sábado, 25 de abril de 2020

Obrigado, Taylor

Antes de se apresentar no One World Together at Home, o especial transmitido pela Organização Mundial de Saúde e pela Global Citizen para conscientizar a audiência sobre as medidas de combate ao novo Coronavírus, Taylor Swift prometeu aos fãs uma performance memorável. E foi justamente o que ela fez. Sentada no piano de sua casa, ela interpretou "Soon You'll Get Better", uma das faixas de seu último disco, Lover (2019). A cantora e compositora havia afirmado anteriormente que jamais cantaria essa canção ao vivo, já que foi uma das mais difíceis de gravar em toda sua carreira. Ela a escreveu como forma de lidar com o diagnóstico e o subsequente tratamento de câncer de sua mãe, Andrea. Mas a canção — que nunca cita o nome da doença em questão — foi ressignificada e oferecida como um conforto para todos aqueles que estão preocupados com seus entes queridos que estão internados numa UTI devido à COVID-19. É uma forma de interpretar a performance.

Taylor foi uma das pessoas do ano da revista
Time...
Eu a interpretei como uma mensagem à totalidade das pessoas do mundo, enfermas ou não, cujas vidas foram afetadas devido à maior crise sanitária dos últimos cem anos. Para mim, foi como se ela estivesse dizendo: "Mundo, logo você vai melhorar". Mas isso foi só a forma  — talvez simplista  — que eu, que ainda não fui atingido por essa doença trágica e devastadora, recebi a mensagem. Por enquanto o novo Coronavírus só se faz presente em minha vida como uma ameaça e eu, felizmente, não sei o que é passar por essa doença. Apesar disso, ela está se aproximando cada vez mais de mim. Se antes ela estava apenas nos jornais, agora está a apenas dois graus de separação. E isso me assusta e faz de cada ida ao supermercado uma experiência amedrontadora. Isso porque, apesar da crença maniqueísta de que a doença só mata as pessoas do famigerado "grupo de risco",  ¼ das vítimas fatais tem menos de 60 anos e não apresentam nenhuma comorbidade.

Foi só depois de assistir novamente à apresentação — algo que eu tenho feito muito ultimamente, pois é algo que me reconforta em tempos de ansiedade extrema — que eu pensei nessa outra mensagem possível dela. E alguns fãs de fato reclamaram do fato da cantora não ter dito nada nem antes e nem depois da apresentação. Ela "só" cantou. Mas eu acho que foi proposital. Além de ser uma música muito pessoal para ela — e há momentos em que ela parece segurar o choro —, eu penso que ela quis deixar livre a interpretação. Cada pessoa está se relacionando com a pandemia de uma maneira, então cada um vai se relacionar com aquela canção, originalmente sobre reconfortar alguém que está numa batalha contra o câncer e que a cantora agora está oferecendo ao mundo como um conforto à crise em que estamos vivendo, de uma forma bastante íntima e pessoal. Há quem vá relacionar com a mulher que é enfermeira, já alguns vão pensar em algum parente que está na UTI lutando contra o COVID-19 e outros, como eu, vão pensar que se trata de uma mensagem de apoio mais geral.

Isso me faz pensar na importância da Taylor Swift na minha vida. No documentário Miss Americana, ela fala sobre a identificação quase imediata que acontece entre seus fãs e as letras de suas canções. É algo muito forte que acontece comigo. Não sei se pelo fato de termos nascido no mesmo ano de 1989 (eu em 13 de novembro e ela em 13 de dezembro) e passarmos por experiências de crescimento quase que ao mesmo tempo, o que ela sugere que acontece com seu público no documentário. O fato é que ela se fez presente em praticamente todas as experiências importantes da minha vida nos últimos sete ou oito anos através de sua música e durante esse momento de confinamento sanitário não seria diferente. O simples fato dela ter aparecido no evento já tornaria aquele o grande momento do One World Together at Home para mim. Mas o fato de que ela tenha escolhido uma de suas canções mais difíceis de interpretar e oferecido como conforto a todos nós, que estamos passando pelo momento mais desafiador da história recente da humanidade, o tornou ainda mais grandioso do que ele já foi.


Uma história de identificação


Não lembro ao certo quando Taylor Swift entrou na minha vida. Pode ter sido durante meu intercâmbio no Canadá em 2010, quando o PT estava destruindo o Brasil e o dólar era apenas R$ 1,70, o que me possibilitou aquela experiência. Lembro de estar no ônibus da universidade para o centro de Victória quando começou a tocar "Half of My Heart", dueto da Taylor com seu então namorado John Mayer (que ironicamente tirou a versão com ela de seu catálogo após a separação deles), na rádio. Apesar de ter gostado da canção, àquela altura eu não prestava muita atenção na cantora. Para mim, ela era apenas uma adolescente de um gênero musical que eu não gosto — o country — que escrevia músicas bobas sobre amor ou desilusões amorosas com os exs. É assim que nós somos ensinados a julgar as mulheres que fazem música na nossa sociedade. E a própria Taylor, àquela altura, já começava a denunciar a misoginia da qual era vítima. Se um homem pode escrever sobre suas exs e ser levado a sério, por que ela não poderia fazer o mesmo?

A Taylor começou a realmente chamar minha atenção durante sua transição para o pop, o que ocorreu a partir do lançamento do álbum Red em 2012. Mas era um álbum um tanto quanto confuso e pouco coeso, apesar de ter produzido algumas faixas com as quais eu definitivamente conseguia me relacionar, tais como "Red" (sobre um amor intenso que acaba de repente), "I Knew You Were Trouble" (sobre se sentir culpado por ter se apaixonado por alguém que você sabia desde o início que era errado para você), "All Too Well" (sobre começar a fazer planos e o relacionamento acabar), "22" (sobre ter 22 anos, que era minha idade na época), "We Are Never Ever Getting Back Together" (sobre não querer voltar com o ex), "The Last Time" (sobre o momento do término), "Begin Again" (sobre ter a coragem de voltar a namorar mesmo estando machucado por um término) e, principalmente, a faixa-bônus "The Moment I Knew" (sobre levar um bolo do namorado no dia da sua festa de aniversário, o que, por algum motivo, acontece sempre comigo).

Foi durante a era seguinte da cantora, emblematicamente intitulada "1989", o ano em que nascemos, que eu percebi que estava diante de uma grande compositora e letrista. Ao ponto dos críticos mais cult torcerem o nariz para o disco, mas aclamarem a versão folk dele feita pelo músico Ryan Adams. Trata-se de um cover, na mesma ordem e com mudanças mínimas nas letras, de todas as faixas da versão original da Taylor e que, devido à briga da cantora com as plataformas de streaming, era o único meio que eu tinha de ouvir ao disco no Spotify. O disco produziu faixas como "Bad Blood" (sobre amizades que terminam em rixa), "Out of the Woods" (sobre um relacionamento que passa por um período de trevas), "All You Had to Do Was Stay" (sobre namoros que acabam porque uma das partes não lutam por ele), "Wildest Dreams" (sobre se apaixonar por uma pessoa que você sabe que vai dar errado), "I Know Places" (sobre proteger um relacionamento do escrutínio dos outros) e "Clean" (que compara o término a uma enchente que lava a alma).

Após receber o Grammy de álbum do ano em 2016, Taylor passou por um período de intensa exposição na mídia. Sua imagem estava saturada junto ao público e ela começou a sofrer ataques de todos os tipos. De rixas com Katy Perry, Calvin Harris (seu ex) e o casal Kanye West e Kim Kardashian a críticas sobre apropriação cultural, promoção de padrões de beleza inatingíveis e rivalidade feminina e à forma como explorava sua vida pessoal nas letras de sua música e até ao fato de que ela não declarou em quem votou para presidente, de repente criticar Taylor Swift se tornou cool. Taylor decidiu, então, sair da cena pública. À exceção de uma colaboração com o cantor Zayn para a trilha-sonora de Cinquenta Tons Mais Escuros ("I Don't Wanna Live Forever", com a qual eu também me identifiquei após um breve e estranho relacionamento em dezembro de 2016), a cantora permaneceu reclusa até agosto de 2017, quando lançou "Look What You Made Me Do", primeiro single do projeto Reputation.

Taylor voltou explorando seu lado mais sombrio e negando as Taylors do passado — sobretudo a Taylor ingênua e romântica da era country —, para o despontamento de alguns fãs. Essa nova Taylor, que não pede desculpas pela imagem que criaram dela e, ao invés disso, a assume, acabou surpreendendo e conquistando toda uma nova legião de fãs. Apesar de ter gostado muito do single principal, durante esse período eu estava passando por um momento difícil na minha vida pessoal e não consegui me identificar muito com o álbum. Acho que, inclusive, a falta de identificação ocorreu de propósito, pois eu sabia que se fizesse isso, acabaria explorando meu próprio lado mais sombrio e não era algo que eu queria que acontecesse. Quando o último single, "Delicate", foi lançado, no entanto, eu consegui me identificar com ele pelo fato de estar apaixonado e tentando não estragar tudo demonstrando todas as minhas emoções logo de cara. Eu acabei me identificando posteriormente com o Reputation, mas pretendo explicar isso mais a frente.

Ano passado, a Taylor voltou com um single de pop chiclete ("ME!") que indicava que eu não suportaria de maneira alguma o novo projeto dela. No entanto, eu não poderia estar mais errado. Tirando essa faixa — e a maioria dos fãs também a detestam —, o disco consegue ser talvez o melhor e mais coeso da cantora até agora. A proposta é curar as mágoas do passado — o que ficou bem evidente quando ela pôs fim à rixa com a Katy Perry no clipe de "You Need to Calm Down" — e se permitir ser uma pessoa amorosa. É a cura através do amor. E é tudo o que eu precisava depois da desastrosa eleição de 2018, que levou o país a uma polarização insana entre a direita histérica e a esquerda surtada. "Vocês precisam se acalmar", diz a cantora às pessoas que brigam na internet. E eu não poderia concordar mais. Ela fala até sobre encontrar o amor em tempos de fascismo, na faixa "Miss Americana & the Heartbreak Prince". Na última faixa do disco, a cantora proclama: "Quero ser definida pelas coisas que amo, não pelas coisas que odeio ou que me causam medo ou me assombram no meio da noite. Eu acho que nós somos aquilo que amamos".

Terminar aqui seria em bom tom, mas infelizmente veio um período sombrio de identificação com o Reputation no começo de fevereiro. Passei por uma situação um tanto quanto incômoda e embaraçosa que, ao assistir ao documentário Miss Americana, percebi que se tratava de um assédio sexual. Infelizmente, até nisso passamos, Taylor e eu, por situações parecidas. Saber, através do documentário, que o tom sombrio do álbum tem a ver também com aquela experiência pela qual a cantora passou me fez conseguir, enfim, me conectar com aquele álbum. Felizmente, me encontro atualmente numa situação muito melhor do que aquele em que eu estava em 2017 — agora tenho metas e objetivos de vida — e consegui passar pelo processo de encarar esse demônio e o lado sombrio que ele despertou de maneira surpreendentemente rápida. A maior crise sanitária global dos últimos 100 anos também ajudou a tirar minha mente daquilo, embora eu acho que a questão já estava resolvida quando a quarentena bateu à minha porta.

...e da revista People.
Praticamente toda experiência humana pela qual eu passei nos últimos sete ou oito anos encontrou eco em alguma canção da Taylor Swift. E, quando não há uma canção específica para uma situação, existe alguma que pode ser ressignificada, como foi o caso de "Soon You'll Get Better" no One World Together at Home (ou, ainda, de "Only The Young", que é sobre a ascensão do fascismo, mas diz coisas como "eles não vão nos ajudar, precisamos fazer isso nós mesmos"). Isso significa não só que a cantora é uma boa letrista como também que ela consegue estabelecer uma relação de identificação única com o público. Minha história acaba sendo uma história de identificação com as letras da Taylor. Me vejo em suas canções e elas definitivamente causaram impacto na minha vida e me ajudaram a passar por momentos que sinceramente eu não sei se conseguiria enfrentar sem a ajuda de sua música. Sem saber que a cantora também passou por algo parecido e superou aquilo.

Claro que nem todos vão se identificar com as músicas da cantora. A minha experiência nesse mundo é muito particular. As questões com as quais eu tenho que lidar podem não ter grande caráter existencial ou de sobrevivência, mas são dores com as quais eu tenho que lidar e, se eu não fizer isso, provavelmente acabarei recorrendo à psicossomatização delas. Desde pelo menos 2012, a música da Taylor me ajuda a lidar com essas questões que, muitas vezes, são inéditas para mim. Ela representa um escape e, ao mesmo tempo, uma maneira de lidar com emoções com as quais eu não sei lidar muito bem porque estou experimentando-as pela primeira vez. Eu sinceramente não sei se estaria aqui hoje sem a Taylor e sua música. Sou grato a ela pela música que ela faz. Sobretudo em tempos tão incertos quanto esses em que estamos vivendo. Mal posso esperar para vê-la no Allianz Parque no ano que vem, quando toda essa loucura tiver passado. Vai ser minha forma de agradecê-la por tudo.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Como seremos julgados no futuro?

A maior parte das vítimas do COVID-19 no Brasil terá cor de pele e bairro de origem bem definidos. Serão negros e moradores de comunidades carentes. Isso ocorre devido à forma com que a sociedade brasileira foi construída historicamente. Durante mais de 300 anos de escravidão, os negros sequer eram considerados seres humanos. E, depois da abolição, tiveram o direito à moradia e ao trabalho negados. Motivo este pelo qual a maior parte da população das favelas é composta pelas pessoas de pele negra.

Segundo o estudo Mapa da Desigualdade, feito pela Rede Nossa São Paulo em 2018, um morador do bairro Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital paulista, vive em média 23 anos menos do que um habitante dos Jardins, bairro de classe alta do mesmo município. E o Estado, que deveria atuar no sentido de atenuar essa diferença, age muitas vezes no sentido de agravá-la. Ao aprovar a reforma trabalhista, por exemplo, o Estado retirou duas dezenas de direitos que os trabalhadores haviam conquistado ao longo da história. Já a Reforma da Previdência aumentou o tempo que os brasileiros precisam trabalhar com carteira assinada para garantirem sua aposentadoria no final da vida.

Isso quando os moradores das comunidades carentes conseguem trabalho com carteira assinada, porque os diversos anos de crescimento econômico limitado do país tem provocado uma explosão da informalidade, o que não lhes garante nenhum dos já escassos direitos previstos pela legislação trabalhista brasileira. Some-se a isso a precariedade do ensino e da saúde pública, a falta de opções de cultura e lazer e até mesmo o acesso limitado ao saneamento básico e temos a receita perfeita para a abreviação da vida dos moradores das inúmeras favelas do país.

Abro um parênteses aqui para citar também a violência policial. O mesmo Estado que não se faz presente para garantir uma vida digna para as populações das comunidades carentes, se faz muito presente na vida dessas pessoas através de seu braço armado para reprimi-las de maneira brutal e garantir a "ordem" prevista em nossa bandeira — ou seja, que a atual estrutura social do país, estabelecida ainda durante o período da colonização, permaneça imutável para sempre. 

É criminoso que em meio à maior crise sanitária dos últimos cem anos, lugares como Paraisópolis lutem com a falta de água encanada a noite e que mais de 140 comunidades do Rio de Janeiro estejam sem acesso a água potável como um todo. (Esgoto, a maioria desses lugares nunca nem teve). Não bastasse a incapacidade do Estado em garantir que boa parte de sua população pratique o ato mais básico quem contém a infecção pelo Coronavírus — lavar as mãos —, os moradores das comunidades carentes do Brasil sequer podem se higienizar de outra forma, já que também são os primeiros a sentirem o impacto da opressão econômica. O preço do álcool em gel aumentou de maneira abusiva e o produto já sumiu das prateleiras até dos supermercados de bairros de classe média.

Além disso, existe o problema das moradias precárias e praticamente contíguas umas às outras. Há casos de 11 pessoas que moram juntas na mesma casa, o que impossibilita que o isolamento social de um metro e meio entre as pessoas ocorra de fato. Se apenas uma das pessoas for contaminada, todas as outras serão e isso pode dizimar famílias inteiras. Isso sem mencionar que muitas dessas pessoas vivem em invasões, que podem ser desocupadas pelas já mencionadas forças repressivas do estado a qualquer momento, ou correm o risco de serem despejadas de suas moradias devido à falta de pagamento de aluguel.


Uma alternativa


O Estado tem que ser responsabilizado pela situação à qual relega sua população mais pobre. É criminoso que ele não garanta a vida de pelo menos 14 milhões de habitantes e a pandemia do COVID-19 desnudou seus crimes contra essa parcela da população. Infelizmente, essa parece ser uma política de Estado desde que o Brasil é Brasil. Colônia, Império, República, ditadura, democracia, não importa o sistema ou a forma de governo, nada parece mudar para as populações marginalizadas desse país. É totalmente compreensível o sentimento de impotência dessa população.

Mas nós, que temos algumas condições, não podemos ficar indiferentes diante da omissão de um Estado que cada vez mais assume seu caráter criminoso e genocida. Nós podemos e devemos fazer algo!

A Central Única das Favelas (CUFA), entidade não-governamental criada há mais de 20 anos e presente em todo o país, está arrecadando doações para o projeto "Mães da Favela", que pretende oferecer cartões de crédito com o valor de R$ 240 — a ser liberado em duas parcelas de R$ 120 — para as moradoras de comunidades carentes de todo o Brasil para que elas e seus filhos possam sobreviver durante esse período que, além de todos os problemas já citados acima, acrescentou-lhes ainda o desafio de permanecer sem renda durante a quarentena.

A fome não espera. As urgências dos moradores das favelas são imediatas e não podem esperar que o  Estado, comandado de maneira mesquinha pelo atual governo, libere o auxílio emergencial — que, pasmem, em muitos casos está sendo sequestrado pela própria Caixa para quitar dívidas dos correntistas com o banco. Como diz a apresentadora Eliana em vídeo publicado no perfil da CUFA nas redes sociais, enquanto nós pensamos nos próximos meses, as mães da favela estão pensando nos próximos dias e no que elas terão para oferecer a seus filhos.

É possível ajudar acessando a página do projeto, que aceita doações de valores a partir de R$ 30 e aceita pagamentos através de cartão de crédito, boleto bancário e PicPay. Graças às comodidades que temos atualmente em nossas mãos, não é necessário nem mesmo sair de casa para ajudarmos. 

Viver em sociedade também significa ajudar os membros dessa sociedade que precisam. Num mundo ideal, essa ajuda viria do Estado, que existe para organizar a sociedade. Mas o Estado brasileiro existe para garantir os privilégios da elite. Então, cabe a nós mesmos, exercermos esse papel. Como bem diz o astronauta Scott Kelly, que escreveu um artigo no New York Times com dicas sobre como sobreviver à quarentena, "todas as pessoas estão inevitavelmente interconectadas, e quanto mais pudermos nos unir para resolver nossos problemas, melhor nos sairemos". Ele cita, inclusive, os benefícios à saúde para quem ajuda os outros — já comprovados em pesquisa — e que pode ajudar a prevenir contra o COVID-19.

Creio que seremos julgados no futuro, enquanto sociedade, pela forma como cuidamos uns dos outros e, principalmente, dos mais vulneráveis. Os tempos atuais são desafiadores e eu entendo o sentimento de impotência, mas sempre existem pessoas que estão mais impotentes do que nós. A tecnologia existente hoje nos permite ajudar quem precisa sem sequer sair de casa. É um desperdício não usar os recursos à nossa disposição, tanto tecnológicos quanto financeiros, para não tentar criar um impacto positivo nas vidas de pessoas que foram abandonadas pelo Estado, ainda mais agora que elas  mais precisam de nós.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Ainda não é tarde para aceitar a História

Semana retrasada, um pouco antes do segundo turno das eleições, assisti a um episódio do desenho animado She-Ra que é uma alegoria perfeita sobre a ascensão do fascismo a qual vivemos atualmente no Brasil. Exibido há pouco mais de 33 anos nos Estados Unidos, a atualidade do episódio é assustadora. E me admira que uma geração que cresceu vendo esse desenho agora apoie um cara que flerta abertamente com o fascismo. Isto é, para mim, uma aberração cognitiva. Mas não acreditem em mim, confiram a sinopse do episódio e vejam se não é verdade o que estou afirmando.

Os rebeldes Adora (disfarce de She-Ra) e Arqueiro vão numa escola ensinar às crianças a verdade sobre a Horda. Eles contam às crianças que Etéria era um planeta próspero e feliz antes da invasão e da dominação dos soldados da Horda. Um menino chamado Cory desafia-lhes. Ele acha que a verdade histórica é uma mentira e que o revisionismo promovido pela Horda é que é a verdade. Após uma visita de soldados, que constatam o teor "doutrinário" das aulas, à aldeia, a Horda decide censurar os livros didáticos e controlar o conteúdo ministrado durante as aulas.

Ainda mal-informado sobre a Horda, Cory aceita se tornar um informante desta organização. Sua primeira ação é delatar a professora, que mesmo demitida ainda dá aulas de História escondido para as crianças da aldeia. Ela é presa por este crime de opinião, mas acaba sendo resgatada da prisão e levada para um lugar seguro por She-Ra. Seus alunos, ainda apegados à sua maneira de lecionar, rejeitam às aulas do interventor da Horda, que se limita a ler uma cartilha que falseia a verdade na sala. Elas são ameaçadas de internação num centro de lavagem cerebral e, com medo, alertam os rebeldes.

Cory informa a Horda que as crianças alertaram os rebeldes sobre a internação compulsória delas e eles são presos assim que chegam na aldeia para resgatá-las. Apesar dos serviços prestados à Horda, os soldados também levam a irmã de Cory para o centro de lavagem cerebral. É então que ele descobre que ele nunca será um membro da Horda e que só foi usado pelos soldados para que esta instituição se perpetuasse no poder. Suas ações fizeram com que sua irmã e dezenas de crianças fossem tiradas de seus pais para que aprendessem "a verdade" sobre a Horda por alguns meses.

Percebendo a manipulação à qual foi submetido, Cory se redime libertando os rebeldes que foram presos devido a sua delação. Estes, por sua vez, resgatam as crianças e, no fim do episódio, recebem um pedido de desculpas de Cory. Segundo ele, sua crença fiel na "verdade" da Horda se devia à sua preguiça de estudar história. Por fim, o Geninho — um personagem que sempre aparece no final de cada episódio para comentá-lo —  ensina às crianças sobre o direito à informação: as pessoas devem ter acesso a qualquer livro que elas desejam ler, desde que eles sejam adequados à sua idade, é claro.

É triste constatar que o presidente-eleito do Brasil discorda do Geninho. Em sabatina no Jornal Nacional, ele pediu a censura nas escolas de um livro de educação sexual destinado a pré-adolescentes que nunca sequer fez parte do currículo escolar. Eis o nível em que chegamos enquanto nação: um personagem de desenho animado fictício entende mais de liberdade de expressão do que o futuro presidente de carne e osso de nossa nação. Infelizmente, no entanto, as possíveis analogias entre essa peça de ficção animada e a realidade de carne e osso não param por aí.

Cory se assemelha aos seguidores do presidente-eleito, que rejeitam a verdade factual dos acontecimentos para acreditar cegamente na "verdade" disseminada por seu líder. Livros considerados "impróprios" pela Horda são censurados nas escolas assim como O Diário de Anne Frank foi censurado aqui no Brasil porque, numa determinada passagem da obra, a narradora descreve como é sua vagina. Soldados da Horda invadiram a escola por discordarem da crítica de uma professora ao autoritarismo assim como a Polícia Militar do Rio de Janeiro invadiu uma instituição universitária que se posicionou contra o fascismo. O currículo escolar foi modificado pela Horda para evitar que os alunos se tornassem seres conhecedores da verdade assim como o "Escola Sem Partido", em pauta há algum tempo, visa calar professores que estimulam o pensamento crítico de seus alunos. Isso sem mencionar a proliferação de fake news pelo WhatsApp que vimos durante as eleições.

Todas essas possíveis analogias entre desenho e realidade não são uma mera coincidência. She-Ra era um desenho que buscava alertar às pessoas sobre os perigos do autoritarismo. Não é para menos, visto que ele era produzido durante a Guerra Fria, numa época em que a URSS — assim como os EUA em menor escala, durante o macartismo dos anos 1950 — buscava se perpetuar no poder através da manipulação da verdade e da perseguição à liberdade de expressão, algo que é sentido na Federação Russa, acostumada com a tirania de seu atual governante, até os dias de hoje. 

As práticas anti-liberais da URSS, que dizia às pessoas o que ler, o que escutar e no que acreditar, foram denunciadas por um jovem Fernando Haddad antes mesmo desta acabar. Em 1990, sua tese de mestrado argumentava que a revolução soviética não havia sido socialista por não ter emancipado o cidadão russo. Mas a manipulação durante as eleições foi tamanha que o candidato defensor da liberdade de expressão foi pintado como uma "ameaça comunista" e o candidato censor de livro juvenil foi pintado como o "libertador" que vai salvar o país de uma ameaça comunista imaginária. 

Só espero que o brasileiro médio, assim como Cory, tome consciência da manipulação da qual está sendo vítima. Eu acredito que ainda não é tarde para que ele perceba que pessoas autoritárias e violentas estão se perpetuando no poder graças à sua ignorância no que diz respeito à verdade dos fatos históricos e que — tal como Cory — ele será descartado assim que esse projeto de poder for concluído. Espero que ainda não seja tarde para ser como Cory e tomar consciência do mal que está sendo causado a milhares de pessoas, que estão tendo suas liberdades tolhidas, pela adesão cega a líderes políticos que só se sustentam no poder graças à manipulação e à mentira. Ainda não é tarde para aceitar a História, espero.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Crítica: Agamenon está mais vivo do que nunca

A peça Homens e Caranguejos, apresentada no dia 23 pelo Coletivo Cênico Joanas Incendeiam de São Paulo, é um espetáculo incrível. Sua concepção visual, com um cenário de carrinhos de reciclagem que se transformam em palafitas, é fascinante. Mas o texto, baseado na obra homônima de Josué de Castro, consegue ser muito mais. Ele mexe com todos os nossos sentidos. É possível sentir a dor do pai que acabou de perder o filho engolido pela correnteza do Rio Capibaribe. Em outro momento, é possível sentir a alegria do menino que brinca tão feliz no mangue do Recife sem saber que existe um mundo de luxo a poucos quilômetros de distância dali.

Inspirada no movimento realista do século passado, a peça tem um forte caráter de denúncia social. Também pudera. O médico nutrólogo Josué de Castro foi presidente do conselho executivo da FAO, órgão das Nações Unidas para a alimentação, e um dos grandes ativistas no combate à fome na região do semiárido brasileiro. Devido à sua militância política e social, teve seus direitos políticos cassados após o golpe civil-militar de 1964. Logo em seguida, em 1967, escreveu Homens e Caranguejos, seu único romance, como uma denúncia ao problema que não merecia a devida atenção dos ditadores militares e da sociedade civil que mantinha-os no poder.

Narrando, em tempo psicológico, a história de uma família de retirantes que sobrevive à fome no interior do Nordeste para tentar a vida no Recife, a peça utiliza a figura mitológica do rei grego Agamenon como alegoria para os mandatários que, além de não fazerem nada para aliviar o sofrimento do povo pobre, ainda querem expulsá-los de suas casas para dar espaço ao “progresso”; progresso este que, embora esteja cravado na bandeira, ainda é um direito acessível a poucos brasileiros. Agamenon matou dezenas de troianos para recuperar Helena de Troia e sacrificou sua própria filha durante a guerra. O que torna sua escolha ainda mais significativa se considerarmos o caráter feminista do Coletivo Cênico Joanas Incendeiam, formado apenas por mulheres. 

Em Homens e Caranguejos, a tragédia, gênero teatral desenvolvido pelos gregos, se mistura com a tragédia da realidade de miséria que castiga a vida de muitos brasileiros. Nesta tragédia do século XX (ou XXI), pai e filho ganham a vida catando caranguejos no mangue. Para o desespero do pai, a criança não está tão interessada em seguir carreira como catador de caranguejo. O menino brinca na lama suja do mangue e sonha em depor o déspota Agamenon com a ajuda de um vizinho idoso, já debilitado. Esse movimento pela mudança social tem seu auge com a chegada do boi-calemba – ou boi-bumbá, festa originária da lenda do boi voador do Recife – no mangue, quando ficção e realidade se misturam com um grito de “viva Marielle Franco” pelo menino. 

Isso fez com que a pergunta que já estava em minha cabeça, ficasse ainda mais forte: quem seria Agamenon? Seria Geraldo Alckmin, da terra das atrizes? Seria Paulo Câmara, governador do Pernambuco que, como o rei da peça não hesita em desocupar os pobres de áreas públicas para trazer o “progresso” para o Recife? Seria o general Castello Branco, ditador da época em que o texto de Josué de Castro foi originalmente escrito? Para uns será até mesmo Lula ou Dilma, que apesar de suas boas intenções sucumbiram a um sistema político fisiológico e corrupto. Mas não consigo deixar de pensar que Agamenon seja Michel Temer, o responsável por colocar o Brasil de volta no mapa da fome compilado pela mesma FAO de Josué de Castro. 

Enquanto “Agamenon” se reúne com empresários e parlamentares para decidir como o povo pode pagar ainda mais pela crise dos ricos, pobres são desocupados de suas casas pelas forças de repressão estatal para darem espaço a condomínios de luxo, crianças brincam em manguezais sujos, adultos não veem alternativa senão colocarem seus filhos para trabalhar mesmo correndo o risco de serem penalizados por esse mesmo Estado que vira-lhes a cara enquanto eles passam fome. E também meninos morrem afogados em enchentes. Pensando bem, talvez “Agamenon” não seja só Temer, talvez sejamos todos nós que, por ação ou por omissão, permitimos que ele continue no poder e que cenas como essas, retratadas num texto de meio século atrás, continuem sendo comuns na realidade do Brasil.

O texto, infelizmente, é atemporal. Após uma aliviada durante os anos Lula e Dilma, a fome agora volta a assolar os rincões do país. Enquanto isso, nos grandes centros urbanos como o Recife, a miséria se torna cada vez mais evidente conforme vendedores e pedintes se multiplicam e disputam espaço nos sinaleiros. É interessante que, num cenário de golpes à democracia, aos direitos civis e humanos e às próprias iniciativas de combate à fome (com o anúncio de cortes ao Bolsa Família no orçamento do ano que vem), o Coletivo Cênico Joanas Incendeiam tenha decidido resgatar justamente esse texto. Num cenário de sacrifício do direito de muitos em prol do benefício de poucos, a alegoria do autoritário e insensível rei Agamenon se apresenta mais viva do que nunca. Em cada um de nós.

sábado, 17 de março de 2018

Quero ser possuído e não posse

É interessante assistir a um filme antigo e se surpreender com a atualidade de algum tema que é retratado ali. Isso ocorre, sobretudo, com obras que tratam, como assunto principal, das relações humanas. É difícil destruir conceitos enraizados há séculos na sociedade e a ideia patriarcal de que o amor implica na posse da mulher pelo homem é uma delas. Para o patriarcado, a mulher deve ter como meta de vida se casar e, depois disso, cessar de existir enquanto um ser humano independente. Ela não só tem que adotar o sobrenome do marido como deve abdicar de seus sonhos e prazeres a favor dos sonhos e prazeres dele. Foi só com a entrada das grandes potências na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que foi permitido à mulher trabalhar. Mais por uma questão estratégica — necessidade de mão-de-obra enquanto os homens lutavam — do que ideológica.

Mariam sonha com a vida luxuosa dos passageiros do
trem que passa por sua cidadezinha.
Em Possuída (1931), produzido antes da censura que o escritório do católico Joseph Breen impôs aos filmes, Joan Crawford interpreta Mariam Martin, uma jovem que trabalha numa fábrica de caixas em alguma cidade do interior dos Estados Unidos e que sonha em pertencer à alta sociedade nova-iorquina. Um dia, voltando de seu trabalho entediante, ela conhece um milionário que promete ajudá-la caso ela vá para a cidade. Mariam chega em casa bêbada e o namorado matuto repreende-a. A cena é uma das mais belas que eu já vi. O namorado diz a Mariam que ela não pode perseguir seus sonhos na cidade grande, ao passo que ela responde-lhe: "Você não é meu dono, minha vida pertence a mim". "Você vai bagunçá-la", retruca o rapaz. "Ainda pertencerá a mim", desafia a garota. A mãe dela entra no meio da discussão para dizer que os pensamentos da filha assustavam-na.

Eis que Mariam começa um discurso avançado demais para 1931, que ainda mantém-se relevante em 2018: "Se eu fosse um homem, não te assustaria, você acharia certo que eu saísse de casa e conquistasse tudo o que eu pudesse na vida e usasse qualquer meio para consegui-lo", diz. Sua mãe não deveria tratá-la diferente, argumenta a moça, pois "o meio que os homens têm é o cérebro e eles não têm medo de usá-lo". Após o confronto, Mariam vai para Nova York e começa um relacionamento com o charmoso advogado solteirão Mark Whitney (Clark Gable), que a mantém financeiramente. Como naquela época ainda não existia o conceito de namorada como o entendemos hoje em dia, Mariam seria vista como uma "amante" caso a imprensa descobrisse sobre ela. E como o advogado possui pretensões políticas é melhor que ela aceite a discrição, o que lhe incomoda.

"Se eu fosse um homem, não te assustaria".
Mariam finalmente conseguiu realizar o seu sonho de inserir-se na alta sociedade, ainda que dependesse de um homem para isso. Afinal de contas, ainda eram os anos 1930. Mas a cena em que Mariam enfrenta o namorado que quer que ela se conforme com menos é um prenúncio do avanço da mentalidade feminina sobre os relacionamentos que estava por vir: as mulheres querem ser possuídas por um amor e não ser posse de um homem. Daí o título do filme, não no sentido de quem está na posse ou no poder de alguém, mas que é tomado pelo amor. Inclusive tive de pesquisar no dicionário os vários significados da palavra após assistir ao filme, pois o entendimento que eu fazia dela não combinava em nada com a história que eu tinha acabado de ver. (Pensei tratar-se, como no filme homônimo de 1947 com a mesma atriz, da história de uma mulher possuída pela loucura).

Mariam não é posse. Ela é livre dos homens. Por mais que ela ame Mark, não tem medo de seguir sua vida sem ele. Quando ela abandona-o, é impossível não pensar na máxima "se você ama alguém, deixe-o ir, se ele não voltar é porque nunca te amou". A relação entre Mariam e Mark não é uma de posse, embora ele sustente-a em segredo. Ela é um agente ativo da relação, sendo jamais mostrada como uma personagem passiva. Ela aceitou o arranjo porque queria os luxos que uma vida na alta sociedade poderia propiciar-lhe. No entanto, ela começa a amar o advogado, o que pode ficar na frente do projeto político dele — que incluía tratar os prisioneiros do Estado como seres humanos, outra questão avançada demais para 1931 e que mantém-se relevante em 2018. Quando Mark desiste da política para ficar com ela, Mariam se afasta dele.

"A reforma prisional envolve questões que estão fora dos
muros das prisões", diz Mark. Já se passaram quase 90 anos
dessa cena e as pessoas ainda não perceberam isso.
Mariam entende que Mark não pode ser posse exclusiva dela. É como se ela pensasse: "eu já consegui o meu sonho, agora deixa ele conquistar o dele" — que é, inclusive, um sonho que pode ser bom para a coletividade, o que torna seu gesto ainda mais altruísta. A heroína do filme entende que amar significa querer o melhor para o outro, mesmo que isso signifique nosso afastamento da pessoa amada. Ela é possuída pelo amor, mas não é escrava (posse) dele e se recusa que seu parceiro também o seja. Possuir, no outro sentido do dicionário, não tem nada a ver com amor; tem a ver com escravidão. E a escravidão psicológica, da qual Mariam se nega a ser perpetuadora, é terrível, pois nada te prende no plano físico e, ainda assim, você não é livre, pois se encontra preso no plano espiritual. Você até tenta se livrar de suas correntes invisíveis, mas não consegue, pois se sente seguro preso a elas.

Assim como Mariam, decidi não me deixar acorrentar por ninguém, nunca mais. Caso ocorra de aparecer um novo amor em minha vida, deixarei que ele me possua no sentido de me desfrutar; será uma relação de companheirismo e não de posse. Demorei vinte e tantos anos para descobrir o outro significado da palavra "possuir", que a maravilhosa roteirista Lenore Coffee já sabia em 1931, quando adaptou a peça The Mirage de Edgar Selwyn para este filme (escrevi sobre a importância do universo feminino ser escrito por mulheres nesse outro texto). Não sei se Mariam era incrivelmente liberta na peça — de 1920! — como o é no filme, mas sua versão para as telas acabou se tornando uma precursora do movimento feminista e me ajudou a perceber o quão errado eu estava em minhas pré-concepções sobre o amor. O que eu quero é ser possuído e não a posse de alguém. Já deveria saber disso, mas não tive acesso às representações mais corretas sobre o tema e nem aos exemplos mais sadios na vida real. Mas ainda estou no meu tempo. Antes tarde do que nunca quando se trata de descobrir as verdades da experiência humana saudável.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Poema: Saiba que (Para que continue a me amar)

Verso 1
Você me trouxe uma novidade
Obrigado, agradeço a sinceridade
Segundo você. as coisas mudaram
Faz sentido, pois as flores murcharam
Agora nossas chances se acabaram
O tempo passou
O amor terminou


Refrão
Mas saiba que vou procurar seu coração 
Em qualquer lugar aonde você o levar 
No frio e no escuro, no calor e no clarão 
Sua alma eu vou procurar 
Vou te enfeitiçar 
Para que continue a me amar

Verso 2
Por que você me procurou?
Foi por sua causa que tudo começou
Você me atraiu e você me tocou

Não deveria ter sido fácil ao me entregar
Afinal, eu não sei muito bem como jogar
Para que continue a me amar

Verso 3
Me dizem que hoje em dia funciona dessa maneira
Que agem uns com os outros como se fosse brincadeira
Mas eu não sou os outros

Antes que nos afastemos
Antes que nossa história descartemos

Refrão
Saiba que vou procurar seu coração 
Em qualquer lugar aonde você o levar 
No frio e no escuro, no calor e no clarão 
Sua alma eu vou procurar 
Vou te enfeitiçar 
Para que continue a me amar

Verso 4
Cantarei em línguas para te louvar
Viajarei pro campo para te lavrar
Vou no terreiro consultar meu orixá
Sem titubear, farei o que ele mandar
Para que continue a me amar


Verso 5
Em rei me proclamarei
E, que fique, ordenarei

Me transformarei num jogador
Para conseguir te satisfazer
Jogarei suas partidas com esplendor

E isso vai te satisfazer
Serei ainda mais belo e meu nome brilhará
E, assim, sua chama renascerá

Em ouro, vou me transformarPara que continue a me amar

segunda-feira, 12 de março de 2018

O país do tapa-sexo

Há algumas semanas, conforme o Brasil celebrava o carnaval — festa de origem pagã regada a muito sexo e álcool que precede o período de penitência da quaresma — a jornalista Eliane Brum conduziu uma extensa entrevista com o artista Wagner Schwartz. No final de setembro do ano passado, ele foi acusado de pedofilia ao se apresentar durante a abertura do 35° Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Durante a performance La Bête, inspirada em obra de Lygia Clark, o artista mantém-se nu no meio de um palco e convida a plateia a manipular seu corpo como se ele fosse um boneco. A performance gerou uma onda de ódio ao artista na internet após uma criança, levada pela mãe ao museu, ser filmada interagindo com o artista. Assim como havia acontecido anteriormente com a mostra Queermuseu, suspensa em várias cidades após ser acusada de promover a homossexualidade para menores de idade, boa parte do ódio contra Schwartz partiu de militantes do Movimento Brasil Livre (MBL).

Esse tipo de nudez não ofende a moral e os bons costumes
do Movimento Brasil Livre e de seus seguidores.
Em novembro, a polêmica chegou a níveis próximos do realismo fantástico. A CPI dos Maus Tratos à Criança e ao Adolescente do Senado Federal, que discutia os limites da arte e ouviu os curadores do Queermuseu, aprovou a condução coercitiva de Wagner Schwartz para depor no plenário. O artista foi alvo da medida arbitrária após declarar que não poderia participar voluntariamente da CPI por estar em turnê na França. Ele recorreu da decisão dos senadores no Supremo Tribunal Federal (STF) e teve sua condução coercitiva barrada pelo ministro Alexandre de Moraes. Para começo de conversa, os senadores nem deveriam estar discutindo qual o valor artístico de obras de arte num país onde a liberdade de expressão é cláusula pétrea da Constituição. Se as instituições estão funcionando normalmente desde o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, como insiste em dizer a presidenta do STF, então por que diabos os senadores agem como ditadores com artistas? Embora tenha feito, nesse caso, o papel de herói contra o avanço do fascismo, o próprio STF tem responsabilidade pelo acossamento de artistas.

Alexandre de Moraes, antes de assumir a cadeira deixada vaga pela suspeitíssima morte de Teori Zavascki, era o ministro da Justiça do governo golpista e vazou informações da Polícia Federal para o MBL. Alimentou o monstro que agora, para desviar o foco do governo de Michel Temer, o mais impopular da história do Brasil e talvez do mundo, empreende uma campanha a favor da moral e dos bons costumes nas apresentações artísticas. Mas nunca foi a intenção de tucanos como Alexandre de Moraes fomentar o fascismo à brasileira, que agora atinge níveis alarmantes. Eles patrocinavam grupos como o MBL para difundir, na sociedade, o discurso moralizante apenas da política. Foram ingênuos em achar que radicalizariam o brasileiro médio e que o ódio deste acabaria no momento em que o PT saísse do poder. Criaram o terreno para tipos como os presidenciáveis homofóbicos Jair Bolsonaro e Flávio Rocha. O PSDB, na ânsia de tirar o PT do poder, criou e alimentou uma onda fascista que agora vai contra a plataforma liberal do partido no campo dos costumes e que terá cada vez mais dificuldade de conter.

Uma invenção tipicamente brasileira.
A comoção proto-fascista gerada pelo MBL no segundo semestre do ano passado — muito útil para desviar o foco do presidente Michel Temer, que na época enfrentaria o julgamento da segunda denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal contra ele na Câmara dos Deputados — teria sido muito menor se Schwartz estivesse usando uma tanga ao invés de ter ficado completamente nu. Talvez ele não tivesse sido acusado de pedofilia. Ou então até tivesse sido, mas por um contingente bem menor de brasileiros "do bem" indignados com a suposta depravação moral presente nas artes. Inclusive penso que, se fosse esse o caso, muitos dos que acusaram-no de pedofilia teriam defendido-o, dizendo aos mais raivosos: "mas que bobeira, nem pelado ele estava". Mas, para o desespero geral da nação, o órgão genital do artista estava exposto. Como o desfile das escolas de samba do carnaval do Rio de Janeiro nos demonstra, o brasileiro médio aceita ver quase tudo em termos de nudez, desde que o sexo esteja estrategicamente escondido pelo bem das criancinhas. O MAM-SP deveria ter seguido o código da LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro), essa sim ciente da hipocrisia gritante que constitui a sociedade brasileira.

Mas por que a nudez se fez necessária na performance? Entendo-a como uma forma do artista mostrar-se vulnerável para o público, como se esse pudesse fazer o que bem entender com seu corpo. Afinal de contas, era essa a proposta de La Bête, não era mesmo? Schwartz escolheu apresentar-se nu porque pensou estar num país democrático que respeita a liberdade de expressão artística. Ingenuidade dele. Seu pênis — para ele ou para mim — é apenas mais um pedaço de pele e carne, não menos ofensivo do que um pé ou uma mão. Mas não o é para a maioria dos brasileiros, para os quais o MBL fala desde que os convenceu de que tudo o que o Brasil precisava era de um impeachment de base legal duvidosa, visto no exterior como um golpe frio, para nossas vidas melhorarem. A única intenção do coreógrafo com sua performance era provocar na plateia um questionamento sobre os limites do corpo humano e, também, gerar um sentimento de empatia. Ele queria que seu público pudesse enxergá-lo em sua vulnerabilidade e, assim, ser gentil ao manuseá-lo. Esse é um sentimento que o brasileiro médio, incitado por hordas fascistas como o MBL, não exercita há um bom tempo — se é que algum dia já o exercitou. 

Sim, o artista expôs seu pênis. E não cabe ao MBL ou à bancada evangélica do Congresso Nacional querer dizer a ele como ele deve se apresentar. O pênis é uma parte do corpo humano que pelo menos metade da nossa população — e mais da metade dos senadores — possui, não sendo mais sujo do que uma mão. Por que tanta hipocrisia ao lidar com ele? Será que nossa hipocrisia é tamanha que nossos representantes no Senado vão impor o uso de tapa-sexo nas apresentações feitas em museus e demais espaços mantidos com verba pública? Aliás, nada expõe tanto a hipocrisia do nosso país quanto o fato de termos inventado esse tipo de vestimenta. O tapa-sexo é uma invenção brasileira para que as escolas de samba burlassem a regra da LIESA que as impediam de mostrar nudez total na Marquês de Sapucaí. O regulamento foi baixado no começo dos anos 1990 depois de desfiles polêmicos organizados pelo carnavalesco Joãosinho Trinta. Mostrar o corpo é aceitável, desde que ele esteja milimetricamente coberto para não ofender pudores cristãos que insistem se impôr numa festa originalmente pagã e numa sociedade oficialmente laica.

A emissora evangélica, que exibe cenas como essa à tarde,
está preocupadíssima com a exibição de nudez para crianças.
A hipocrisia é tamanha que é possível ver corpos seminus até mesma na maior emissora evangélica do país, a Rede Record, que promoveu uma verdadeira cruzada contra artistas que ela mesma chamou de "degenerados" em seus programas jornalísticos à época do incidente no MAM-SP. Há anos a emissora em questão explora o trabalho de W. Veríssimo, especialista em pintar corpos nus, cujos órgãos genitais ele esconde com minúsculos tapa-sexos em sua programação, inclusive em programas transmitidos no horário em que crianças estão acordadas. Assim como luta por uma arte "oficial", o jornalismo no Brasil deixou se ser o simples relato de fatos para se transformar na criação de uma narrativa única. A mesma que tornou possível o impeachment sem base legal de uma presidenta eleita com mais de 50 milhões de votos sem maiores questionamentos por parte da população em geral. Também foi graças à existência de uma narrativa oficial, sem espaço para questionamentos, que Adolf Hitler pôde convencer os alemães de que existia uma "arte degenerada" (Entartete Kunst) em seu país e convencê-los a lutar contra ela.

Os curadores do Queermuseu, Wagner Schwartz e o MAM-SP desrespeitaram o código de conduta moral do brasileiro médio. Este aceita a seminudez presente nos desfiles das escolas de samba durante o carnaval e nas ondas da Globo ou da Record. A mulata pode se expôr para o deleite masturbatório do público, em especial aquele formado por homens brancos de meia-idade, desde que um tapa-sexo mantenha a sua decência milimetricamente coberta para não chocar as criancinhas que possam estar vendo aquele programa na televisão. Esse mesmo público, no entanto, se levantou contra o pênis de Schwartz, apresentado num espetáculo lúdico e sem qualquer caráter sexual. Além de não entender que o pênis é esteticamente menos aceito do que a vagina para o brasileiro médio, ele desrespeitou a regra do tapa-sexo — expressão maior da nossa hipocrisia — e foi punido por isso. Afinal, precisamos proteger nossos pequenos deixando-os na ignorância. Assim, perpetua-se o abuso sexual de crianças que não podem aprender na escola (sem partido), na televisão ou no museu o que são vaginas e pênis. O país do tapa-sexo condena a si mesmo à perpetuação da violência sexual devido à hipocrisia. E ainda diz que está fazendo isso para combater a pedofilia!