quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Que gritem, Chico!

Não queria mais escrever nenhum texto esse ano. Mas sinto-me na obrigação de comentar o episódio ocorrido com Chico Buarque, talvez o maior intelectual vivo do Brasil na última segunda-feira na saída de um restaurante no bairro carioca do Leblon. O cantor, compositor e escritor saía do local com alguns amigos ilustres, entre eles o cineasta Cacá Diegues, o músico Edu Lobo e o jornalista Eric Nepomuceno, quando foi abordado por uma trupe de desocupados filhos da elite, do tipo que só países extremamente desiguais como o Brasil produzem, questionando o posicionamento político do artista. O grande feito de um deles foi ter namorado a atriz Cléo Pires; do outro, ser filho do Álvaro Garnero e ter dado um selinho no ex-jogador de futebol Ronaldo. O primeiro defende o ataque ao cantor, dizendo não entender como um cara inteligente como Chico Buarque pode apoiar o PT. Geralmente o não-dito fala mais do que o dito. Ele, na verdade, não consegue entender como pode um cara tão rico como Chico Buarque não reconhecer a hierarquia social do Brasil. Na cabeça deles, o poder político pertence aos filhos dos ricos como eles mesmos, Aécio Neves ou Donald J. Trump.

Chico Buarque em protesto contra a ditadura militar.
Chico Buarque é, de fato, uma anomalia política. Nasceu na elite, estudou nos melhores colégios, come nos melhores restaurantes. Mas, por alguma razão, decidiu combater o cancro brasileiro. Como todos nós, Chico cresceu e vive na "Belíndia" (bairros nobres dignos da Bélgica e favelas iguais às da Índia), mas decidiu denunciá-la desde cedo em sua obra, o que lhe valeu a perseguição do regime militar, que confiscou todas as cópias do compacto simples de "Apesar de Você". Com sua enorme sensibilidade de poeta, Chico se sente insultado com o que, para os demais herdeiros da Casa Grande, é normal. E enxergou no PT uma forma de transformar tal sociedade injusta. Apesar de não ter rompido com o modelo capitalista brasileiro, que distribui o dinheiro de nossos impostos para bancos privados e da torcida contra da mídia nacional, os governos do PT aumentaram a renda dos mais pobres em 129% e tiraram o Brasil do mapa da fome da ONU. Nos anos 1980, a fome era tão intensa no Nordeste que crianças do sertão nasciam com massa encefálica reduzida e Chico organizou uma versão local de "We Are The World", intitulada "Nordeste Já", para ajudar as vítimas da seca. 

Trinta anos se passaram desde o "Nordeste Já" e a realidade brasileira mudou. Talvez não tão intensamente quanto desejássemos, mas ela mudou. 2015 foi o ano mais quente da história do planeta e, pela primeira vez, nenhum dos nove estados do Nordeste declarou estado de calamidade pública por causa da seca. Pode-se discordar do PT o tanto que for, mas dizer que o Brasil não mudou ou que piorou desde 2003 é de uma desonestidade intelectual sem tamanho. Mas os playboys cariocas, assim como a versão deles no Senado (Aécio Neves) ou no Partido Republicano (Donald Trump), não desejam discutir fatos. Querem discutir pessoas, fazer ataques pessoais baseados em preconceitos. Isso é perigosíssimo, porque é assim que surge o nazismo. A classe dominante da Alemanha conseguiu convencer o povo de que os judeus faziam parte de uma superclasse que controlava as finanças do país do mesmo jeito que agora os aecistas querem nos convencer de que os petistas são a raiz de toda a corrupção no Brasil e os partidários de Trump defendem que os muçulmanos são a raiz de todo o terrorismo mundial.

Se Chico tem alguma responsabilidade pelos desvios do PT, então qualquer eleitor do PSDB tem responsabilidade pela construção de dois aeroportos por Aécio na fazenda de seus parentes. Todo eleitor do PSDB tem responsabilidade pela compra de votos feita por FHC para aprovar a emenda da reeleição. Todo eleitor do PSDB tem responsabilidade pela nomeação de Paulo Roberto Costa ao cargo de presidente de gás e petróleo da Petrobras. Era essa a indagação implícita que estava contida na resposta irônica de Chico a seus inquisidores: "eu acho que é o PSDB que é ladrão". Ou seja, o partido do Aécio, colega de balada do papai de Alvarinho, não é nenhum santo no puteiro e a discussão política no Brasil deve superar, para o bem de toda nação, a lógica pré-escolar do "o seu partido é mais corrupto do que o meu". Mas eu acho que os leitores da Veja não têm a capacidade cognitiva para entender isso. Para eles, o mundo se divide em dois pólos o "do bem" (nós / elite) e o "do mal" (eles / povo), e toda e qualquer pessoa que vota no PT é má, mesmo que seja um cara íntegro e honesto como Chico Buarque. Não foi à toa que um dos slogans de José Serra em 2010 foi "Serra é do bem".

Bogart e Bacall marchando em Washington, D.C.
contra o macartismo.
O serviço que a Veja presta ao país é semelhante ao do Senador republicano Joseph McCarthy nos EUA dos anos 1950. Foi de sua inquisição aos comunistas que surgiu o termo macartismo, que agora voltou à tona com a perseguição de Donald Trump a mexicanos e muçulmanos. No final da Segunda Guerra Mundial, conforme o mundo se tornava cada vez mais refém de uma ordem bipolar, Josef Stálin passava de "nosso companheiro" para "nosso inimigo" segundo a propaganda americana. Os roteiristas ligados ao Partido Comunista dos EUA deixaram de ser louvados por seus esforços de unir americanos e soviéticos na guerra para serem denunciados como anti-patrióticos. Afinal de contas, o que eles supostamente desejavam era promover uma Revolução Bolchevique que derrubasse o governo. Logo uma histeria tomou conta da sociedade americana. Dashiel Hammett, Lillian Hellman, Dalton Trumbo e até mesmo Lucille Ball, ninguém estava a salvo da sanha de McCarthy. Alguns, como Humphrey Bogart e Lauren Bacall, tentaram reagir, mas foi o jornalista Edward Murrow da CBS o responsável por lembrar aos americanos que eles têm o direito constitucional de escolher o partido de sua preferência.

Aqui no Brasil, a cópia patética da CBS que é a Globo faz é alimentar o macartismo. Para o telespectador da Globo, a corrupção surgiu depois do escândalo do mensalão e só é praticada pelos membros de um único partido: o PT. A corrupção existe em todos os partidos, até mesmo no PSOL. É inerente aos grupos sociais. Ainda mais no sistema capitalista, onde o status é adquirido pela acumulação de riquezas. Ninguém diz: "já acumulei o bastante, agora vou parar". A intenção é ter (ou pelo menos parecer ter) sempre mais, porque é acumulando que se adquire status. No entanto, quando mais gente passa a ter (ou pelo menos mais gente parece ter) como é o caso do Brasil pós-PT, a elite se sente ameaçada. Ela só tem status na sociedade por causa do dinheiro. Enquanto o Bolsa Família estava sendo usado para comprar apenas comida, a elite estava tranquila. Quando uma mãe insinuou na televisão que estava usando o dinheiro para comprar calça de marca para a filha, a elite começou a ficar apreensiva. Era preciso, então, usar seu exército fiel que é a classe média (que respeita e obedece a elite porque deseja ser ela) para amedrontar as pessoas e instaurar o macartismo no país.

O que será desse país eu ainda não sei. Mas só sei que precisamos reagir. Já alertei para isso antes e continuarei alertando quantas vezes for preciso. "Ninguém pode aterrorizar uma nação inteira sem que todos nós sejamos seus cúmplices", disse Murrow certa vez. O silêncio dos bons é tão nocivo quanto os gritos dos maus, já dizia o reverendo Martin Luther King. Quem melhor descreveu o que está ocorrendo com o debate político no país foi o cineasta Cacá Diegues: "Esta cena de repressão nazista é um exemplo do que está acontecendo no Brasil: a absoluta intolerância. As discussões políticas estão indialogáveis. A disputa política se transformou em duelo. Eles não queriam argumentar, só xingar". Os playboys do Leblon temem que as conquistas sociais do Brasil se aprofundem e que logo a sociedade perceba os inúteis que eles realmente são para a coletividade. Não produzem nada, não geram emprego ou renda. Vivem da mesada de seus pais famosos. É preciso parar esse processo de "desindianação" do Brasil. Nem que seja através da calúnia, da difamação, da ameaça vermelha. Nem que seja no grito. Pois que gritem, então! De qualquer forma, vão entrar para a história do Brasil como Joseph McCarthy e seus colegas entraram para a dos EUA: como um bando de oportunistas histéricos.

Poema: Desde que você foi embora

Desde que você foi embora
Não ranjo meus dentes mais
Joguei suas cartas fora
Faço o que quero, em paz

Desde que você foi embora
Me tornei uma pessoa mais calma
Joguei o ciúme e a raiva fora
Encontrei o silêncio na minha alma

Desde que você foi embora
Voltei a rir e ser eu mesmo, me reencontrei
Se preciso me negar para alguém, tô fora
Achei o amor verdadeiro e me entreguei

Obrigado pelo sofrimento
Pus minha vida em movimento
Obrigado pela aflição
Lido melhor com a frustração
Obrigado pela dor
Encontrei o verdadeiro amor

Desde que você foi embora
Posso ser quem eu realmente sou, mil em um
Joguei o garoto inseguro fora
Vivo sem expectativa, meus dias são um a um

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

O evangelicalismo está embrutecendo o Brasil

Relutei em escrever esse texto. Primeiro porque não quero correr o risco de soar como aqueles trogloditas que estigmatizam as comunidades minoritárias. Segundo porque o propósito da minha escrita não é ofender ninguém. Desejo questionar ideias e não pessoas. No entanto, penso que precisamos, enquanto nação, discutir o movimento evangélico, que vem mudando drasticamente não só o perfil religioso do Brasil, como também seu perfil societário e comportamental. Conforme o país adota cada vez mais o evangelicalismo como doutrina religiosa, bancadas conservadoras crescem nos espaços de formulação de políticas públicas, tensões religiosas entram em estado de ebulição e o discurso do senso comum se torna cada vez mais intransigente com quem é visto como pecador — não raro são pessoas que já se encontram a margem da sociedade como indígenas, homo e transsexuais e usuários de drogas.

Cunha saiu desse Congresso.
Em 2015 o Congresso mais conservador desde a redemocratização tomou posse e, junto com ele, um número inédito de deputados evangélicos. Logo em seguida, foi eleito o também evangélico Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para a presidência do Poder Legislativo nacional. Cunha e a maioria dos deputados evangélicos — um exceção notável é a também carioca Benedita da Silva, do PT — defendem, por um lado, projetos de lei que dão mais liberdade à atividade econômica (lei da terceirização) e, por outro, restringem as liberdades individuais (fim do acesso à pílula do dia seguinte no SUS e do reconhecimento de famílias formadas por casais homoafetivos). Isso demonstra o quão o evangelicalismo brasileiro é alinhado ao americano, para o qual o sucesso financeiro seria uma dádiva de Deus àqueles que creem nele. Isso só não explica porque a maioria dos moradores de rua são cristãos e não ateus.

O Tea Party, embora não seja oficialmente um movimento político de cunho evangélico como o Revoltados Online, atua no mesmo sentido. Defende o fim do intervencionismo do Estado na economia enquanto enche o Congresso americano de políticos evangélicos como Carly Fiorina e Ben Carson, que são brilhantes ao questionar os direitos das minorias, mas omitem-se em questionar os escandalosos benefícios dos mais ricos. Ambos são pré-candidatos á presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano. O neurocirurgião Carson seria o rosto de uma nova direita: apesar de ser negro, é conservador no campo dos costumes e liberal na economia. Uma tentativa de reaproximar os negros do partido que, num passado distante, libertou-os da escravidão. Contudo, a maioria deles apoia os pré-candidatos democratas Hillary Clinton e Bernie Sanders. Carson é visto como um negro que deu sorte e agora representa a minoria rica como ele e não os negros do gueto. 

Apesar de sua retórica da meritocracia, da qual seria um exemplo vivo, o candidato desagrada aos negros menos por defender a plutocracia e mais por ser percebido como um fanático religioso, que chegou até mesmo a contradizer arqueólogos para sustentar sua fé. Os evangélicos, após anos propagando o ódio contra os grupos mais excluídos da sociedade americana na política, conseguiram se tornar politicamente inviáveis. Mesmo tendo sido os principais responsáveis pela vitória de Ronald Reagan na eleição presidencial de 1980, hoje são a parcela da população que mais desperta a desconfiança do eleitorado em geral. Um quarto dos eleitores americanos — que são, em sua maioria, protestantes (21,2%), católicos (20,8%) e não-religiosos (22,8%) — afirma que não votaria num candidato evangélico para a presidência da República. Só não conseguiram os muçulmanos,  os ateus e os socialistas em rejeição.

No Brasil, no entanto, o movimento evangélico ainda está em trajetória ascendente, embora, penso eu, figuras polêmicas como Silas Malafaia, Edir Macedo, Valdemiro Santiago, Marco Feliciano e o próprio Eduardo Cunha contribuem para a saturação do mesmo. Aqui em nosso país convencionou-se, por ignorância e preconceito, chamar todo e qualquer cristão que não fosse católico de "evangélico", o que distorce o real número de adeptos do evangelicalismo. As denominações luterana, anglicana (da qual faço parte), presbiteriana, metodista e batista em nada se assemelham à leitura do Evangelho proposta pelas igrejas evangélicas. Como o próprio nome sugere, trata-se de uma tentativa de fazer uma leitura mais literal da palavra de Cristo. Buscam seguir os primeiros cristãos — que na verdade eram judeu-cristãos, pois não haviam rompido por completo com o rabinato —, como se fosse possível aplicar as normas sociais vigentes em Israel do século I no Brasil de vinte séculos depois.

A tentativa de "purificar" o cristianismo, de fazê-lo retornar a suas raízes, gera anomalias sócio-comportamentais. A repressão sexual imposta pela moral cristã evangélica consegue a façanha de ser ainda pior do que a católica. Porque a interpretação deles diz que Jesus era contra a homossexualidade e o amor livre, querem impor essa interpretação para todos. Desejam impor ao Brasil a sharia cristã. Quem nunca ouviu um fiel evangélico dizer que a Bíblia é mais importante do que a Constituição? É muito cômodo apontar os horrores do Daesh (ISIS), que deseja criar um Estado Islâmico entre a Síria e o Iraque e fecharmos os olhos para o projeto de poder semelhante de alguns líderes evangélicos. Os militantes islâmicos são loucos por se sujeitarem a uma dinâmica social onde o prazer é pecado e a vida limita-se a observar as leis de Deus escritas por homens há milhares de anos. Mas só os islâmicos, os evangélicos radicias não?

Métodos diferentes, mesmo propósito.
Graças a Deus, nem todo evangélico é assim. A rejeição a estudos, análises e interpretações da palavra de Deus à realidade concreta dos fiéis não ocorre em todas as igrejas evangélicas, assim como nem todos os seguidores de Maomé desejam subjugar os seguidores de outras religiões.  Da mesma forma que há uma ímã mulher em Los Angeles, há pastores evangélicos gays. Nem todo evangélico crê na necessidade de se engajar numa jihad (guerra santa) contra os valores que percebem como contrários à palavra de Deus para propagar o Evangelho de Jesus Cristo. No entanto, são as figuras mais barulhentas, odientas e explosivas que chamam mais a atenção da população em geral para o movimento evangélico. Por que entrevistar um teólogo esclarecido como Ricardo Gondim se o pregador do ódio Silas Malafaia dá mais ibope? A imprensa também tem sua parcela de culpa na proliferação do discurso de ódio entre os evangélicos.

Mas a quem serve um Evangelho que oprime as criaturas de Deus? De que adianta seguir o carpinteiro humilde da Galileia que salvava adúlteras do linchamento e condenava o acúmulo de riquezas se hoje aplaudimos o homem que espanca a esposa infiel pega no motel com outro e valorizamos os bens materiais mais do que nossas próprias vidas? A Reforma Protestante, sem a qual nenhuma dessas igrejas existiriam, surgiu da revolta contra a mercantilização da fé e também contra as doutrinas, regras e normas inexistentes na Bíblia inventadas pelos bispos de Roma — tais como o celibato de sacerdotes, a proibição do divórcio e a virgindade perpétua de Maria. E, por falar em Maria, é interessante notar que a repressão religiosa recai sempre de forma mais severa sobre os corpos femininos. Não foi à toa que 15 mil mulheres marcharam na Avenida Paulista contra o projeto de poder de Eduardo Cunha, que não prevê o aborto em casos de estupro. 

A alguns líderes evangélicos não basta orientar suas próprias fiéis quanto à questão reprodutiva. Querem regular os corpos de todas as brasileiras, sejam elas católicas, protestantes, espíritas, judias ou ateias. O Brasil deve retroceder vários anos enquanto nação e se livrar da pílula do dia seguinte e do aborto. Não porque a comunidade científica regulou que são invasivos. Mas porque uma parcela minoritária da comunidade religiosa nacional se incomoda com tais métodos que, embora invasivos, evitam o nascimento de crianças que podem ser abusadas, maltratadas e abandonadas por mães que não lhes queriam, o que traz consequências desconhecidas para a coletividade. Interessante notar que a violência sexual contra as mulheres propriamente dita — motivos pelos quais o SUS distribui pílulas do dia seguinte e realiza abortos — parece não incomodar esses líderes religiosos. Condenam mais o aborto do que o estupro que leva as mulheres a procurar tal procedimento.

Charge de Vitor Teixeira.
A liberdade de culto garantida por nossa Constituição federal não é absoluta. Um conceito interessante do Direito é que nenhum direito termina em si mesmo e pode se sobrepor sobre os demais. É o famoso "o meu direito acaba quando começa o do outro" no ditado popular. O cidadão pode escolher, sem moléstia, se quer seguir uma religião. Mas ele não pode querer impor sua religião sobre as religiões dos demais cidadãos. A partir do momento em que líderes religiosos passam a decidir o que professores devem ensinar na sala de aula, que medida o SUS deve adotar para atender mulheres vítimas de estupro e quais arranjos podem ser considerados famílias, observa-se uma invasão do Estado laico por forças religiosas, estranhas ao Direito. Tais forças atuam em defesa da visão de mundo de apenas alguns em detrimento da coletividade, ampla e plural.

Aos poucos, o evangelicalismo embrutece o Brasil. Seus líderes radicais querem substituir a defesa do bem estar — seja de mulheres vítimas de estupro ou de crianças que podem ganhar um lar com um casal gay — pela interpretação que a igreja deles fazem do Evangelho. Interpretação essa que não é consensual nem mesmo entre os teólogos. Ao contrário da Constituição, a Bíblia admite várias interpretações. Na minha igreja, por exemplo, entende-se há mais de 15 anos que Jesus não rejeitou os homossexuais. De fato, não há uma menção sequer à homossexualidade em nenhum dos quatro Evangelhos — há em escritos posteriores, de autoria de homens que, ao contrário de Jesus, eram falíveis, e em escritos anteriores, como o Levítico, que o próprio Jesus violou. Por que então é a visão da Assembleia de Deus e não a da Igreja Episcopal Anglicana que deve ser ecoada na legislação brasileira? O Estado ser laico significa que ele deve respeitar ambas as visões, e não colocar uma acima da outra, observando sempre o princípio maior que é a garantia da dignidade humana.

Não é do pôster que a tropa de Cunha quer se livrar.
O que interfere na vida de um evangélico se há membros de outras doutrinas religiosas que se relacionam com pessoas do mesmo sexo e abortam? Ora, se eles acreditam que a homossexualidade e o aborto são pecados, que não cometam nem um nem outro. Devem respeitar os outros como eles os respeitam. Duvido que um militante gay ou feminista se julgaria apto a ensinar o padre a rezar a missa, ou melhor, o pastor a celebrar o culto. A tentativa de impor um único ponto de vista sobre os demais, sobretudo através da violência, seja ela simbólica (episódio do chute na santa ou quando Malafaia disse que gays mereciam apanhar) ou real (agressões a praticantes de religiões afro e destruição de seus templos), é o primeiro passo rumo ao fascismo. Cabe a nós, cristãos moderados, lutar contra o embrutecimento que impõem ao Brasil. Devemos agir enquanto é tempo, porque o que os radicais querem não é se livrar do pôster exposto nos corredores da Câmara que mostrava Daniela e Malu se beijando. Eles querem é se livrar delas!

domingo, 20 de dezembro de 2015

Jornalismo de torcida

Minha mãe me contou que, zapeando os canais da televisão fechada na última segunda, acabou ouvindo o seguinte de Cristiana Lobo, uma das apesentadoras da Globo News: "se os protestos [a favor do impeachment] tivessem sido maiores, Dilma estaria em apuros". Ora, mas não foram. Atenha-se aos fatos. O jornalista deve amar os fatos, pois esta é a matéria-prima de seu trabalho. Com certeza Cristiana deve ter ouvido isso de seus professores no curso de jornalismo da Universidade Federal de Goiás (UFG), que digo sem hesitar que é o melhor do estado. Mas ela foi obrigada a se esquecer disso assim que passou a vender sua mão-de-obra para uma empresa que, embora se diga jornalística, cada dia preza menos pela realidade dos fatos.

Quando nos tornamos assinantes da Globo News aqui em casa, no início da década passada, Roberto Marinho ainda era vivo, Ali Kamel ainda não era o déspota da Central Globo de Jornalismo e a emissora era qualquer coisa menos a cópia mal-feita da FOX News em que se transformou. Não era apresentada, no canal, a realidade do Kamel, e sim as diversas realidades do Brasil e do mundo. A linha editorial era claramente de centro-direita, mas era possível ter acesso a outras visões de mundo. Jamais vou me esquecer de uma entrevista com a ativista social canadense Naomi Klein, musa da esquerda altermundista. À época, a direita brasileira ainda não se deixava pautar por figuras iletradas como Olavo de Carvalho e permitia o mínimo de debate inteligente.

Isso começou a mudar, no entanto, a partir de 2009. Nessa altura, Lula já havia escolhido Dilma Rousseff para sucedê-lo e a emissora passou a adotar uma postura abertamente hostil à pré-candidata, ao Partido dos Trabalhadores e, por conseguinte, a toda a esquerda em sua cobertura do universo político brasileiro. Choquei-me quando foi apresentada a (então) nova comentarista de política do canal de notícias, Lucia Hippolito. Uma mulher sem bagagem intelectual, rancorosa em relação ao partido do qual fez parte na juventude e que frequentemente usava termos chulos para atacar políticos que lhe desagradavam. Uma versão local de Ann Coulter da FOX News. Parei, então, de assistir à Globo News porque sentia-me atacado. A emissora não só decidiu não representar mais quem seguisse as ideias da esquerda como também passou a nos atacar como inimigos.

A situação chegou a tal ponto que um historiador carioca, comentarista habitual do canal de notícias, decidiu parar de conceder entrevistas ao mesmo devido a sua tentativa de caracterizar jovens manifestantes de esquerda do Rio de Janeiro como delinquentes. Não há mais realidades. Há a realidade do Kamel. E ela é sombria, distópica e contribui para que o público ache que a realidade também é assim. Numa pesquisa recente, os brasileiros foram apontados como o 3° povo mais ignorante do mundo. Os entrevistados não conseguir citar corretamente dados socioeconômicos do país, como nível de distribuição de renda ou poder de compra do salário mínimo. Ligamos a televisão na Globo News com o pretexto de nos mantermos informados, mas isso não só não ocorre como ainda ficamos ainda mais ignorantes quanto à realidade que nos cerca.

Somos o terceiro povo mais ignorante do mundo.
Recentemente a Folha de S. Paulo, propondo-se a analisar o Brasil pós-PT, publicou dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que confirmam que, nos últimos doze anos, todos os brasileiros tiveram aumento em seus níveis de renda, descontada a inflação; em especial os mais pobres, cujo aumento foi da ordem de 129%. São dados que, segundo o jornal, jamais ocorreram na história do país. Acompanhando a matéria, uma reportagem, uma pesquisa do Instituto Datafolha que diz que, para 68% dos entrevistados, o Brasil não mudou após os governos do PT. O jornal optou por trazer na chamada de capa o dado negativo e representante da realidade falsa. Como se quisesse debochar do nosso posto na lista dos povos mais ignorantes do mundo a respeito de nossa própria situação.

O resto da mídia – Globo News incluída – seguiu o jornal, preferindo enfatizar a percepção ao invés da realidade. A mídia comercial brasileira deixou de fazer jornalismo, que nada mais é do que reportar fatos, para fazer torcida anti-PT. Todo e qualquer dado que possa desmerecer os doze anos de governo petista tem uma ênfase descomunal. Já os dados que possam favorecer o governo são escondidos. A realidade vai sendo moldada para parecer que moramos no pior dos mundos possível. E as pessoas, confiando na autoridade dos jornais, acreditam nessa realidade paralela, distópica. A mídia comercial presta um desserviço à sociedade. Se soubéssemos a verdadeira dimensão de nossos problemas, talvez pudéssemos enfrentá-los com mais propriedade. 

Aos patrocinadores da mídia comercial, como Vale e Bradesco, não interessa que o povo brasileiro saiba a real dimensão do problema da queda da barragem de Mariana (MG) nem a quantidade de dinheiro público que vai para os bancos. Por isso, as Cristianas estão mais preocupadas com hipóteses e suposições. Tornamo-nos espectadores da torcida anti-PT dos grandes jornais, para os quais o fim do Brasil é iminente. Por mais absurdo que pareça, os fatos deixaram de ser importantes nas redações. Na construção da realidade anti-PT vale qualquer coisa – como uma pesquisa que atesta nossa ignorância em relação à nossa realidade – para pintar um cenário apocalíptico que vai derrubar a Dilma. Só não vale o princípio fundador do jornalismo: a fidelidade à realidade dos fatos concretos.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

2015: Ano de denunciar a corrupção... dos outros

A moda do ano de 2015 na política foi vestir a camisa da seleção brasileira e ir para as ruas protestar contra a corrupção. A parcela da população que nunca esteve aí para a política nacional decidiu que acordou, que cansou e que daria um basta à roubalheira do governo. Roubalheira esta que acontece desde que o Brasil foi usurpado dos indígenas pelos portugueses no século VXI e tornou-se, oficialmente, Brasil. A roubalheira não gerava protestos quando o presidente comprou deputados por R$ 200 mil cada. A súbita indignação dos manifestantes com a corrupção tem essa mania de não atingir os escândalos envolvendo outros partidos que não sejam o PT. O mensalão foi uma brincadeira de criança perto do rombo do metrô de São Paulo, um dos mais cheios e ineficazes do mundo. Nenhum manifestante, no entanto, se diz preocupado com a morosidade das investigações no Ministério Público de São Paulo, sempre tão prestativo aos políticos do PSDB e seus aliados.

O presidente Clinton chegou a sofrer impeachment na Câmara
por mentir ao Congresso. O Senado, no entanto, absolveu-o.
Já contra a corrupção do PT, vale até mesmo aliar-se a corruptos. Para derrubar a presidente Dilma Rousseff por um suposto crime de responsabilidade fiscal cometido por todos os gestores públicos, de Marconi Perillo a Geraldo Alckmin, vale a ajuda de Eduardo Cunha, que disse numa CPI do Congresso que não possuía conta bancária no exterior. Alguns meses depois, o Ministério Público Federal recebeu, de presente dos promotores suíços, extratos bancários da conta do presidente do Congresso no país alpino. Mentir em CPI é crime. O ex-presidente norte-americano Bill Clinton foi processado e sofreu uma tentativa de impeachment por tal motivo. Disse, numa investigação do Congresso, que jamais tinha mantido relações sexuais com sua ex-estagiária Monica Lewinsky, que mais tarde revelou à imprensa o sêmen de Bill num de seus vestidos. Trair a primeira-dama é imoral, mas não é crime. Mentir para o Congresso é.

A atual mandatária brasileira pode até ter cometido algo imoral com as chamadas "pedaladas fiscais", mas não cometeu um crime, ao contrário de Eduardo Cunha. A lei responsabiliza o secretário do Tesouro Nacional por repasses irregulares de recursos a órgãos estatais. Mas os manifestantes gostam de pensar que Dilma é uma espécie de Deus, onipotente e onipresente no cenário político nacional. Se o colégio estadual vai mal, a culpa é da Dilma. Se o posto de saúde municipal está caindo aos pedaços, a culpa é da Dilma. Como é que a Dilma não sabia da roubalheira da Petrobras? A Operação Lava Jato já dura mais do que as novelas da Rede Record e, mesmo assim, nenhum dos corruptos e corruptores presos jamais denunciou a presidente numa de suas delações premiadas. Caem deputados, senadores, diretores da estatal e jamais levantou-se suspeição sobre Dilma. A única suspeição foi aquela da Veja na véspera da votação, valendo-se de declaração falsa atribuída a Alberto Youssef.

Eu mesmo tenho uma série de restrições à política econômica do Governo Dilma II. Dilma, que era apontada como estatista demais na campanha de 2010, rompeu consigo mesma e agora faz um governo acanhado, controlado pelos bancos e sem ouvir as demandas de seus 54,5 milhões de eleitores. Na campanha, ela acusou Marina Silva de querer tirar o prato de comida da mesa dos brasileiros com sua proposta de entregar a formulação da política econômica aos bancos. Ao assumir, a presidente nomeou o homem de confiança do Bradesco para formular a política econômica do país. Vieram os cortes no Orçamento e a sólida base de apoio que Dilma havia conquistado para si no final de outubro de 2014 esfacelou-se. Talvez ela pensou que poderia conter os ânimos dos eleitores oposicionistas se começasse a aplicar a política econômica proposta pelo PSDB. Não só não conseguiu o apoio deles, como perdeu o que já tinha.

Isso, no entanto, não é motivo para derrubar um governo sob o regime em que vivemos; o presidencialismo. No parlamentarismo, cabe ao Legislativo decidir se um governo continua ou não. Se a maioria dos deputados avaliar que a política econômica é ruim para o país, pode derrubar o governo. Foi assim que Margaret Thatcher foi eleita primeira-ministra do Reino Unido. Os trabalhistas costuraram uma coalizão com os nacionalistas escoceses mas, quando eles voltaram-se contra o governo, este perdeu o apoio necessário para aprovar seus projetos e foi derrubado pelo parlamento. Novas eleições foram convocadas e a oposição ganhou. Isso ocorre porque no parlamentarismo o chefe de governo é oriundo do legislativo. Não aparecia o nome "Margaret Thatcher" nas cédulas dos eleitores britânicos. Ela venceu as eleições internas de seu partido e, assim, garantiu o direito de governar caso seu partido recebesse a maioria dos votos.

No Brasil, não é assim que funciona. O chefe de governo é eleito diretamente pelo povo para governar por um período determinado; no parlamentarismo pode haver eleições antes da data estabelecida se o governo não conseguir o apoio do parlamento para aprovar seus projetos. No presidencialismo, embora importante, tal apoio não é necessário. Ronald Reagan governou oito anos com um Congresso hostil a sua administração. O Brasil já teve três presidentes em um ano. Foi para evitar situações assim e para garantir que a decisão soberana do povo em eleições livres e democráticas fosse respeitada que o legislador constituinte impôs regras tão rígidas para a derrubada de governos. O povo elege o presidente e o povo pode derrubá-lo. No entanto, mediante apresentação ao Congresso Nacional de denúncia comprovada de que o mandatário cometeu um crime. Quem diz isso não sou eu, é a Constituição.

Caiado adora denunciar o mensalão... dos outros, é claro!
A Carta Magna não prevê impeachment por motivo de política econômica ruim e tampouco por baixa popularidade. Se assim fosse, FHC deveria ter sido derrubado quando seu índice de popularidade também atingiu a casa de um dígito devido a sua incapacidade de lidar com a crise econômica do início da década passada. Mas nada disso importa para as pessoas preocupadas em combater a corrupção do PT. Parar carro de som no meio da ciclofaixa, como os manifestantes fizeram no domingo, não é corrupção? O dia em que marcharem contra toda a corrupção de todos os partidos e não aceitarem em suas manifestações atos que violem o Código Brasileiro de Trânsito nem a presença de gente como Ronaldo Caiado, que recebia um mensalinho do Bumlai, podem me chamar que eu vou. Mas enquanto estiverem achando que o inferno são os outros, me esqueçam. Não sou adepto de macartismos. E, dado o baixo número de manifestantes do último protesto (virtualmente inexistente fora de São Paulo), parece que o povo brasileiro também não é.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Poema: Não sou imbecil

Meu amor, o que aconteceu?
Não conversa mais, você mudou
Parece até que alguém morreu
Você está frio, se distanciou

Você está aqui, mas estou sozinho
Um lar nossa casa não é mais
Caí do ninho, tô sem carinho
Você sai e me deixa pra trás

Não sou um imbecil
Sei que há algo acontecendo
Você chega, meu coração vai a mil
Nosso amor está morrendo
Não deve demorar
Pra você me deixar

Se você quer ir embora
Então por que não me diz?
Não jogue nossa amizade fora
Ainda podemos ter um final feliz

Sei que tudo sempre chega ao fim
Mas você é meu melhor amigo
Terminar vai ser o meu fim
Pensava até em ter filho contigo

Quer saber, vá
Fique com o outro lá
Meu coração está a mil
Mas eu não sou imbecil

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Wall Street aplaude líder congressista corrupto que alimenta impeachment no Brasil para se salvar


O presidente da câmara baixa do Congresso do Brasil, Eduardo Cunha, voltou ao assunto, levando adiante o pedido de impeachment da presidente na quarta-feira. Wall Street comemorou a notícia, ao elevar os fundos iShare MSCI Brazil (EWZ), o negócio mais quente do mercado nessa quinta-feira, em quase 2,5% no fechamento.

Cunha cerrou fileiras com Dilma não porque ela está atolada
em escândalos, mas porque ele é parte do escândalo.
Infelizmente, ninguém além dos investidores de longo prazo tem algo a comemorar. Essa semana, a Goldman Sachs alertou que o Brasil estava além da recessão e agora enfrenta uma depressão. Uma das razões para a inércia econômica é o ponto morto no Congresso. Parece que todos na elite política em Brasília agora são criminosos procurados. Cunha com certeza é um deles. Membro do Partido do Movimento Democrático (PMDB), Cunha cerrou fileiras com o governante Partido dos Trabalhadores (PT) não porque este está atolado nos escândalos da Petrobras, mas porque ele mesmo é parte do escândalo e a presidente Dilma Rousseff e seu vice do PMDB, Michel Temer, não fizeram nada para impedi-lo de ser acusado de lavagem de dinheiro e outros crimes de colarinho branco. Na verdade este é o homem que o mercado e alguns nas ruas brasileiras aplaudem (nota do blog: na verdade Temer seria um dos articuladores do impeachment).

Um juiz (N.B.: promotor, na verdade) no Brasil acusou Cunha de receber US$ 5 milhões em propinas na Petrobras de uma firma de lobby que trabalhava para os parceiros de construção da gigante do petróleo. Ele negou que tinha dinheiro numa conta bancária suíça. Mas autoridades suíças descobriram o dinheiro e reportaram-no às autoridades brasileiras.

Dilma pode muito bem ser um pesadelo. Mas pelo menos nenhuma corte ou investigador policial ouviu nas confissões das dúzias de homens presos na operação da Petrobras que Dilma permitiu que a entidade governamental cometesse fraude.

O que ela fez, no entanto, segundo o Tribunal de Contas, foi maquiar as contas do governo brasileiro. É nisso que Cunha decidiu apostar suas fichas. Antes que o martelo ponha fim a sua carreira política, ele decidiu arruinar a de Dilma. É isso que as pessoas estão comemorando: um teatro político que não trará nada de positivo a curto prazo. Talvez o Congresso deveria se unir para arrumar essa bagunça? Esqueça. Para que serve o Congresso além de estercar as coisas?

"Nossa reação inicial é que esse evento vai trazer mais volatilidade e incerteza, ao invés de aliviar as preocupações do mercado", diz Bruno Rovai, analista de renda fixa da Barclays em Nova York.

A habilidade de Dilma governar a essa altura já está ridiculamente baixa. Isso coloca a relação entre os poderes Executivo e Legislativo numa posição bastante prejudicial.

Vários fatores tornam longe de ser claro se o processo de impeachment será aprovado na câmara baixa do Congresso. O que ele realmente faz é adicionar mais barulho à já turbulenta agenda do governo brasileiro e aumenta a probabilidade de que mais agências de crédito, nomeadamente a Fitch e a Moodys, irão reclassificar a dívida soberana brasileira para sucata.

Manifestantes anti-PT têm pouco a comemorar.
Manifestantes anti-PT segurando efígies de Dilma em uniforme de prisão têm pouco a comemorar. No melhor cenário deles, a eleição do ano passado seria anulada e uma nova eleição provavelmente colocaria o social-democrata (PSDB) Aécio Neves no palácio presidencial com o ex-banqueiro central Armínio Fraga no comando da economia. Isso faria o mercado feliz, mas por pouco tempo. Não esqueçamos que o PSDB também teve dificuldade em gerenciar a crise da dívida brasileira no final dos anos 1990 e estava no bolso de trás do FMI. Fraga estava no Banco Central na época. A inflação superava os dois dígitos, mais do que a atual taxa de 9,5%.

Assim que a admissão do processo de impeachment for publicada, Cunha irá organizar uma comissão de investigação para verificar as alegações contidas no pedido e preparar uma petição final a ser votada no plenário da Câmara.

"Achamos muito improvável que tal petição estará pronta antes do recesso parlamentar que começa em 22 de dezembro", diz Rovai. "Se não estiver, o pedido de impeachment só poderá ser votado em fevereiro e nada garante que os desdobramentos da Lava Jato não irão mudar a configuração do Congresso, como demonstrado pela prisão do senador Delcídio Amaral na semana passada, aumentando a incerteza do processo".

Cunha pode nem sobreviver também, conforme as investigações sobre sua participação no chamado esquema Lava Jato da Petrobras estão em andamento. As coisas também não estão boas para ele. Não precisa ser gênio para entender porque ele está tão ansioso para remover Dilma de seu cargo.

Cunha dá credibilidade zero a todo o processo. Sua carreira está atualmente ameaçada por uma decisão a ser tomada pelo conselho de ética nesta quinta-feira, 8 de dezembro (N.B.: a reunião do conselho foi adiada novamente). Se o conselho decidir removê-lo de seu cargo, fica incerto se o processo de impeachment sequer obterá qualquer tração. Além disso, Cunha disse que o pedido de impeachment a ser apresentado cobrirá apenas as contas de 2015, que ainda não foram analisadas por completo pelo Tribunal de Contas e estão longe de serem aprovadas ou rejeitadas pelo Congresso, já que o ano ainda não acabou.

Por último, há o PT. O Brasil e Wall Street se esqueceram do quão indisciplinados esses caras podem ser. Eles estão no poder, atualmente, por 13 longos anos, pelo menos 8 dos quais de muito sucesso graças, em parte, a fatores externos. O PT irá recorrer de qualquer processo de impeachment até à Suprema Corte.

Em última análise, o efeito do [impeachment] nas perspectivas fiscais ainda é negativo, se ela permanecer ou for embora. Isso porque a agenda política terá muito pouco espaço para discutir e votar as medidas fiscais e de ajuste no orçamento no ano que vem graças a esse espetáculo de feira apresentado por um suspeito de fraude na câmara baixa do Congresso.

O processo de impeachment vai destruir a razão, já na sarjeta.
O processo de impeachment será longo e tornará as coisas piores para os brasileiros comuns. Vai destruir a razão, já na sarjeta. Mais incerteza não ajuda no momento. O barulho político, com Cunha, uma máquina humana de barulho, apresenta riscos descendentes para as estimativas consensuais de queda de 3,5% do PIB nesse ano e de 2,8% no ano que vem.

O Brasil está, de fato, numa depressão. Impedir Dilma não vai tirá-lo dela. Impedir Dilma a mando de um Congresso liderado por um homem que ajudou a Petrobras a perder 80% do seu valor de mercado nos últimos cinco anos não só faz com que os brasileiros pareçam bobos, mas dá ao PT e seus amigos sindicalistas razão para se intrometer caso a oposição assuma.

Cunha pediu o impeachment com a bênção de três juristas proeminentes e do PSDB. O processo marca uma derrota política fundamental para as políticas de Dilma dos últimos quatro anos. Sua taxa de aprovação está num recorde negativo de 10%, em maior parte devido ao escândalo da Petrobras e não às medidas de austeridade, em relação às quais a opinião do mercado continua confusa.

domingo, 6 de dezembro de 2015

José e Maria, os refugiados

Hoje a comunidade cristã comemora o segundo domingo do Advento, ou seja, há uma semana iniciaram-se as preparações para a festa mais importante da fé cristã: o Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nesse momento, somos instigados a lembrarmos da narrativa bíblica, onde um jovem casal de Nazaré se dirige para Belém com a finalidade de serem contados pelos oficiais do recenseamento como cidadãos do Império Romano, estado que dominava a região. Ao chegarem na cidade, se depararam com uma situação atípica: todas as estalagens estavam ocupadas. O casal acaba encontrando refúgio num estábulo, onde a jovem Maria de Nazaré dá à luz o profeta da maior religião do mundo. O Salvador do Mundo nasceu junto de animais de fazenda, sem luxo ou  conforto. Apesar da distorção teológica contemporânea de alguns cristãos,  a simplicidade e a humildade são marcas essenciais da narrativa cristã.

Como já virou recorrente na história do cristianismo, as pessoas revisitam a história de Jesus sem apreender a mensagem por trás dela. Nesse novo Advento, início do 2.016° ano da era cristã, muitas famílias montam seus presépios, que retratam uma família de refugiados do século I, enquanto atacam Marias e Josés de uma nova era. Assim como os pais de Jesus, os casais sírios precisam de nossa ajuda. Assim como o menino Jesus, os bebês haitianos que também nascem em condições insalubres antes de partirem para o exílio precisam de nossa compaixão. A alma caridosa que cedeu um teto, mesmo que de um estábulo, para os pais de Jesus de Nazaré sequer é citada nominalmente na narrativa bíblica, mas sua lição ecoa até os dias de hoje como exemplo de compaixão e amor ao próximo. É o ponto central do ministério de Jesus. E, para os que distorcem a teologia e valorizam mais o Antigo Testamento do que o Novo, é o ponto central também da narrativa de Sodoma e Gomorra. As cidades foram destruídas porque não sabiam acolher os estrangeiros.

Trecho da minissérie The Bible.
De que adianta ler a Bíblia, saber citá-la ipsis litteris, se não se incorporou a mensagem dela no âmago de sua alma? Hoje o mundo cristão se fecha para os refugiados de outras religiões – nomeadamente o vudu haitiano e o Islã das vertentes minoritárias. Logo os cristãos, que foram tão perseguidos por judeus e pelos seguidores da religião mitológica greco-romana nos primeiros séculos de sua caminhada, jogados aos leões no Coliseu como forma de entretenimento da elite romana. Logo os cristãos, cujo Cristo desafiava as normas sociais vigentes em sua época e se misturava com os samaritanos, minoria religiosa ainda hoje perseguida pelo status quo judaico em Israel. Ler a Bíblia é muito legal, mas interpretá-la é o que diferencia um conhecedor de um fiel. Ser um seguidor de Jesus Cristo, para mim, significa apreender todas as lições de seu Evangelho e não somente aqueles trechos que melhor me convém.

No debate sobre os refugiados, deixamo-nos tomar pelo medo. Medo de que os muçulmanos que estão vindo da Síria sejam extremistas (embora eles estejam fugindo dos extremistas), medo de que os haitianos tomem nossos empregos (embora a maioria deles tenha tido uma educação precária ao extremo e não ofereçam grandes riscos). Quando indagado sobre quem seria o vizinho que deveria se amar, Jesus não apontou para um judeu como ele, mas para um samaritano. O bom samaritano, que importou-se em cuidar de um homem – que não era de sua religião ou cultura – caído e ferido na beira da estrada após um assalto. Apesar de não seguir a religião majoritária, ele demonstrou, para Jesus, agir mais conforme a palavra de Deus do que  aqueles que ficavam no Templo de Jerusalém ditando como os religiosos deveriam agir para agradar a Deus. No momento estamos passando pela estrada e deixando o homem ferido caído lá.

José e Maria também dependeram da bondade de um estranho para terem a criança que mudaria o mundo com seus ensinamentos sobre amor e compaixão. Eram refugiados, mesmo que temporários (se você acredita na história da fuga para o Egito, então foram ainda mais do que refugiados temporários), e precisaram contar com a ajuda de estranhos. Se a história do casal se repetisse hoje, eles teriam o pedido de refúgio negado por aqueles que montam presépios que retratam a história deles mesmos! Não estamos fechando a porta para casais sírios ou haitianos, estamos fechando a porta para José e Maria. A lição do cristianismo é uma lição de cuidado e ajuda ao próximo, em especial àqueles que estão à margem da sociedade, mas em algum ponto do desenvolvimento da nossa religião nos esquecemos disso. Enquanto montamos nossos presépios com José e Maria, os refugiados, falamos mal de sírios e haitianos que tentam uma vida melhor em nosso país, dito cristão.

Ser negro nas Américas

O que significa ser negro nas Américas? Significa que, ao contrário dos negros africanos, se é descendente de seres humanos que foram capturados como gado, trazidos em navios insalubres e vendidos em feiras como cachorros. Significa que, apesar do estupro de suas tataravós e do açoitamento de seus tataravôs, você conseguiu chegar a esse mundo. Significa que, não importa o quão inteligente e esforçado você seja, algumas portas nunca se abrirão para você e se você ousar reclamar disso vai ser tachado de vitimista. Significa que, sua vida toda, se esforçará para provar que tem mais características do que a cor de sua pele. Significa que você será julgado, perseguido e até mesmo morto por causa dessa única característica peculiar que você possui. Tudo isso porque até hoje os brancos não aceitam o fim do sistema injusto de exploração racial ao qual o Iluminismo americano pôs fim. Ao contrário do que somos ensinados na escola, a escravidão não acabou pacificamente em lugar algum. No Haiti, os negros fizeram uma revolução para expulsar os franceses que os oprimiam. Nos Estados Unidos, quando os donos das plantations ficaram sabendo das intenções do presidente Abraham Lincoln de acabar com a escravidão manipularam seus governadores para que formassem uma Confederação e declarassem a independência da União. No Brasil, um dos motivos pelos quais os militares deram o golpe de Estado que criou a República foi a intenção da então Princesa Isabel de indenizar os escravos quando se tornasse Imperadora. 

Que dó da branca proprietária e agressora de negros!
Ser negro nas Américas significa que se faz parte da maior comunidade diáspora do mundo. Mas, ao contrário de japoneses e italianos, a vinda não foi provocada por problemas econômicos em seus países de origem. Foi uma vinda forçada que gerou um dos episódios mais sombrios da história mundial. Em todos os períodos históricos houve escravidão, mas, como aponta o pesquisador e diplomata Alberto Costa e Silva, um dos maiores africanistas do Brasil, foi só a partir da Era moderna é que a escravidão se baseou em critérios unicamente raciais. Aqueles seres humanos eram considerados inumanos devido à cor de suas peles. A Igreja – fosse ela católica ou reformada – forneceu a base teológica para a desumanização dos negros; a venda de pessoas era autorizada pois, segundo os teólogos, os negros não teriam alma. Assim sendo, ingleses, franceses, espanhóis e, sobretudo, portugueses trouxeram 12 milhões de pessoas para serem vendidas como gado. Até marcado a ferro quente eles eram. Seus donos julgavam-se senhores de seus corpos e de seus ascendentes por toda a eternidade e, é bom reafirmar, não aceitaram de bom grado quando as ideias abolicionistas de William Wilberforce começaram a chegar ao nosso continente. Ainda hoje as famílias que fizeram fortunas explorando almas humanas se ressentem do fato de que foram superados pela história. O que representa Scarlett O'Hara se não uma tentativa de se vitimizar o opressor? Grupos como a Ku Klux Klan ou os Carecas do ABC promovem um revisionismo histórico porque não aceitam que os escravocratas perderam a guerra cultural travada no final do século XIX. 

Nos Estados Unidos a luta de Lincoln pela libertação dos escravos acabou gerando uma retaliação formal aos negros no Sul do país, nos estados ex-confederados (que só começaram a banir a bandeira desse movimento nesse ano, quando um supremacista branco que tinha uma dessas bandeiras na parede do quarto abriu fogo contra membros da mais antiga igreja para negros do país, localizada em Carleston, Carolina do Sul). Criou-se, naquele país, a segregação racial que mais tarde inspiraria o apartheid sul-africano. No Brasil, o país dos conchavos, criou-se o mito da “democracia racial”, que perdura até os dias de hoje. Se nos Estados Unidos a chegada do progresso foi imposta à força, no Brasil jamais tentou-se fazer o país avançar sem que nossos governantes primeiro sentassem na mesa com os representantes do establishment retrógrado. Logo a mão de obra negra, deixada à própria sorte nos arredores das cidades, foi substituída pela mão de obra italiana, semi-escrava. A exclusão racial, em ambos os países, levou à criação de guetos (nos Estados Unidos) e favelas (no Brasil), mantidas sob o jugo de uma polícia ainda hoje treinada para crer que cassetetes e revólveres resolvem problemas de ordem social. Nos Estados Unidos, pelo menos, existia ainda a possibilidade dos negros fugirem para o Norte (em especial Nova Iorque, a capital cultural do país) onde podiam chegar à proeminência; esse foi o caso de Nina Simone, Aretha Franklin, Ray Charles, Ella Fitzgerald, Eartha Kitt, Alice Walker e Louis Armstrong, para citar apenas alguns nomes. 

Alexandra Loras com o marido Damien e o filho.

No Brasil, não havia porto seguro para os negros. Nossa sociedade se moderniza a passos lentos. Se nos Estados Unidos houve uma guerra para determinar que a produção industrial seria a matriz do desenvolvimento econômico, no Brasil tivemos golpes de Estado para garantir os interesses da elite agrícola. Ainda hoje nossa balança comercial depende sobremaneira da exportação de commodities. A tímida industrialização promovida por Getúlio Vargas, que se tornou um ditador para consolidá-la, acabou sendo desfeita assim que os generais deram um golpe de Estado para sustentar quem constrói fortunas não a partir da produção, gerando empregos e riquezas ao país, mas sim da especulação, política econômica mantida até os dias atuais. A essas pessoas, conservadoras (que desejam a conservação da ordem social), incomoda o fato de que uma negra frequente os mesmos espaços que elas. Conforme relatou a consulesa da França no Brasil, Alexandra Loras, no programa de Mariana Godoy, confundem-na com a babá de seu próprio filho quando os dois saem juntos em São Paulo. Ela disse, ainda, que o Brasil é o único país, dentre aqueles em que já morou, onde obrigam as babás a vestirem uniforme e usar entradas e elevadores de serviço. Se não se pode impedir que negros ocupem o mesmo espaço que você, crème de la crème da sociedade brasileira, então que ao menos eles sejam humilhados. É por isso que a consulesa negra choca as pessoas. Ela perambula pelos espaços mais chiques da cidade de São Paulo com um menino branco no colo e sem uniforme. 

A sofrida segregação racial nos Estados Unidos acabou com esse tipo de prática descriminatória nos contratos de emprego. Mas as tensões raciais continuam existindo, veladas, e sempre prontas a explodir. A escravidão e a segregação racial podem até ter acabado no papel, mas a opressão e a discriminação seguem mais vivas do que nunca na prática. Não foi porque Lyndon Johnson assinou a lei dos direitos civis em 1965 que os negros dos EUA têm, hoje, todos seus direitos respeitados. Tomemos, por exemplo, um fato ocorrido essa semana em Illinois, estado de origem do primeiro presidente negro dos EUA.  No último dia 24/11, a polícia de Chicago matou um adolescente negro de 17 anos de idade pelas costas. Ele era procurado pela polícia e teria tentado fugir da abordagem enquanto saía de uma lanchonete. Estava desarmado e, mesmo, assim, levou 16 tiros. As câmeras de segurança do estabelecimento comercial capturaram a execução. No dia seguinte, os policias voltaram ao local e intimidaram os funcionários para que eles deletassem a cena. Modus operandi idêntico ao do policial que matou um menino de 10 anos de idade numa favela do Rio de Janeiro no início desse ano. Eduardo de Jesus brincava com o celular na porta de casa, a cinco metros de distância do policial, quando foi atingido. Sua mãe saiu de casa desesperada e começou a confrontar o PM, que a intimidou. Fato comum em ambos os casos: depois da execução, aqueles que se julgam descendentes dos donos de plantations tentaram responsabilizar as vítimas. Só que, em lugar algum, a lei – internacional, brasileira ou americana – prevê que a polícia está autorizada a matar suspeitos. A Constituição americana inclusive proíbe punição cruel e não-usual. 

Black Lives Matter toma as ruas de Nova York em 13/12/2014.
Enquanto a mídia brasileira dá um destaque enorme ao enésimo capítulo da novela Operação Lava Jato e a mídia americana se encanta com as peripécias fascistas do candidato à presidência Donald Trump, um movimento de massas surge nos Estados Unidos para desafiar o tratamento dado pela polícia aos negros. O Black Lives Matter (“Vidas negras importam”) surgiu no ano passado após uma série de absolvições de policias acusados de matar jovens negros. Assim como o Occupy Wall Street, trata-se de um movimento não-linear surgido de maneira espontânea na internet. No entanto, é muito mais conciso do que o Occupy; possui uma agenda de reivindicações clara e, assim sendo, consegue existir por mais tempo e é atacado de forma mais veemente pela direita (inclusive Trump, que ordenou que participantes de um de seus comícios espancassem um militante do movimento presente no evento). O Black Lives Matter apareceu para dar um tapa na cara de quem acreditava numa “América pós-racial”, teoria que foi reforçada pelas eleições de um presidente negro. O fato é que Obama mantém uma política econômica neoliberal que penaliza mais duramente as minorias. Além disso, suas iniciativas de investir mais no social são barradas pelo Congresso, controlado pelos colegas de partido de Trump que aparecem a todo o instante na mídia para dizer que um Estado que investe em política social é um Estado socialista. Lá, como cá, vende-se a ideia de que todos nascemos com as mesmas oportunidades e que basta se esforçar um pouquinho para vencer na vida. É claro que quem descende de escravos que foram literalmente jogados na periferia das cidades após o fim da escravidão tem as mesmas oportunidades que os descendentes de quem controla a riqueza nacional. Só que não. 

A “América pós-racial” ou a “democracia racial” brasileira são mitos criados para convencer uma massa historicamente oprimida a deixar de lutar por seus direitos. Nos EUA, diz-se: “ei, já lhes damos o direito de votar e frequentar os mesmos espaços que nós, o que mais vocês querem?”. No Brasil: “ei, para de se vitimizar e se esforça mais um pouco para conseguir aquilo que você quer”. O que os negros querem é não serem mortos pela polícia pelo simples fato de terem mais melanina na pele do que eu. Querem que um fator simplesmente biológico não seja decisivo na hora de determinar que tipo de atendimento receberão. Imagina que louco se as pessoas de olhos azuis ganhassem menos do que as pessoas de olhos castanhos e fossem acusadas de serem traficantes, marginais e mendigas pela simples cor de seus olhos. É isso o que acontece com milhões de pessoas no nosso continente. Imagine se as pessoas de olhos azuis ouvissem a vida toda insultos sobre a cor do olho delas, recebessem olhares suspeitos aonde fossem e não vissem quase mais ninguém como elas na televisão, nas revistas e nos filmes. É isso o que acontece com os afro-descendentes. Retomando o questionamento inicial desse texto, ser negro nas Américas é ser forçado a acreditar, todo dia, que se merece menos – educação, ofertas de emprego e remuneração – por causa da cor de sua pele. É preciso empoderar os jovens negros para que eles percebam a injustiça dessa situação e lutem para mudá-la. “Devemos começar a dizer para nossos jovens: 'há um mundo esperando por vocês, é de vocês a missão que está começando'", cantava Nina Simone. Atualmente, ser negro nas Américas é um castigo. Mas não pode e nem deve ser. Ser negro nas Américas deve ser sinônimo de ser livre.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Facebook, o Grande Irmão

Em 1984, sua obra-prima, o escritor britânico George Orwell prevê uma realidade distópica para o futuro da humanidade. O mundo se encontra dividido em três blocos supranacionais governados por líderes autoritários e que vivem em guerra entre si. O pensamento é desencorajado, pois pode levar ao dissenso, e os indivíduos são constantemente vigiados através de telões (que o autor chama de tele-telas) instalados em todas as residências, lojas e fábricas, possuindo o mínimo possível de privacidade. Na Oceania, onde mora o protagonista Winston Smith e onde a história se desenrola, o Grande Irmão (Big Brother, em inglês) é o responsável pela vigilância, estando sua imagem presente em todas as tele-telas acompanhada do anúncio "Big Brother is watching you" ("O Grande Irmão está te observando"). Muito já foi debatido se o Big Brother, que é o líder da Oceania, existia de verdade ou se ele era apenas um mecanismo de intimidação da burocracia estatal.
Tele-tela conforme imaginada no filme de Michael Radford.
Quando a televisão se popularizou no Ocidente em meados da década de 1950, críticos sociais começaram a se indagar se as tele-telas orwellianas não teriam finalmente se tornado realidade. No entanto, os aparelhos de televisão da época apenas recebiam os sinais enviados pelas antenas de tevê. Não eram capazes de captar imagens e, muito menos, enviá-las para alguma empresa ou órgão de controle estatal. Hoje em dia, no entanto, as tele-telas já existem. São os computadores e os aparelhos celulares e televisores "inteligentes" (os smartphones e as smart TVs), onde se acumula um número cada vez maior de informação sobre seus usuários. Quantas vezes não vamos preencher um formulário on-line e nossas informações já estão gravadas no navegador? Da nossa data de nascimento ao número de nosso cartão de crédito, nossos celulares sabem tudo sobre nós. E, o que é mais chocante de tudo, são empresas privadas (e não o Estado) que estão gerenciando essas informações!

Se por um lado Orwell acertou ao imaginar um futuro onde o pensamento e a privacidade são mínimos, ele errou ao imaginar que seriam os governos os principais promotores dessa nova realidade. Uma empresa em particular se destaca pelo número absurdamente exagerado de informações que guarda sobre seus usuários: o Facebook. Ao aceitarmos os termos de uso daquela rede social estamos, consciente ou inconscientemente, abdicando de nossa privacidade e de nosso interesse em buscar um diálogo mais calcado na racionalidade do que na passionalidade. Os erros de Orwell foram os acertos de Aldous Huxley, outro escritor britânico do século passado que também previu um futuro distópico da humanidade em seu Admirável Mundo Novo. Confesso que não sou familiarizado com a obra de Huxley, mas o crítico social Neil Postman escreveu o seguinte sobre as diferenças entre 1984 e Admirável Mundo Novo:

"O que Orwell temia era aqueles que queimariam livros. O que Huxley temia era que não haveria razão para queimar livros, uma vez que ninguém mais teria interesse em lê-los. Orwell temia os que nos privariam de informação. Huxley temia aqueles que nos dariam tanta informação que nos tornaríamos apáticos e egotistas. Orwell temia que a verdade seria escondida de nós. Huxley temia que a verdade se tornaria irrelevante. Orwell temia que nossa cultura seria aprisionada. Huxley temia que nossa cultura seria banalizada (...) Em resumo, Orwell temia que o medo nos arruinaria. Huxley temia que nosso desejo nos arruinaria". In: POSTMAN, Neil. Amusing Ouselves to Death. Nova York: Viking, 1985.

O Big Brother não é um ditador autoritário que nos oprime. Não é Edgar Hoover que usa todos os meios possíveis para eliminar o pensamento anti-establishment da sociedade. Não é tampouco a NSA, que viola a privacidade tanto do jovem jovem muçulmano do subúrbio de Detroit quanto da presidenta do Brasil. Afinal de contas, a NSA só consegue informações sobre cidadãos, comuns ou não, porque empresas privadas como o Facebook estão dispostas a repassá-las ao órgão de espionagem do governo estadunidense. O Big Brother é um logotipo azul e branco que nos indaga: "No que você está pensando?", como se guardar os pensamentos para si mesmo fosse algo ruim. O Big Brother é uma empresa que sabe quando nascemos, para onde viajamos nas férias, qual nossa preferência político-partidária e quando estamos de bom e mau humor. E ela nos incentiva a sermos todos Grandes Irmãos. Afinal de contas, nossos amigos e seguidores estão acompanhando todo e qualquer movimento nosso, assim como estamos acompanhando os passos deles.

O mais interessante disso tudo é que não percebemos a invasão de nossa privacidade como uma opressão. Segundo Noel Sharkey, professor de inteligência artificial da Universidade de Sheffield, as novas gerações estão dispostas a conceder sua privacidade para uma empresa privada porque não estão familiarizadas com a obra de Orwell. Elas não imaginam que o extermínio da privacidade possa ser algo ruim até que se vêem como vítimas dele - caso, por exemplo, de pessoas comuns que têm suas vidas arruinadas pela divulgação de fotos íntimas. No momento em que postamos algo na rede, mesmo que em mensagem privada (uma foto nua para o namorado, por exemplo), perdemos o controle sobre aquilo. E, ao contrário do que se pensa, mesmo após deletada aquela informação está guardada para sempre. Sua foto nua está salva no servidor do Facebook em algum canto do mundo. Como diz uma piada que vi recentemente: "se a NSA está guardando todas nossas informações da internet, então ela possui a maior coleção de pornografia da história".

Como disse Postman, o desejo nos arruína. Pelo desejo de ser popular e encontrar pessoas com quem possamos compartilhar nossas ideias, entramos num mundo sem privacidade. Esse desejo é maior do que o de resguardar nossa imagem pessoal. No Facebook, temos tanta informação que não sabemos lidar com elas. Afinal, qual tragédia é mais importante, a de Mariana ou a de Paris? Nos tornamos apáticos à morte de outros seres humanos por causa do grupo ideológico ao qual pertencemos. E não adianta apontar para o indivíduo que ele está sendo egotista, ou seja, que está olhando apenas para seu próprio universo, pois no Facebook não somos encorajados a embasar nossas opiniões e argumentos em leituras ou análises críticas da realidade. Para fazer isso, é preciso sair do espaço virtual, o que aquela rede social não deseja que façamos. No Facebook temos a falsa sensação de que estamos obtendo todas as informações necessárias e perdemos a ânsia pelo verdadeiro conhecimento.

O conhecimento surge, muitas vezes, do embate de ideias. O professor apresenta ao aluno os diferentes modelos de organização social existentes, cada um com seus prós e contras, e este último decide escolher um com o qual se identifica. Os pais apresentam ao filho as diferentes religiões existentes e este decide escolher uma com a qual se identifica. Mas o Facebook é a terra da interdição da coexistência pacífica entre as ideias diferentes. O que importa é vencer a discussão com aquele religioso alienado que mora a 1.000 quilômetros de distância de mim ou com aquele tucano alienado que mora a 2.500 quilômetros de distância e que jamais vou conhecer pessoalmente. Os algoritmos da rede social faz com que tenhamos acesso apenas às pessoas e páginas que pensam de maneira semelhante à nossa. De repente o mundo, composto por várias verdades na sua dimensão real, passa a ser composto por apenas uma verdade na sua dimensão virtual.

A verdade se tornou irrelevante. Assim como Winston Smith, somos desencorajados a pensar, pois pensar pode nos tornar párias sociais. Recentemente, Ciro Gomes e Roberto Requião, que fazem críticas acertadíssimas à política econômica da presidenta Dilma Rousseff, passaram a ser atacados pelos defensores da verdade petista, pois podem levar ao dissenso entre os membros daquele grupo que se acredita coeso. Foram logo atacados e desmerecidos no plano pessoal, pois, como disse anteriormente, o Facebook é o reino do passional e não do racional. Quem decidir apoiar o senador ou o ex-ministro vai virar pária para os petistas. O fato é que, com as redes sociais, voltamos à sociedade tribal. As contendas são vencidas através da violência virtual, através da união dos membros dos grupos virtuais para derrubar páginas, promover hashtags e xingamentos orquestrados e denunciar passionalmente os partidários da ideologia contrária. Às vezes a violência virtual escorre para o mundo real, como ocorreu em Brasília durante a marcha das mulheres negras.

Facebook is watching you.
Orwell imaginou um futuro caótico onde três Estados nacionais fortes suprimiriam o bem-estar individual em sua luta pela dominação mundial. Imagino um futuro caótico onde empresas multinacionais fortes suprimirão o bem-estar individual em sua luta pela dominação mundial. E, o que é pior de tudo, essa dominação não é vista como tal pelas pessoas comuns. O Facebook soube trabalhar muito bem com o desejo do ser humano de se sentir aceito e de viver em comunidade para solapar-nos de nossas privacidades. Em troca de pertencermos a tribos virtuais, oferecemos nossas informações mais íntimas, que são registradas e acessadas a qualquer minuto pela rede social, que vende-as para empresas de comércio virtual e repassa-as para órgãos de espionagem. O futuro é sombrio.Viveremos numa sociedade tribal, inepta à resolução de conflitos através do diálogo, criada por empresas que sabem tudo sobre nós. Eis o admirável mundo novo: Facebook is watching you.

domingo, 22 de novembro de 2015

Poema: As pessoas

As pessoas não querem saber
O que te rói
As pessoas não querem entender
Se sua alma dói

As pessoas só querem se mostrar
Lindas, inteligentes e atenciosas
Mas as pessoas vão te julgar
Porque elas são perniciosas

Não se engane, as pessoas não valem nada
E vão te dizer sempre uma coisa inadequada
As pessoas vão rir do seu sofrimento
E oferecer meios para acabar com seu tormento

Mas não faça isso, resista!
Porque tudo o que as pessoas desejam
É que, de lutar, você desista
Para que, sua tragédia, festejem

Queria ter depressão

O título desse artigo é, claramente, uma provocação. Mas é uma indagação muito verdadeira que faço a respeito de mim mesmo. Toda minha vida adulta tenho convivido com uma condição psicológica chamada distimia. Trata-se de um tipo crônico de depressão, com a diferença de que não possui "altos" e "baixos" bem definidos. Posso estar indo super bem num determinado dia até que me deparo com uma decepção e, pronto, estou na pior. Os sintomas, por serem menos graves do que na depressão comum, são mais difíceis de serem percebidos, apesar da distimia durar mais tempo. Muitas vezes, os pacientes só descobrem que têm essa condição depois de algum tempo de sofrimento. Eu mesmo achava que a tristeza era um traço da minha personalidade e que eu deveria aprender a lidar com ela.

Conviver com essa condição é não saber viver. Tenho medo de viver porque não sei lidar com as coisas que fogem do script. Não sei lidar com imprevistos, pressões e cobranças que podem surgir no meu dia-a-dia. Antes de descobrir o que me afligia, eu achava que era louco. E a sociedade ajudou bastante para que eu construísse essa imagem errada de mim mesmo. A sociedade homogeniza seus membros; à ela, nossas individualidades não interessam. Quem não busca a felicidade da propaganda de margarina não é "normal". Ainda mais no meio social em que convivo, o da classe média, onde se acredita piamente que todos têm a mesma capacidade, bastando apenas se esforçar um pouquinho para conquistar os céus. Se eu tive as mesmas oportunidades que os garotos da minha classe social e mesmo assim tenho dificuldades em conquistar o que desejo, é porque devo ser louco, não é mesmo?

Não, eu não sou louco. Sou triste. E muito mais do que você possa imaginar. Sofro de uma tristeza paralisante, que dói no fundo da minha alma e da qual não consigo me livrar a não ser que eu esteja exercendo minha criatividade, como estou fazendo agora, com uma caneta na mão escrevendo esse texto. Mas é fácil para os outros me julgar do que tentar me entender. Talvez se eu tivesse depressão, me entenderiam melhor. Talvez não. Nos tempos atuais, a empatia virou uma peça de museu e perfeitos estranhos se estapeiam nas redes sociais por conflitos mundanos como qual partido político brasileiro rouba menos, qual dos times nacionais de futebol é o menos pior ou, pasmem, qual tragédia foi pior, a de Paris ou a de Mariana. Uma coisa é certa. esse ambiente estava me intoxicando e piorando – e muito – minha condição.

Sair das redes sociais representou apenas o primeiro passo na reconquista da minha sanidade e, consequentemente, da minha vida. Foi a saída de um local, embora não-físico, onde a compaixão não existe – para comigo e para com ninguém. Uma pesquisa recente feita na Dinamarca com mais de mil pessoas concluiu que internautas que ficaram uma semana sem usar o Facebook demonstraram mais satisfação com suas vidas em geral do que aqueles que usaram a rede social todos os dias. Diversos estudos mostram como a realidade é manipulada nas redes sociais de forma que seus usuários estão sempre recebendo notícias boas sobre a vida dos outros. Sentimos que a vida dos outros é melhor do que a nossa. Há, inclusive, um curta-metragem que explora esse fenômeno psicológico chamado de "Facebook effect" por pesquisadores.

Reconhecer que se tem um problema é o primeiro passo para se começar a resolvê-lo. Eu quero qualidade de vida e com certeza farei tudo o que está a meu alcance para consegui-la. Quero ser o senhor da minha consciência. Chega de não saber lidar com os revezes e agir impulsivamente como um animal. Nada importa mais nesse momento do que me recuperar. Chega de cansaço e tédio.  Chega de me vitimizar. Quebrar o ciclo de anedonia que tomou conta de mim e recuperar minha joie de vivre, essa é a minha única ambição no momento. Se, ao me recuperar, perder algumas pessoas no caminho, não importa. Quem gosta mesmo de mim quer me ver bem. Assim, quem sabe, conseguirei ficar livre do costume de andar sempre com o celular e, no fundo, ficar esperando que ninguém me ligue. Espero conseguir atingir minha meta. Que eu também possa dizer que experimentei a aflição, mas, com confiança, venci o mundo!

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O que a mídia está esperando, que matem alguém?

A mídia brasileira é uma das mais irresponsáveis do mundo. Há treze anos acusa os membros de um só partido de corrupção e silencia sobre os desvios cometidos por membros de outros partidos, alguns dos quais são sócios/donos de empresas mídia. Isso acabou por gerar no público desses veículos um ódio descomunal a esse partido e a toda pessoa associada a ele, pois, para quem se informa pela mídia brasileira, parece que o país era o reino da moralidade no serviço público até aquele fatídico dia 1° de janeiro de 2003, quando Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse e inventou a corrupção. Para quem se faz de bobo ou para quem realmente não sabe, o antecessor de Lula comprou deputados para que votassem a favor da emenda que lhe garantiria o direito de concorrer novamente à presidência. Ou, caso prefiram um exemplo menos controverso, Abraham Lincoln comprou deputados para que votassem a favor do projeto de lei que aboliria a escravidão nos EUA. A corrupção não é um fenômeno recente e, muito menos, brasileiro, como demonstra essa lista.

No último dia 18, mulheres negras que marchavam contra o racismo na Esplanada dos Ministérios em Brasília foram atacadas por soldados anti-PT que se encontravam no local. Protestos assim são comuns em qualquer lugar do mundo e costumam atravessar as barreiras partidárias. Não no Brasil. Afinal de contas, mulheres negras, em sua maioria, votaram na candidata do PT na última eleição, logo, segundo a lógica de quem nunca leu Aristóteles e dificilmente conseguiria fechar a prova de raciocínio lógico de um concurso, isso significa que elas são corruptas também. Lunáticos acampados no local para exigir a renúncia de uma presidenta legitimamente eleita e reeleita por seu povo atacaram as militantes negras com paus, bombas e houve até mesmo quem desse tiros para cima. Uma pequena amostra do "Brasil sem PT" que eles querem construir. No "novo Brasil", a única forma válida de protesto é aquele que concorde com o ponto de vista deles.

Essa violência, por enquanto mais simbólica do que real, vem sendo alimentada há um ano por uma mídia decadente. Décadence sans élegance. As grandes corporações de mídia apostam todas suas fichas na derrubada da presidenta Dilma  Rousseff porque não conseguem sobreviver mais quatro anos com verbas estatais cada vez mais minguantes – e, agora, com o ajuste fiscal, é que vão ficar ainda mais minguantes. É interessante ver quem tanto prega a meritocracia e o liberalismo econômico tendo dificuldades em garantir sua existência sem as generosas tetas do Estado brasileiro. A Rede Globo, por exemplo, jamais existiria sem os subsídios que a ditadura militar lhe deu para massificar a cultura, dar um tiro fatal na contracultura e transformar o Brasil no país do senso comum. A revista Veja, por outro lado, já teria acabado há alguns anos sem o contrato que firmou, sem licitação, com o governo de Geraldo Alckmin para distribuir seu lixo tóxico nas escolas paulistas.

Eu achei, na minha inocência, que a mídia brasileira perceberia que incitar o caos é ruim para todos – inclusive para ela – e iria abafar a sandice golpista surgida do choro dos perdedores da última campanha presidencial. É o que ocorre em países minimamente civilizados. Até mesmo nos EUA que nossa imprensa tanto exalta. A não ser pela ultrarreacionária, machista e racista FOX News, nenhum grande veículo de comunicação dos EUA leva a sério os pedidos de renúncia do presidente Barack Obama que, ao contrário de Dilma, comanda um Exército que usa aviões não-tripulados para matar crianças e mulheres no Paquistão. Apesar da campanha de difamação promovida por uma minoria de fanáticos, com acesso irrestrito à FOX News, a maioria dos oposicionistas não acredita em teorias da conspiração contra o presidente (como as que afirmam que ele não teria nascido no país e que seria muçulmano em segredo) e líderes oposicionistas como Chris Christie e Lindsey Graham criticam os republicanos que vocalizam essas teorias.

Ledo engano o meu de achar que moramos num país onde a mídia é séria e se preocupa com seu povo. O terrorismo midiático afugenta investimentos – nacionais e estrangeiros – e tem como propósito único minar a retomada do crescimento econômico, para que o PT seja eliminado dos espaços de decisão e a farra da publicidade estatal dos tempos FHC retorne. Aécio Neves é tão ou mais corrupto do que o PT, mas ele defende os interesses dos proprietários da mídia, afinal de contas, ele mesmo é um em Minas Gerais. É interessante as coisas que a mídia brasileira esconde por simples e puro interesse político-partidário. No auge da crise econômica da Era FHC, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, deu um pito no seu colega brasileiro por não garantir direitos básicos aos mais pobres (naquela época, a cada 5 minutos uma criança morria de fome no país). Hoje, em campanha pela esposa, Bill disse que o Brasil, apesar das dificuldades, é um dos melhores lugares para se investir. Nenhuma dessas declarações apareceu no Jornal Nacional.

Seguindo a lógica dos que não estudaram lógica, Bill Clinton é petista, assim como as negras que não aguentam mais o racismo. Me admira muito o partido cujos fundadores estiveram quase todos envolvidos na luta pela redemocratização, apoiar essa lógica fascista de demonização de quem pensa diferente. O PSDB se junta à décadence sans élegance da grande mídia. É o triste fim do sobrenome Neves, que passou do inimigo N° 1 da ditadura a um playboy inconsequente sem o menor apreço pela estabilidade política do país que o tornou quem ele é. Será que é tão burro assim? Ele mesmo não representa mais a turma dos lunáticos que pedem a derrubada da presidenta. Corre o risco de, como Carlos Lacerda, orquestrar um golpe do qual não será o principal beneficiário. Mas seu ego gigantesco, não permite-lhe se afastar dos holofotes, como fizeram John McCain em 2008, José Serra em 2010 e Mitt Romney em 2012.

O que será que a mídia e o PSDB estão esperando acontecer para que percebam a inconsequência de suas ações? Estão alimentando um monstro. O "Gigante" acordado por eles em 2013 (aliás, esse era um slogan comum no Brasil pré-1964) é um analfabeto histórico-político e possui problemas psíquicos, não sabendo lidar com a frustração de não poder mais controlar todos os aspectos da vida social no Brasil. Mulher negra marchando em Brasília e dividindo o mesmo espaço público de protesto comigo? Não quero, vou dar uns tiros para cima para espantá-las. E se a violência desses lunáticos um dia sair do plano simbólico e for para o plano real? Será que a mídia brasileira está esperando eles matarem alguém para criar algum senso de responsabilidade pelo tipo de narrativa que cria? Esse tipo de jornalismo de torcida, que divide os brasileiros em "nós" e "eles", "do bem" e "do mau", ainda vai criar uma tragédia nacional.