domingo, 6 de dezembro de 2015

Ser negro nas Américas

O que significa ser negro nas Américas? Significa que, ao contrário dos negros africanos, se é descendente de seres humanos que foram capturados como gado, trazidos em navios insalubres e vendidos em feiras como cachorros. Significa que, apesar do estupro de suas tataravós e do açoitamento de seus tataravôs, você conseguiu chegar a esse mundo. Significa que, não importa o quão inteligente e esforçado você seja, algumas portas nunca se abrirão para você e se você ousar reclamar disso vai ser tachado de vitimista. Significa que, sua vida toda, se esforçará para provar que tem mais características do que a cor de sua pele. Significa que você será julgado, perseguido e até mesmo morto por causa dessa única característica peculiar que você possui. Tudo isso porque até hoje os brancos não aceitam o fim do sistema injusto de exploração racial ao qual o Iluminismo americano pôs fim. Ao contrário do que somos ensinados na escola, a escravidão não acabou pacificamente em lugar algum. No Haiti, os negros fizeram uma revolução para expulsar os franceses que os oprimiam. Nos Estados Unidos, quando os donos das plantations ficaram sabendo das intenções do presidente Abraham Lincoln de acabar com a escravidão manipularam seus governadores para que formassem uma Confederação e declarassem a independência da União. No Brasil, um dos motivos pelos quais os militares deram o golpe de Estado que criou a República foi a intenção da então Princesa Isabel de indenizar os escravos quando se tornasse Imperadora. 

Que dó da branca proprietária e agressora de negros!
Ser negro nas Américas significa que se faz parte da maior comunidade diáspora do mundo. Mas, ao contrário de japoneses e italianos, a vinda não foi provocada por problemas econômicos em seus países de origem. Foi uma vinda forçada que gerou um dos episódios mais sombrios da história mundial. Em todos os períodos históricos houve escravidão, mas, como aponta o pesquisador e diplomata Alberto Costa e Silva, um dos maiores africanistas do Brasil, foi só a partir da Era moderna é que a escravidão se baseou em critérios unicamente raciais. Aqueles seres humanos eram considerados inumanos devido à cor de suas peles. A Igreja – fosse ela católica ou reformada – forneceu a base teológica para a desumanização dos negros; a venda de pessoas era autorizada pois, segundo os teólogos, os negros não teriam alma. Assim sendo, ingleses, franceses, espanhóis e, sobretudo, portugueses trouxeram 12 milhões de pessoas para serem vendidas como gado. Até marcado a ferro quente eles eram. Seus donos julgavam-se senhores de seus corpos e de seus ascendentes por toda a eternidade e, é bom reafirmar, não aceitaram de bom grado quando as ideias abolicionistas de William Wilberforce começaram a chegar ao nosso continente. Ainda hoje as famílias que fizeram fortunas explorando almas humanas se ressentem do fato de que foram superados pela história. O que representa Scarlett O'Hara se não uma tentativa de se vitimizar o opressor? Grupos como a Ku Klux Klan ou os Carecas do ABC promovem um revisionismo histórico porque não aceitam que os escravocratas perderam a guerra cultural travada no final do século XIX. 

Nos Estados Unidos a luta de Lincoln pela libertação dos escravos acabou gerando uma retaliação formal aos negros no Sul do país, nos estados ex-confederados (que só começaram a banir a bandeira desse movimento nesse ano, quando um supremacista branco que tinha uma dessas bandeiras na parede do quarto abriu fogo contra membros da mais antiga igreja para negros do país, localizada em Carleston, Carolina do Sul). Criou-se, naquele país, a segregação racial que mais tarde inspiraria o apartheid sul-africano. No Brasil, o país dos conchavos, criou-se o mito da “democracia racial”, que perdura até os dias de hoje. Se nos Estados Unidos a chegada do progresso foi imposta à força, no Brasil jamais tentou-se fazer o país avançar sem que nossos governantes primeiro sentassem na mesa com os representantes do establishment retrógrado. Logo a mão de obra negra, deixada à própria sorte nos arredores das cidades, foi substituída pela mão de obra italiana, semi-escrava. A exclusão racial, em ambos os países, levou à criação de guetos (nos Estados Unidos) e favelas (no Brasil), mantidas sob o jugo de uma polícia ainda hoje treinada para crer que cassetetes e revólveres resolvem problemas de ordem social. Nos Estados Unidos, pelo menos, existia ainda a possibilidade dos negros fugirem para o Norte (em especial Nova Iorque, a capital cultural do país) onde podiam chegar à proeminência; esse foi o caso de Nina Simone, Aretha Franklin, Ray Charles, Ella Fitzgerald, Eartha Kitt, Alice Walker e Louis Armstrong, para citar apenas alguns nomes. 

Alexandra Loras com o marido Damien e o filho.

No Brasil, não havia porto seguro para os negros. Nossa sociedade se moderniza a passos lentos. Se nos Estados Unidos houve uma guerra para determinar que a produção industrial seria a matriz do desenvolvimento econômico, no Brasil tivemos golpes de Estado para garantir os interesses da elite agrícola. Ainda hoje nossa balança comercial depende sobremaneira da exportação de commodities. A tímida industrialização promovida por Getúlio Vargas, que se tornou um ditador para consolidá-la, acabou sendo desfeita assim que os generais deram um golpe de Estado para sustentar quem constrói fortunas não a partir da produção, gerando empregos e riquezas ao país, mas sim da especulação, política econômica mantida até os dias atuais. A essas pessoas, conservadoras (que desejam a conservação da ordem social), incomoda o fato de que uma negra frequente os mesmos espaços que elas. Conforme relatou a consulesa da França no Brasil, Alexandra Loras, no programa de Mariana Godoy, confundem-na com a babá de seu próprio filho quando os dois saem juntos em São Paulo. Ela disse, ainda, que o Brasil é o único país, dentre aqueles em que já morou, onde obrigam as babás a vestirem uniforme e usar entradas e elevadores de serviço. Se não se pode impedir que negros ocupem o mesmo espaço que você, crème de la crème da sociedade brasileira, então que ao menos eles sejam humilhados. É por isso que a consulesa negra choca as pessoas. Ela perambula pelos espaços mais chiques da cidade de São Paulo com um menino branco no colo e sem uniforme. 

A sofrida segregação racial nos Estados Unidos acabou com esse tipo de prática descriminatória nos contratos de emprego. Mas as tensões raciais continuam existindo, veladas, e sempre prontas a explodir. A escravidão e a segregação racial podem até ter acabado no papel, mas a opressão e a discriminação seguem mais vivas do que nunca na prática. Não foi porque Lyndon Johnson assinou a lei dos direitos civis em 1965 que os negros dos EUA têm, hoje, todos seus direitos respeitados. Tomemos, por exemplo, um fato ocorrido essa semana em Illinois, estado de origem do primeiro presidente negro dos EUA.  No último dia 24/11, a polícia de Chicago matou um adolescente negro de 17 anos de idade pelas costas. Ele era procurado pela polícia e teria tentado fugir da abordagem enquanto saía de uma lanchonete. Estava desarmado e, mesmo, assim, levou 16 tiros. As câmeras de segurança do estabelecimento comercial capturaram a execução. No dia seguinte, os policias voltaram ao local e intimidaram os funcionários para que eles deletassem a cena. Modus operandi idêntico ao do policial que matou um menino de 10 anos de idade numa favela do Rio de Janeiro no início desse ano. Eduardo de Jesus brincava com o celular na porta de casa, a cinco metros de distância do policial, quando foi atingido. Sua mãe saiu de casa desesperada e começou a confrontar o PM, que a intimidou. Fato comum em ambos os casos: depois da execução, aqueles que se julgam descendentes dos donos de plantations tentaram responsabilizar as vítimas. Só que, em lugar algum, a lei – internacional, brasileira ou americana – prevê que a polícia está autorizada a matar suspeitos. A Constituição americana inclusive proíbe punição cruel e não-usual. 

Black Lives Matter toma as ruas de Nova York em 13/12/2014.
Enquanto a mídia brasileira dá um destaque enorme ao enésimo capítulo da novela Operação Lava Jato e a mídia americana se encanta com as peripécias fascistas do candidato à presidência Donald Trump, um movimento de massas surge nos Estados Unidos para desafiar o tratamento dado pela polícia aos negros. O Black Lives Matter (“Vidas negras importam”) surgiu no ano passado após uma série de absolvições de policias acusados de matar jovens negros. Assim como o Occupy Wall Street, trata-se de um movimento não-linear surgido de maneira espontânea na internet. No entanto, é muito mais conciso do que o Occupy; possui uma agenda de reivindicações clara e, assim sendo, consegue existir por mais tempo e é atacado de forma mais veemente pela direita (inclusive Trump, que ordenou que participantes de um de seus comícios espancassem um militante do movimento presente no evento). O Black Lives Matter apareceu para dar um tapa na cara de quem acreditava numa “América pós-racial”, teoria que foi reforçada pelas eleições de um presidente negro. O fato é que Obama mantém uma política econômica neoliberal que penaliza mais duramente as minorias. Além disso, suas iniciativas de investir mais no social são barradas pelo Congresso, controlado pelos colegas de partido de Trump que aparecem a todo o instante na mídia para dizer que um Estado que investe em política social é um Estado socialista. Lá, como cá, vende-se a ideia de que todos nascemos com as mesmas oportunidades e que basta se esforçar um pouquinho para vencer na vida. É claro que quem descende de escravos que foram literalmente jogados na periferia das cidades após o fim da escravidão tem as mesmas oportunidades que os descendentes de quem controla a riqueza nacional. Só que não. 

A “América pós-racial” ou a “democracia racial” brasileira são mitos criados para convencer uma massa historicamente oprimida a deixar de lutar por seus direitos. Nos EUA, diz-se: “ei, já lhes damos o direito de votar e frequentar os mesmos espaços que nós, o que mais vocês querem?”. No Brasil: “ei, para de se vitimizar e se esforça mais um pouco para conseguir aquilo que você quer”. O que os negros querem é não serem mortos pela polícia pelo simples fato de terem mais melanina na pele do que eu. Querem que um fator simplesmente biológico não seja decisivo na hora de determinar que tipo de atendimento receberão. Imagina que louco se as pessoas de olhos azuis ganhassem menos do que as pessoas de olhos castanhos e fossem acusadas de serem traficantes, marginais e mendigas pela simples cor de seus olhos. É isso o que acontece com milhões de pessoas no nosso continente. Imagine se as pessoas de olhos azuis ouvissem a vida toda insultos sobre a cor do olho delas, recebessem olhares suspeitos aonde fossem e não vissem quase mais ninguém como elas na televisão, nas revistas e nos filmes. É isso o que acontece com os afro-descendentes. Retomando o questionamento inicial desse texto, ser negro nas Américas é ser forçado a acreditar, todo dia, que se merece menos – educação, ofertas de emprego e remuneração – por causa da cor de sua pele. É preciso empoderar os jovens negros para que eles percebam a injustiça dessa situação e lutem para mudá-la. “Devemos começar a dizer para nossos jovens: 'há um mundo esperando por vocês, é de vocês a missão que está começando'", cantava Nina Simone. Atualmente, ser negro nas Américas é um castigo. Mas não pode e nem deve ser. Ser negro nas Américas deve ser sinônimo de ser livre.

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