quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Que gritem, Chico!

Não queria mais escrever nenhum texto esse ano. Mas sinto-me na obrigação de comentar o episódio ocorrido com Chico Buarque, talvez o maior intelectual vivo do Brasil na última segunda-feira na saída de um restaurante no bairro carioca do Leblon. O cantor, compositor e escritor saía do local com alguns amigos ilustres, entre eles o cineasta Cacá Diegues, o músico Edu Lobo e o jornalista Eric Nepomuceno, quando foi abordado por uma trupe de desocupados filhos da elite, do tipo que só países extremamente desiguais como o Brasil produzem, questionando o posicionamento político do artista. O grande feito de um deles foi ter namorado a atriz Cléo Pires; do outro, ser filho do Álvaro Garnero e ter dado um selinho no ex-jogador de futebol Ronaldo. O primeiro defende o ataque ao cantor, dizendo não entender como um cara inteligente como Chico Buarque pode apoiar o PT. Geralmente o não-dito fala mais do que o dito. Ele, na verdade, não consegue entender como pode um cara tão rico como Chico Buarque não reconhecer a hierarquia social do Brasil. Na cabeça deles, o poder político pertence aos filhos dos ricos como eles mesmos, Aécio Neves ou Donald J. Trump.

Chico Buarque em protesto contra a ditadura militar.
Chico Buarque é, de fato, uma anomalia política. Nasceu na elite, estudou nos melhores colégios, come nos melhores restaurantes. Mas, por alguma razão, decidiu combater o cancro brasileiro. Como todos nós, Chico cresceu e vive na "Belíndia" (bairros nobres dignos da Bélgica e favelas iguais às da Índia), mas decidiu denunciá-la desde cedo em sua obra, o que lhe valeu a perseguição do regime militar, que confiscou todas as cópias do compacto simples de "Apesar de Você". Com sua enorme sensibilidade de poeta, Chico se sente insultado com o que, para os demais herdeiros da Casa Grande, é normal. E enxergou no PT uma forma de transformar tal sociedade injusta. Apesar de não ter rompido com o modelo capitalista brasileiro, que distribui o dinheiro de nossos impostos para bancos privados e da torcida contra da mídia nacional, os governos do PT aumentaram a renda dos mais pobres em 129% e tiraram o Brasil do mapa da fome da ONU. Nos anos 1980, a fome era tão intensa no Nordeste que crianças do sertão nasciam com massa encefálica reduzida e Chico organizou uma versão local de "We Are The World", intitulada "Nordeste Já", para ajudar as vítimas da seca. 

Trinta anos se passaram desde o "Nordeste Já" e a realidade brasileira mudou. Talvez não tão intensamente quanto desejássemos, mas ela mudou. 2015 foi o ano mais quente da história do planeta e, pela primeira vez, nenhum dos nove estados do Nordeste declarou estado de calamidade pública por causa da seca. Pode-se discordar do PT o tanto que for, mas dizer que o Brasil não mudou ou que piorou desde 2003 é de uma desonestidade intelectual sem tamanho. Mas os playboys cariocas, assim como a versão deles no Senado (Aécio Neves) ou no Partido Republicano (Donald Trump), não desejam discutir fatos. Querem discutir pessoas, fazer ataques pessoais baseados em preconceitos. Isso é perigosíssimo, porque é assim que surge o nazismo. A classe dominante da Alemanha conseguiu convencer o povo de que os judeus faziam parte de uma superclasse que controlava as finanças do país do mesmo jeito que agora os aecistas querem nos convencer de que os petistas são a raiz de toda a corrupção no Brasil e os partidários de Trump defendem que os muçulmanos são a raiz de todo o terrorismo mundial.

Se Chico tem alguma responsabilidade pelos desvios do PT, então qualquer eleitor do PSDB tem responsabilidade pela construção de dois aeroportos por Aécio na fazenda de seus parentes. Todo eleitor do PSDB tem responsabilidade pela compra de votos feita por FHC para aprovar a emenda da reeleição. Todo eleitor do PSDB tem responsabilidade pela nomeação de Paulo Roberto Costa ao cargo de presidente de gás e petróleo da Petrobras. Era essa a indagação implícita que estava contida na resposta irônica de Chico a seus inquisidores: "eu acho que é o PSDB que é ladrão". Ou seja, o partido do Aécio, colega de balada do papai de Alvarinho, não é nenhum santo no puteiro e a discussão política no Brasil deve superar, para o bem de toda nação, a lógica pré-escolar do "o seu partido é mais corrupto do que o meu". Mas eu acho que os leitores da Veja não têm a capacidade cognitiva para entender isso. Para eles, o mundo se divide em dois pólos o "do bem" (nós / elite) e o "do mal" (eles / povo), e toda e qualquer pessoa que vota no PT é má, mesmo que seja um cara íntegro e honesto como Chico Buarque. Não foi à toa que um dos slogans de José Serra em 2010 foi "Serra é do bem".

Bogart e Bacall marchando em Washington, D.C.
contra o macartismo.
O serviço que a Veja presta ao país é semelhante ao do Senador republicano Joseph McCarthy nos EUA dos anos 1950. Foi de sua inquisição aos comunistas que surgiu o termo macartismo, que agora voltou à tona com a perseguição de Donald Trump a mexicanos e muçulmanos. No final da Segunda Guerra Mundial, conforme o mundo se tornava cada vez mais refém de uma ordem bipolar, Josef Stálin passava de "nosso companheiro" para "nosso inimigo" segundo a propaganda americana. Os roteiristas ligados ao Partido Comunista dos EUA deixaram de ser louvados por seus esforços de unir americanos e soviéticos na guerra para serem denunciados como anti-patrióticos. Afinal de contas, o que eles supostamente desejavam era promover uma Revolução Bolchevique que derrubasse o governo. Logo uma histeria tomou conta da sociedade americana. Dashiel Hammett, Lillian Hellman, Dalton Trumbo e até mesmo Lucille Ball, ninguém estava a salvo da sanha de McCarthy. Alguns, como Humphrey Bogart e Lauren Bacall, tentaram reagir, mas foi o jornalista Edward Murrow da CBS o responsável por lembrar aos americanos que eles têm o direito constitucional de escolher o partido de sua preferência.

Aqui no Brasil, a cópia patética da CBS que é a Globo faz é alimentar o macartismo. Para o telespectador da Globo, a corrupção surgiu depois do escândalo do mensalão e só é praticada pelos membros de um único partido: o PT. A corrupção existe em todos os partidos, até mesmo no PSOL. É inerente aos grupos sociais. Ainda mais no sistema capitalista, onde o status é adquirido pela acumulação de riquezas. Ninguém diz: "já acumulei o bastante, agora vou parar". A intenção é ter (ou pelo menos parecer ter) sempre mais, porque é acumulando que se adquire status. No entanto, quando mais gente passa a ter (ou pelo menos mais gente parece ter) como é o caso do Brasil pós-PT, a elite se sente ameaçada. Ela só tem status na sociedade por causa do dinheiro. Enquanto o Bolsa Família estava sendo usado para comprar apenas comida, a elite estava tranquila. Quando uma mãe insinuou na televisão que estava usando o dinheiro para comprar calça de marca para a filha, a elite começou a ficar apreensiva. Era preciso, então, usar seu exército fiel que é a classe média (que respeita e obedece a elite porque deseja ser ela) para amedrontar as pessoas e instaurar o macartismo no país.

O que será desse país eu ainda não sei. Mas só sei que precisamos reagir. Já alertei para isso antes e continuarei alertando quantas vezes for preciso. "Ninguém pode aterrorizar uma nação inteira sem que todos nós sejamos seus cúmplices", disse Murrow certa vez. O silêncio dos bons é tão nocivo quanto os gritos dos maus, já dizia o reverendo Martin Luther King. Quem melhor descreveu o que está ocorrendo com o debate político no país foi o cineasta Cacá Diegues: "Esta cena de repressão nazista é um exemplo do que está acontecendo no Brasil: a absoluta intolerância. As discussões políticas estão indialogáveis. A disputa política se transformou em duelo. Eles não queriam argumentar, só xingar". Os playboys do Leblon temem que as conquistas sociais do Brasil se aprofundem e que logo a sociedade perceba os inúteis que eles realmente são para a coletividade. Não produzem nada, não geram emprego ou renda. Vivem da mesada de seus pais famosos. É preciso parar esse processo de "desindianação" do Brasil. Nem que seja através da calúnia, da difamação, da ameaça vermelha. Nem que seja no grito. Pois que gritem, então! De qualquer forma, vão entrar para a história do Brasil como Joseph McCarthy e seus colegas entraram para a dos EUA: como um bando de oportunistas histéricos.

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