PT. Destruídas as chances de elegibilidade do PT, que os jornais anunciam a todo o momento que está "em crise" – uma crise que eles mesmos cultivaram com todo o carinho do mundo desde a eclosão do escândalo do mensalão – a tríplice aliança golpista que engloba Judiciário, Legislativo e mídia agora se volta contra o PSOL.

Me desculpem a franqueza, mas foi muito ingênuo quem achou que os autores da narrativa oficial brasileira permitiriam que o PT fosse trucidado e que o PSOL continuasse livre para denunciar o apartheid social brasileiro livremente. Se o pouco que o PT fez – Bolsa Família, ProUni, FIES, Luz para Todos, Mais Médicos, etc. – já ameaçou a manutenção do status quo nas três esferas de poder, imagina aquilo que o PSOL propõe fazer nas prefeituras? Não é preciso ser nenhum gênio ou visionário para saber que os psolistas seriam os novos petistas em termos de perseguição política. Basta olhar para as experiências de golpe de Estado contra forças progressistas ocorridas no passado. Durante a Guerra Civil Espanhola, cuja eclosão completou 80 anos no último mês de julho, foram perseguidos todos aqueles que defendiam a função social do Estado: de trotskistas a social-democratas, de marxistas a liberais e não apenas os militantes do PSOE. Não era possível na Espanha dos anos 1930 – assim como não é possível no Brasil de hoje – manter o status quo sem eliminar as entidades que denunciam e lutam contra a injustiça social.

O poeta Federico García Lorca, por exemplo, estava longe de ser um militante radical, mas defendia a separação entre o Estado e a Igreja Católica e, por isso mesmo, foi uma das primeiras vítimas do golpe de 17 de julho de 1936. Lorca era homossexual e queria viver num país onde pudesse amar quem quisesse; onde o amor consensual entre adultos não fosse crime para satisfazer à visão torta do Evangelho defendida pela Opus Dei. Os perseguidores tanto de Dilma quanto de Freixo odeiam os excluídos do apartheid brasileiro e aqueles que vêem como representantes deles. Quiseram separar o Brasil do Nordeste devido à identificação daquela região com Dilma na eleição presidencial de 2014. Chamam Dilma de "sapatão" desde 2010. De maneira semelhante, Freixo não pode participar dos debates porque é o candidato mais identificado com as minorias no Rio. Minha solidariedade a ele perpassa questões partidárias. É um apoio àquilo que ele representa para nós, membros de grupos oprimidos deste país que buscam a liberdade. Agora é a vez do PSOL ser a vítima dos ataques de um Estado que persegue aqueles que denuncia suas mazelas. Mas este não fala em meu nome e é por isso que eu grito: Viva Freixo! Viva aquilo que ele representa.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Obrigado, golpistas!

Hoje a farsa contra a presidenta Dilma Rousseff foi finalmente consumada e seu mandato foi oficialmente abreviado pelo Congresso Nacional. Por não terem conseguido provar qual crime Dilma teria cometido, os senadores cassaram-na, mas deixaram seus direitos políticos intactos. Transformaram o mecanismo do impeachment previsto na Constituição de 1988 num voto de confiança, embora o regime de governo no Brasil seja o presidencialismo e não o parlamentarismo. Na Espanha, seria perfeitamente legal afastar o presidente de governo pelo "conjunto da obra", mas no Brasil isto é — ou era — juridicamente impossível em razão do fato do presidente ser também o chefe de Estado e o cargo, acumulando as duas funções, necessitar de certa estabilidade institucional. Assim sendo, não há outra forma de classificar o impeachment de Dilma Rousseff que não seja através da palavra "golpe". É o golpe frio do qual a revista alemã Der Spiegel falou.

Apesar de terem ajudado a instituir uma nova modalidade de golpe na América Latina, que até mesmo o jornal conservador argentino Clarín vê com cautela, não guardo rancor em relação aos partidários do golpe contra Dilma. Pelo contrário, gostaria de agradecer aos golpistas do fundo do meu coração. Desde que vocês decidiram se fechar ao diálogo e se isolar do resto da sociedade que não pensa como vocês, minha vida só melhorou. Quando vocês decidiram que sua estratégia de ação política para derrotar Dilma e o Partido dos Trabalhadores seria o ataque à própria democracia, percebi que seria obrigado a me afastar de vocês. Não quis conviver no mesmo ambiente tóxico de ódio e rancor no qual vocês vivem. Vocês desnudaram sua falta de caráter e valores morais e isso me desagradou. Assim sendo, a única opção que me restou foi conviver com pessoas que pensam de maneira semelhante a mim. Graças a vocês, golpistas, entrei em contato com pessoas maravilhosas.

Busquei me afastar de pessoas cujos valores eu percebia como dúbios. Não conseguia mais aturar mesquinhos, hipócritas e falsos moralistas. Gente que falava que não tinha "bandido de estimação", mas que celebrou o fato de Eduardo Cunha ter estado do seu lado na luta contra o PT. Gente que cobrava retidão de caráter dos políticos, mas que pede pro colega bater o ponto em seu lugar no trabalho. Gente que se diz cristã, mas que xingava uma senhora de 68 anos de idade, avó de duas crianças, de "puta" no protesto de domingo após a missa ou culto. Gente que nunca vai suportar ter que dividir as vias públicas com pobres em carros mais humildes. Gente que grita quando contrariada. Gente cujo ódio é o próprio combustível que as move e as faz sair da cama todas as manhãs. Num primeiro momento, parecia que eu havia me isolado do mundo e que não havia mais ninguém como eu ao meu redor. Mas isto não era verdade.

Lentamente, fui me aproximando de um variado leque de pessoas que também não suportam o "dois pesos, duas medidas" tão característicos dos brasileiros que se julgam informados quando na verdade estão sendo manipulados. São pessoas que, sob circunstâncias normais, eu não teria tido a oportunidade de conhecer no meu até então restrito círculo de convivência social. A primeira demonstração de hipocrisia ocorreu num templo da Igreja Católica, da qual me desvinculei logo em seguida para, felizmente, encontrar uma igreja mais afinada com os meus valores. Em seguida, ao voltar a participar de protestos de rua, descobri o quão rica é a militância progressista no Brasil. Me abri para pessoas com as quais, num passado recente, eu teria vergonha de ser visto em público. Se hoje tenho diversos amigos — virtuais ou não — de diversas partes do Brasil e do mundo, de várias etnias, orientações sexuais e identidades de gênero, é por causa do terremoto político que o golpismo causou.

Além disso, voltei a prestar a atenção na produção musical nacional. Redescobri a obra de muitos artistas graças a sua militância anti-golpe. Quem poderia imaginar que eu tenho tanto em comum com o Tico Santa Cruz, por exemplo? São artistas que fazem cultura de primeira e que dificilmente terão o reconhecimento que merecem do grande público. Nesse sentido, o serviço sueco de streaming Spotify foi de grande importância para me fazer romper o boicote à música popular brasileira imposto pelas rádios FM de Goiânia. Assim como a reação popular às organizadíssimas neo-marchas da Família com Deus pela Liberdade me aproximou de negras e negros que não escondem suas raízes, pessoas trans que não escondem sua identidade e muitos — muitos mesmo — homossexuais que, num passado recente eu teria considerado "espalhafatosos" demais. Houve também o que chamo de "invasão nordestina" aos meus perfis nas redes sociais.

Desde que vocês, golpistas, decidiram não reconhecer o resultado da eleição presidencial de 2014, eu cresci bastante. Muitas vezes, as adversidades nos impõem o crescimento. Romper laços é doloroso, mas nem sempre é maligno. Isolar-me de vocês forçou meu crescimento nas relações interpessoais — e garantiu-me uma paz de espírito inédita em minha vida. Resistir ao golpe parlamentar tem sido uma experiência fascinante de auto-conhecimento através do outro. Finalmente entendi o que significa ser cristão. Não significa dar a outra face para vocês o tempo todo. Significa estender a mão para todos que são rejeitados por vocês, que são a expressão política de uma minoria gananciosa. Significa aceitar-me e poder assumir, por exemplo, que acho um homem trans bonito e que ficaria com ele. Libertei-me do fardo que vocês representavam em minha vida. Por isso, obrigado, golpistas! O ódio de vocês me uniu em amor a pessoas incríveis. E o que o amor une, o ódio não pode separar.