terça-feira, 21 de novembro de 2017

Calem a boca, brancos!

De todas as asneiras que eu li nesse dia da consciência negra, a maior veio da Ana Paula do Volêi, que abdicou da aposentadoria como uma das melhores jogadoras do país para virar animadora de torcida do golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff no Twitter. Segundo ela, os negros não devem honrar a memória de Zumbi dos Palmares. É isso mesmo: uma pessoa branca, completamente alheia ao que significa ser negro no Brasil, quer dizer aos negros quem eles devem ter como herói de sua libertação. E o ídolo proposto por ela aos negros brasileiros sequer é brasileiro.

Crianças africanas libertadas de um navio negreiro em 1868.
Como a escravidão já havia sido abolida nos EUA, elas
provavelmente estavam vindo para o Brasil.
O líder quilombola Zumbi dos Palmares (1655–1695) pode até ter sido o monstro estuprador de mulheres e escravizador de pessoas, como faz crer uma direita iletrada que aprende história com Leandro Narloch, que se quer é historiador. É até provável que ele não buscasse a libertação de todos os negros e sim apenas reproduzir sua sociedade africana — que também mantinha relações de escravidão — no território liberto de Palmares, no atual estado de Alagoas. Mas é praticamente impossível que Zumbi tivesse cometido as mesmas atrocidades que qualquer homem branco de seu tempo.

A crueldade já começava na África, durante a captura dos escravos. Os negros eram tirados do convívio de suas famílias e perdiam filhos, cônjuges, pais, irmãos, tios, primos, avós. Eles eram acorrentados pelo pé e enfiados nos porões escuros de navios onde amontoavam-se até 600 pessoas num espaço de 300–360 metros quadrados em média. Sem ventilação, a temperatura dentro dos navios negreiros podiam atingir os 50°C, o que propiciava o surgimento de doenças como disenteria e escorbuto. Dos vinte milhões de africanos que foram colocados nesses navios, três milhões jamais chegariam ao continente americano.

Ser transportado como carne a ser exportada era apenas o começo do martírio dos negros. Quando chegavam no litoral brasileiro, eram vendidos em mercados de escravos, como o Cais de Valongo, no Rio de Janeiro, e marcados a ferro quente para indicar a quem pertenciam. Este procedimento causava infecções que muitas vezes levava à morte dos escravos. Nas fazendas, as torturas eram ainda mais intensas e sádicas. O negro — constantemente vigiado e punido pelos feitores — deveria aceitar a escravidão caso não quisesse morrer no açoite.

A condição do negro de membro subalterno da sociedade brasileira era reforçada até nos pequenos aspectos. Ele era obrigado a mudar seus costumes e assimilar e venerar o Deus dos brancos 
— que, embora tivesse surgido no Oriente Médio, foi embranquecido pela Igreja Católica, que fazia vistas grossas para o tráfico negreiro — e açoitado se não o fizesse. Foi assim que surgiu o sincretismo religioso que uniu o culto aos orixás aos santos católicos, ainda hoje forte em regiões litorâneas do país, apesar da forte investida contra das igrejas evangélicas.

O negro que se recusasse a ser inferiorizado pelos brancos, para os quais era obrigado a trabalhar de graça, era colocado no tronco (nas fazendas) ou no pelourinho (nas cidades) e espancado com chicotes, varas ou barras de ferro. Os outros negros eram forçados a assistir o que acontecia com quem não se dobrasse à escravidão. Após a sessão de espancamento, jogava-se sal sobre as feridas do escravo "insubordinado" para que elas não cicatrizassem e ele e os demais pudessem sempre ver qual era o preço da insubmissão. Ele era mantido preso, servindo de "exemplo" até que o senhor de engenho tivesse misericórdia dele.

Segundo os brancos, os negros deveriam receber os três Ps: pano, pão e porrada. Muitos, devido ao excesso de tortura, eram acometidos pelo banzo, um sentimento de melancolia que levavam-nos ao suicídio, comumente praticado por greve de fome ou geofagia (ingestão de terra). Muitos acreditavam que a África esperava-lhes após a morte. O suicídio entre escravos era duas ou três vezes maior do que entre os homens livres. Também mais comum entre a população negra do que a branca era a prática de aborto e infanticídio. As mães negras preferiam ver seus filhos mortos do que passando pela mesma privação de liberdade pela qual elas passavam.

Augusto Gomes Leal com sua ama-de-leite
 Monica
(1860). Foto de João Ferreira Villela.
Segundo o historiador Luiz Felipe de Alencastro,
"o Brasil inteiro cabe nessa foto".
Os brancos não tinham mais misericórdia delas por elas serem mulheres. As negras eram frequentemente estupradas pelos senhores. Daí surge o nosso povo mestiço: da violência sexual contra as negras. Como muito bem defendem as feministas, o estupro não tem a ver com sexo e sim com poder e hoje o Brasil é um país mestiço porque os brancos violavam o corpo das negras para reafirmar seu poder sobre os escravos. Não bastasse o estupro das mulheres dos negros, os senhores de engenho ainda colocavam cintos de castidade neles, para que eles reproduzissem quando esses quisessem.

A tortura da mulher negra não parava por aí. Elas eram atacadas até em sua maternidade. Quando nascia uma criança na casa-grande, pegava-se uma negra da senzala que estivesse amamentando para servir de ama-de-leite para o filho do senhor e da senhora de engenho. Esta não podia ocupar-se de uma tarefa tão banal quanto amamentar seu próprio filho. A criança negra desmamada era privada do leite e do convívio de sua mãe, o que muitas vezes resultava em sua morte. Em alguns registros, é perceptível a saudade do filho no olhar duro das amas-de-leite para a câmera.

A vida na senzala não era uma colônia de férias, embora existam empresários criando colônia de férias inspirada na experiência brutal dos negros que foram escravizados no Brasil. Isso eu falo sem muita propriedade sobre o assunto. Sei pouco sobre a história colonial desta nação, mas penso que todo brasileiro — negro ou não — deveria saber e se envergonhar do que esse país fazia com os negros até 129 anos atrás. Está tudo documentado, assim como a presença da escravidão nos quilombos que, segundo alguns autores, em pouco se assemelhava à escravidão de negros por brancos.

Ao invés de acreditar em quem de fato pesquisa a história do Brasil, a maioria das pessoas preferem acreditar em quem tem pouca ou nenhuma propriedade para falar sobre esse assunto — graças à mídia, em grande medida, que abre espaço para figuras como a aposentada do vôlei falar sobre um tema que não lhe diz o mínimo respeito. Assim sendo, não só não conhecemos o martírio dos negros no Brasil como ainda não nos envergonhamos por ele. É o caso da minha avó que, aos noventa anos de idade, escreveu um livro onde conta que sua avó materna ganhou escravos de presente de casamento sem nenhum pudor.

Quem somos nós — brancos que não conhecemos nossa própria história — para dizer aos negros quem eles têm que ter como símbolo de luta? Calem a boca, brancos! Quem tem propriedade para dizer quem representa a luta pela libertação dos negros são os negros. Ou, no mínimo, pessoas que estudam a história afro-brasileira e não uma ex-jogadora de vôlei ou um ex-jornalista da desonesta revista Veja que decidiu escrever "história pop" para entrar na lista dos mais vendidos daquela publicação. Resta a nós, pessoas pouco entendidas sobre o assunto, reconhecermos nossa ignorância e calarmos nossas bocas — que só não passaram fome devido aos privilégios que este país historicamente dá a seus cidadãos de pele branca — e respeitar o povo negro, sua história, sua luta e seus ícones.