domingo, 20 de dezembro de 2015

Jornalismo de torcida

Minha mãe me contou que, zapeando os canais da televisão fechada na última segunda, acabou ouvindo o seguinte de Cristiana Lobo, uma das apesentadoras da Globo News: "se os protestos [a favor do impeachment] tivessem sido maiores, Dilma estaria em apuros". Ora, mas não foram. Atenha-se aos fatos. O jornalista deve amar os fatos, pois esta é a matéria-prima de seu trabalho. Com certeza Cristiana deve ter ouvido isso de seus professores no curso de jornalismo da Universidade Federal de Goiás (UFG), que digo sem hesitar que é o melhor do estado. Mas ela foi obrigada a se esquecer disso assim que passou a vender sua mão-de-obra para uma empresa que, embora se diga jornalística, cada dia preza menos pela realidade dos fatos.

Quando nos tornamos assinantes da Globo News aqui em casa, no início da década passada, Roberto Marinho ainda era vivo, Ali Kamel ainda não era o déspota da Central Globo de Jornalismo e a emissora era qualquer coisa menos a cópia mal-feita da FOX News em que se transformou. Não era apresentada, no canal, a realidade do Kamel, e sim as diversas realidades do Brasil e do mundo. A linha editorial era claramente de centro-direita, mas era possível ter acesso a outras visões de mundo. Jamais vou me esquecer de uma entrevista com a ativista social canadense Naomi Klein, musa da esquerda altermundista. À época, a direita brasileira ainda não se deixava pautar por figuras iletradas como Olavo de Carvalho e permitia o mínimo de debate inteligente.

Isso começou a mudar, no entanto, a partir de 2009. Nessa altura, Lula já havia escolhido Dilma Rousseff para sucedê-lo e a emissora passou a adotar uma postura abertamente hostil à pré-candidata, ao Partido dos Trabalhadores e, por conseguinte, a toda a esquerda em sua cobertura do universo político brasileiro. Choquei-me quando foi apresentada a (então) nova comentarista de política do canal de notícias, Lucia Hippolito. Uma mulher sem bagagem intelectual, rancorosa em relação ao partido do qual fez parte na juventude e que frequentemente usava termos chulos para atacar políticos que lhe desagradavam. Uma versão local de Ann Coulter da FOX News. Parei, então, de assistir à Globo News porque sentia-me atacado. A emissora não só decidiu não representar mais quem seguisse as ideias da esquerda como também passou a nos atacar como inimigos.

A situação chegou a tal ponto que um historiador carioca, comentarista habitual do canal de notícias, decidiu parar de conceder entrevistas ao mesmo devido a sua tentativa de caracterizar jovens manifestantes de esquerda do Rio de Janeiro como delinquentes. Não há mais realidades. Há a realidade do Kamel. E ela é sombria, distópica e contribui para que o público ache que a realidade também é assim. Numa pesquisa recente, os brasileiros foram apontados como o 3° povo mais ignorante do mundo. Os entrevistados não conseguir citar corretamente dados socioeconômicos do país, como nível de distribuição de renda ou poder de compra do salário mínimo. Ligamos a televisão na Globo News com o pretexto de nos mantermos informados, mas isso não só não ocorre como ainda ficamos ainda mais ignorantes quanto à realidade que nos cerca.

Somos o terceiro povo mais ignorante do mundo.
Recentemente a Folha de S. Paulo, propondo-se a analisar o Brasil pós-PT, publicou dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que confirmam que, nos últimos doze anos, todos os brasileiros tiveram aumento em seus níveis de renda, descontada a inflação; em especial os mais pobres, cujo aumento foi da ordem de 129%. São dados que, segundo o jornal, jamais ocorreram na história do país. Acompanhando a matéria, uma reportagem, uma pesquisa do Instituto Datafolha que diz que, para 68% dos entrevistados, o Brasil não mudou após os governos do PT. O jornal optou por trazer na chamada de capa o dado negativo e representante da realidade falsa. Como se quisesse debochar do nosso posto na lista dos povos mais ignorantes do mundo a respeito de nossa própria situação.

O resto da mídia – Globo News incluída – seguiu o jornal, preferindo enfatizar a percepção ao invés da realidade. A mídia comercial brasileira deixou de fazer jornalismo, que nada mais é do que reportar fatos, para fazer torcida anti-PT. Todo e qualquer dado que possa desmerecer os doze anos de governo petista tem uma ênfase descomunal. Já os dados que possam favorecer o governo são escondidos. A realidade vai sendo moldada para parecer que moramos no pior dos mundos possível. E as pessoas, confiando na autoridade dos jornais, acreditam nessa realidade paralela, distópica. A mídia comercial presta um desserviço à sociedade. Se soubéssemos a verdadeira dimensão de nossos problemas, talvez pudéssemos enfrentá-los com mais propriedade. 

Aos patrocinadores da mídia comercial, como Vale e Bradesco, não interessa que o povo brasileiro saiba a real dimensão do problema da queda da barragem de Mariana (MG) nem a quantidade de dinheiro público que vai para os bancos. Por isso, as Cristianas estão mais preocupadas com hipóteses e suposições. Tornamo-nos espectadores da torcida anti-PT dos grandes jornais, para os quais o fim do Brasil é iminente. Por mais absurdo que pareça, os fatos deixaram de ser importantes nas redações. Na construção da realidade anti-PT vale qualquer coisa – como uma pesquisa que atesta nossa ignorância em relação à nossa realidade – para pintar um cenário apocalíptico que vai derrubar a Dilma. Só não vale o princípio fundador do jornalismo: a fidelidade à realidade dos fatos concretos.

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