quarta-feira, 30 de março de 2016

O verão do descontentamento no Brasil


Vijay Prashad.
As praças modernistas do Brasil estiveram cheias de manifestantes durante a última semana. Eles pediam a renúncia da Presidenta — Dilma Rousseff do Partido dos Trabalhadores (PT). Multidões na Avenida Paulista em São Paulo seguraram uma faixa enorme onde se lia "Impeachment já!". Esse é o slogan dos protestos — se a Presidenta Rousseff não renunciar, então deverá ser cassada.

Por que essas milhares de pessoas querem que a Sra. Rousseff abandone o cargo? Uma erupção de escândalos de corrupção que envolve toda a elite política aparece num momento de estagnação da economia brasileira. O Brasil atualmente passa por sua pior recessão em meio século, com o crescimento econômico encolhendo. Preços baixos de commodities e um relaxamento na demanda da China são os principais responsáveis por essa queda. Não há remédio no horizonte, uma vez que a China não deve aumentar suas compras. Tampouco, assim, crescerão os preços das commodities. Dependente de ambos, uma saída para a crise brasileira nessa direção encontra-se fechada. O PT, no poder desde 2002, foi incapaz de diversificar a economia e, assim, estava vulnerável ao preço das commodities. O economista Alfredo Saad-Filho chama isso de uma "confluência de descontentamentos", baseada naqueles com preocupações imediatas — o aumento na tarifa de ônibus — e naqueles com ansiedades muito maiores — a perda de poder das classes dominantes.

Encolerizando a elite

O que chama a atenção nos protestos contra o governo Rousseff é que eles não estão vindo das favelas brasileiras e nem dos trabalhadores industriais. Em março do ano passado, a classe média-alta diplomada do Brasil saiu às ruas para uma série de marchas contra o governo. Luiz Carlos Bresser-Pereira, ex-Ministro das Finanças nos anos 1980, caracterizou os protestos como "ódio coletivo por parte da elite, dos ricos, contra um partido e uma presidenta". O que motivava os manifestantes, diz ele, não eram reivindicações e sim o "ódio". O que a elite brasileira odeia no governo do PT?

O PT defendeu uma ampla agenda que deu ao capitalismo uma face humana. A pobreza miserável em regiões do Brasil foi aliviada por um programa de ajuda social conhecido como Bolsa Família. O Banco Mundial afirmou que este programa "mudou as vidas de milhões no Brasil". Em troca de pagamentos em dinheiro, as famílias empobrecidas do Brasil prometem manter seus filhos na escolas e levá-los para check-ups médicos regulares. O governo afirmava que o Bolsa Família elevaria as condições de vida imediatas dos pobres — através dos pagamentos em dinheiro — e que quebraria o ciclo da pobreza intergeracional — através da educação e dos cuidados médicos.

Cerca de 50 milhões de brasileiros — um quarto da população — se beneficiou do Bolsa Família. No ano passado, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística anunciou que a pobreza extrema havia sido erradicada do país. Mas, durante o anúncio, o Instituto alertou que os cortes orçamentários ao programa reverteriam esta tendência. Um terço dos fundos reservados ao Bolsa Família foram removidos do orçamento de 2016 [Nota do blog: pelo Congresso]. Isto é um indicador das tribulações financeiras do governo.

O que a elite odiou foi o aumento dos salários mínimos, a expansão de direitos trabalhistas e os privilégios agora oferecidos à classe trabalhadora para a entrada nas universidades públicas. Os benefícios à classe trabalhadora revelaram a questão social da desigualdade racial. O Brasil, um ex-Estado escravocrata, nunca lidou bem com os legados da escravidão e do racismo. Sob o PT, questões de discriminação racial e os custos do racismo para os trabalhadores se tornaram parte da discussão nacional. Isto foi um anátema para a elite.

Hábito de golpes

Durante o século passado, em intervalos regulares, movimentos políticos populares emergiram no Brasil para desafiar o arreio de ferro da elite. Toda vez que o povo se reunia por trás destes líderes, a elite — coma  assistência do Exército e dos Estados Unidos — minava a revolta das favelas e do campo. Os presidentes Getúlio Vargas e João Goulart se tornaram porta-vozes dessa frustração popular e foram ambos removidos — Vargas foi levado ao suicídio em 1954 e Goulart foi removido por um golpe militar em 1964. Em ambos os casos, a combinação das classes dominantes estabelecidas, dos militares e dos EUA geraram crises que esmagaram o país e despacharam os líderes populares. O medo de que isso faça parte da equação no Brasil atual não é infundado. Está gravado na história brasileira.

Os golpes não precisam vir mais dos quartéis. A mídia é o suficiente. No Brasil, a Rede Globo — com 50 anos de existência — agora controla mais que a metade da mídia — canais de televisão e jornais influentes — incluindo O Globo. "Não há outros meios de comunicação com influência similar no país", me conta a Professora Beatriz Bissio da Universidade Federal do Rio de Janeiro. O dono da rede, Dr. Roberto Marinho, tinha uma aliança próxima com o regime militar. Seus canais tem atacado o governo Rousseff, incitando os protestos não a favor da anti-corrupção, mas contra o PT.

A questão da corrupção

No Brasil, uma frase popular é "o sistema não é corrupto; a corrupção é o sistema". A corrupção sistêmica tem sido servida a grandes levas de políticos brasileiros, não apenas aos líderes proeminentes do PT, mas também à oposição, incluindo Aécio Neves, que concorreu à presidência contra a Sra. Rousseff em 2014. Grandes lucros nas maiores empresas governamentais, Eletrobras e Petrobras, ofereceram aos políticos a oportunidade para pedir propinas. Os políticos do PT não resistiram à tentação. Mas eles não estavam sozinhos.

A mídia pediu a cabeça do PT como se ele tivesse sido o único que foi cúmplice dos escândalos de corrupção. Ela ignorou os escândalos de corrupção da oposição de direita. O Datafolha tem feito pesquisas regulares sobre os descontentamentos dos brasileiros. Mais de um terço da população diz que a corrupção é sua maior queixa, embora o resto dos pesquisados reclamam da falta de acesso a cuidados médicos e à educação, assim como a empregos. À mídia não interessa essas reclamações. Elas vão de encontro ao programa do PT. É mais fácil apontar o dedo para a "corrupção", uma ideia com apelo emocional para pessoas cuja sobrevivência enfraquece conforme observam a elite se tornando imune à crise.

O fator Lula

A Sra. Rousseff, ao contrário do Sr. Lula, não cultivou uma ligação direta com o povo. Obrigada a promover cortes no orçamento, ela não se estendeu ao público para explicar os problemas. Atacada pela mídia, a Sra. Rousseff se isolou de seus apoiadores. A confusão levou ao desencantamento. O Sr. Lula, da fábrica, e a Sra. Rousseff, da cadeia, criaram um partido — o PT — que cresceu a partir dos poderosos movimentos sociais brasileiros, tais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra ou MST. A Sra. Rousseff buscou o Sr. Lula para reanimar seus laços com os movimentos sociais. Ele é dos sindicatos, um homem de temperamento salgado com popularidade entre a classe operária e os camponeses.

Mas o Sr. Lula está sob investigação na Operação Lava Jato sobre lavagem de dinheiro na Petrobras. Seu papel é de pequena escala se comparado a demais abusos. A detenção do Sr. Lula e a revelação de uma gravação telefônica grampeada entre ele e a Sra. Rousseff sugerem uma conspiração maior em trabalho aqui. Faz parte do hábito da elite brasileira fomentar a discórdia para prevenir qualquer ameaça a sua estabilidade. O retorno do Sr. Lula numa época de crise econômica pode indicar uma guinada do PT à esquerda. Não havia outra escolha se não mover-se nessa direção. Seria suicida para o PT tornar-se o partido da austeridade. A convocação do Sr. Lula era para ajudar a Sra. Rousseff a mudar de curso. É isso que a elite julgou abominável. A oferta da Sra. Rousseff para o Sr. Lula assumir um cargo em seu gabinete teria imunizado-o da acusação. Agora um juiz suspendeu a nomeação.

Na sexta-feira, um milhão de pessoas se juntaram à Frente Brasil Popular para repetir o grito de Lula — não vai ter golpe. O povo, como o MST definiu, foi às ruas para defender a democracia. Este foi um protesto contra o golpe de Estado. Se a emergência destes protestos populares irá mudar a dinâmica feia do Brasil ainda não é possível dizer. Muito está em jogo neste importante país sul-americano.

Vijay Prashad leciona Estudos Internacionais na Trinity College (EUA) e é o autor de "The Poorer Nations: A Possible History of the Global South".

terça-feira, 29 de março de 2016

O bandido bom

Nascia, há cerca de 2020 anos, no Oriente Médio, um dos maiores líderes políticos e religiosos que a Terra já conheceu. Numa época em que o ódio ditava o tom dos debates, esse rabino da cidade de Nazaré ousou dizer que devemos amar nossos inimigos. Numa época em que a xenofobia e o preconceito eram extremos, ele abraçou estrangeiros, leprosos e prostitutas e ousou dizer que devemos amar nossos vizinhos como amamos a nós mesmos. Irritou, assim, os líderes políticos e religiosos de seu tempo, que alimentavam o ódio entre os destituídos para manter seu status social. Os oprimidos estavam muito ocupados odiando a si mesmos para perceber o quão explorados estavam sendo por religiosos hipócritas e seus aliados da potência invasora.

Além disso, o rabino defendia a igualdade social. Ele ensinou a seus seguidores a dividir o pão. Disse a um jovem rico que queria segui-lo: vá e dê tudo o que possui aos pobres. Logo o jovem entusiasta perdeu o interesse em acompanhá-lo. É fácil agir como um hipócrita e querer levar uma vida simples quando, no final da jornada, se tem uma casa confortável para onde voltar. Não são com essas pessoas que devemos nos preocupar, ensinou o rabino. O reino dos céus não pertence a elas; é mais fácil um camelo passar pelo olho de uma agulha do que um rico entrar no céu, disse certa vez. Pouco antes de morrer afirmou que a doação vinda de quem tira de suas necessidades é muito mais digna de graça do que a oferta de quem tira do supérfluo.

Continuamos a matar Jesus todos os dias,
enquanto lembramo-nos de sua morte na Páscoa.
Conforme seu número de seguidores crescia, irritava os possuidores do monopólio da espiritualidade e da política na Palestina, ou seja, os fariseus (preocupados com a exposição de sua hipocrisia) e os romanos (preocupados que seu modelo alternativo resultasse no fim do pagamento de impostos). Não podiam aceitar a concorrência de um simples carpinteiro iletrado, ouvido, aclamado e seguido pelas massas destituídas. Forjaram-lhe, então, um julgamento político, uma farsa com o intuito único de condenar-lhe. O responsável pelo julgamento sequer entendeu o crime do acusado e tentou libertar-lhe, mas acabou preferindo sentenciar-lhe à morte para não dar margem para uma revolta dos justiceiros que, raivosos, gritavam na porta de seu palácio: "crucifique-o".

Na cruz, o rabino perdoou os pecados de um bandido antes de falecer. Jesus morreu como ele e como qualquer ladrão de celular que é linchado até a morte por turbas nos rincões do Brasil. Foi condenado sem provas e feito de bode expiatório para servir de lição a rabinos radicais assim como Rafael Braga, jovem negro condenado por carregar um garrafa de Pinho Bril na mochila durante as manifestações de junho de 2013. Jesus foi executado sumariamente como Manuel Fiel Filho, que defendia ideias tão perigosas para o poder dominante de sua época quanto ele. Dito isso, tenho a convicção de que Jesus é um desses bandidos bons dos quais os comentaristas histriônicos de tevê falam. Jesus é um bandido bom porque é um bandido morto. E continuamos a matá-lo, todos os dias, enquanto lembramo-nos de sua vida e morte durante a quaresma. Amém?

segunda-feira, 28 de março de 2016

2015-16: chocando o ovo da serpente

Muitas vezes a falta de distanciamento histórico não nos permite analisar os eventos como eles de fato ocorrem. Agora, no entanto, está mais do que nítido para mim que os dois últimos anos representam, para a contemporaneidade, aquilo que a década de 1920 representou para o século passado. E não, não estou falando da revolução tecnológica que permitiu o surgimento do cinema falado. Refiro-me à ascensão do nazifascismo na Europa. Em 2015, sob os efeitos do terrorismo global e de uma crise financeira tão avassaladora quanto a de 1929, inaugurou-se uma nova era de influência das ideias de extrema-direita sobre uma série de países, sobretudo aqueles cujas instituições políticas passam por uma acentuada crise de representatividade.

O primeiro exemplo que salta aos olhos é o da Alemanha, uma vez que foi este o país onde se originou o nazismo. Em meados de outubro de 2015 foi fundado, na cidade de Dresden, o grupo "Europeus Patriotas Contra a Islamização do Ocidente" (PEGIDA), que se opõe ao recebimento de refugiados sírios pela potência europeia. Atraiu 350 pessoas em sua primeira manifestação. Na semana posterior ao ataque terrorista à sede do jornal satírico francês Charlie Hebdo, entretanto, levou 250.000 pessoas às ruas da cidade. Nove em cada dez manifestantes do PEGIDA apoiam o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD) que, desde então, tornou-se o terceiro maior nos parlamentos de dois estados e o segundo maior na casa legislativa de Saxônia-Anhalt.

Marine Le Pen posa com dois skinheads em 2006.
Na França, os efeitos das crises financeira e de imigração são sentidos de maneira mais intensa e, por isso mesmo, a extrema-direita tem feito avanços significativos. Em 2014 o país viu seu PIB ser ultrapassado pelo da Grã-Bretanha, ao passo em que a Frente Nacional (FN) elegeu 24 deputados para o Parlamento Europeu que deseja destruir. Os deputados desse partido valem-se de um ciclo vicioso que alimenta a xenofobia para angariar votos. Os muçulmanos são excluídos da sociedade que os teme e encontram refúgio em grupos que promovem uma visão radical do Islã o que, por vezes, resulta em atentados que justificam a exclusão dos muçulmanos da sociedade. Só em 2015 ocorreram três atentados promovidos por grupos islâmicos em Paris.

Julgava-se que a FN tinha se exaurido em 2002, quando seu então líder, Jean-Marie Le Pen, sofreu uma derrota acachapante para Jacques Chirac no segundo turno das eleições presidenciais daquele ano. Sua filha Marine, no entanto, reinventou o partido ao abandonar a retórica fascista do pai, embora defenda praticamente a mesma agenda que ele. Agora atraente aos jovens e politicamente viável, a FN obteve, pela primeira vez, o maior número de votos nas eleições regionais (equivalente às nossas eleições para governadores). Em Nord-Pas-de-Calais-Picardie e em Provence-Alpes-Côte d'Azur as candidatas da extrema-direita só não se tornaram governadoras graças a uma inesperada coalizão entre a centro-esquerda e a centro-direita no segundo turno.

A pesquisa mais recente para a eleição presidencial de 2017 indica que Marine Le Pen pode vir a se tornar a candidata mais votada no primeiro turno, embora sua vitória no segundo seja improvável. Entretanto, me pergunto se ela não emergirá como alternativa viável, sobretudo para os jovens desesperançosos com o sistema político, caso a centro-direita que deve substituir o atual presidente socialista François Hollande mostrar-se tão ou mais incapaz do que a centro-esquerda de resolver os problemas econômicos do país. A crise das instituições na França é profunda e recorrente. A xenofobia apenas ajuda a transformar os inimigos — muitos e difusos — em algo palpável. O fascismo nada mais é do que a forma que os capitalistas encontram de culpar outros pelas crises que geram.

O fascismo caracteriza-se pelo atropelo ao devido processo
legal e pela crença de que o país precisa de um líder forte.
O que nos leva até o caso dos Estados Unidos. Vimos despontar, em 2015, um candidato que debita nas costas dos imigrantes latino-americanos todos os problemas econômicos da nação e que que propõe construir um muro na fronteira com o México. No entanto, ele não se pronuncia sobre o sistema de financiamento eleitoral que gera a desconfiança do público ao sistema político. Baseia sua campanha na parcela do eleitorado que se ressente por ter que dividir seus espaços com hispânicos. Seria cômico, não fosse trágico, que a maior nação do mundo corre o risco sério de vir a ser governada por um fascista como Donald Trump. Quem diz isso não sou eu, mas Robert Paxton, professor emérito da Universidade de Colúmbia e um dos maiores pesquisadores contemporâneos sobre o fascismo da década de 1920.

Não é à toa que Trump é aclamado pelos camisas-amarelas do Brasil. Embora jurem de pé junto que sejam democratas, em momento algum os manifestantes anti-Dilma denunciaram as forças fascistas (que não eram poucas) presentes em suas manifestações. O fascismo, segundo Paxton, caracteriza-se pelo nacionalismo exacerbado, ataques a inimigos tácitos e explícitos sem respeito ao devido processo legal, uma certa obsessão em dizer que a nação em questão declinou e a crença de que o país precisa de um líder forte. Todas essas características estão presentes nos comícios e discursos tanto de Trump quanto dos camisas amarelas. A comparação entre os dois movimentos políticos, feita por Glenn Greenwald não é descabida. Afinal de contas, o ovo da serpente está sendo chocado no mundo inteiro.

sexta-feira, 25 de março de 2016

A lição da esquerda árabe-israelense

Há cerca de um ano os israelenses foram às urnas para escolher os membros do 20° Knesset, o parlamento do Estado de Israel. A prioridade dos partidos árabes era clara: eleger um número grande o suficiente de deputados para impedir a formação de um novo governo pelo então primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, cujo partido, Likud, se opõe à coexistência pacífica com os palestinos. Assim sendo, os quatro partidos da esquerda árabe — Hadash, Lista Árabe Unida, Balad e Ta'al — decidiram colocar suas diferenças de lado e formaram a Lista Conjunta.

O resultado da união de esforços foi um recorde na participação eleitoral dos cidadãos árabe-israelenses. A Lista Conjunta obteve 446.583 votos (10,6% do total) e tornou-se a terceira maior agremiação do Knesset, com 13 deputados — dois a mais que os partidos árabes possuíam antes de forjarem a coligação. Apesar da disposição em se coligarem com a União Sionista, agremiação de centro-esquerda judaica, não conseguiram impedir a posse de Netanyahu para um novo mandato. O Likud obteve a maior parte dos votos e, assim sendo, teve preferência nas negociações para formar um novo governo, no que obteve êxito.

De qualquer forma, o sucesso da Lista Conjunta garantiu unidade e coesão nas demandas dos cidadãos árabes de Israel, os mais humilhados e oprimidos daquela sociedade. Mais espaço no parlamento significa maior visibilidade a essas pessoas. É isso que a esquerda brasileira deveria perceber no momento atual. A retirada de Dilma Rousseff do poder central significaria o aprofundamento dos cortes de gastos sociais. O economista oficial do golpe frio, Armínio Fraga, já afirmou que programas como Bolsa Família e ProUni "serão retirados da pior maneira".

A oposição de esquerda, mesmo que não lhe caiba fazer a defesa da agenda econômica do governo Dilma, deve lutar pela manutenção da agenda social, que garante a ampliação de direitos dos humilhados e oprimidos do Brasil. Defender a pauta do "que se vayan todos" só agrada à direita ultraliberal que deseja tirar Dilma porque nega a função social do Estado e deseja fazer com que o governo sirva apenas aos ricos que os financiam, como os Irmãos Koch ou os especuladores que vivem do pagamento dos juros da dívida pública. Essa esquerda trai a si mesmo e a seus eleitores.

Urge, à esquerda nacional, seguir os passos da esquerda árabe de Israel e perceber que, juntos, somos mais fortes na luta contra os opressores do povo. Já está mais do que claro que o propósito da Operação Lava Jato não é limpar o Brasil da corrupção; é limpar o país da política partidária. Isso ficou claro para mim quando os parceiros de Sérgio Moro no Jornal Nacional exibiram uma reportagem sobre a lista de recipientes de propina da Odebrecht e, ao invés de listar os maiores beneficiados, exibiram a lista dos partidos que teriam participado do esquema. Todos, menos PSTU e PCO, apareceram na tela da Globo.

A mídia vem sendo questionada por sua parcialidade nas denúncias contra o PT e reage como sempre tem reagido nesses casos: passa a afirmar que todos os partidos são corruptos. O PT seria apenas o mais corrupto deles. Entretanto, soa-me estranhíssimo que dois partidos nanicos e independentes — PCB e PSOL — receberiam propina. O PCB já negou esse "fato" em suas redes sociais, mas o estrago já foi feito. Milhões de pessoas viram o partido ser associado a siglas abjetas como o DEM e o PP, herdeiros do partido oficial da ditadura militar.

Quando o golpe frio se consolidar, ninguém vai ser perdoado, por mais crítico e independente que tenha sido do governo Dilma. Por isso, é hora de deixar as diferenças de lado, como os partidos da Lista Conjunta fizeram. Estamos num confronto e, na guerra, as regras para a política de alianças devem ser afrouxadas. Caso o contrário, perdemos. E a derrota do nosso lado, da esquerda, no momento político atual do Brasil, significa a derrota do tudo aquilo que o povo conquistou nos últimos 12 anos. É chegada a hora de nos posicionarmos, para o bem do povo brasileiro.

quinta-feira, 24 de março de 2016

O golpe frio e a mudança de governo nos EUA

Me parece que a pior coisa que poderia ter acontecido a João Goulart foi o assassinato de John F. Kennedy em 1963 em Dallas. Conforme escrevi anteriormente, em análise do documentário Brazil: Troubled Land, exibido em junho de 1961 pela rede de televisão norte-americana ABC, o governo Kennedy parecia querer buscar uma solução pacífica e institucional para a crise política que se instalava no país na primeira metade da década de 1960 e dividia os brasileiros em pró e anti-Jango. No entanto, Kennedy foi assassinado e substituído por seu vice, o falcão de guerra Lyndon B. Johnson.

Trump vai vencer e ajudar o Brasil... a ficar sem o pré-sal.
Em novembro, os EUA elegerão seu próximo presidente e o governo Dilma deve estar atento para o resultado do pleito, afinal, o Brasil passa por cenário similar ao de 1964. Jeb Bush, cujo irmão George era amigo pessoal do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não está mais na disputa. Perdeu espaço para a direita neoconservadora que deseja aplicar, no governo federal, a agenda anti-pobres que já defende no Congresso. Eles são financiados pelos ultraliberais Irmãos Koch que, segundo o pesquisador Michael Fox, também financiam grupos pró-impeachment no Brasil como o MBL.

A empresa que herdaram do pai, a Koch Industries, desenvolveu a tecnologia para refinar o petróleo cru pesado e possui interesse direto no Brasil do pré-sal e em qualquer outra nação com grandes reservas de petróleo. A eleição de um republicano, seja ele quem for, significa a adoção pelo Pentágono da política externa intervencionista dos Irmãos Koch. Até mesmo de Donald Trump, que afirma ser auto-financiado e que não vai adotar a agenda política dos milionários, mas que é um milionário ele mesmo com ações na Chevron. O discurso dos republicanos é tão alinhado com os anti-Dilma que já teve até faixa dizendo "Trump win and help Brazil" em protesto.

No lado democrata da disputa, no entanto, temos a liderança da ex-secretária de Estado e ex-primeira-dama Hillary Clinton. Em seu livro mais recente, Hard Choices, de 2014, Clinton elogiou o intelecto e a determinação de Dilma. Antes disso, em 2012, afirmou que Dilma estabeleceu um padrão mundial na luta contra a corrupção. No entanto, Hillary Clinton também é reconhecida pelos próprios americanos como uma falcoa de guerra. Foi durante seu período no Departamento de Estado que houve a intervenção na Líbia e que a retórica anti-diálogo dos Estados Unidos levou à guerra civil na Síria. Além disso, ela tem uma reputação de mudar de opinião a cada dois anos em assuntos importantes.

O fato é que, conforme foi desenvolvida historicamente, a democracia americana necessita do imperialismo para elevar a qualidade de vida de seus cidadãos. Bernie Sanders é o único candidato que promete elevar o padrão de vida dos americanos não através da expansão econômica via força bruta, mas sim através da regulação da renda dos mais ricos, em especial dos especuladores — pelo menos num primeiro momento. É por isso mesmo que ele é considerado um outsider e é motivo de chacota na grande mídia. O jeito é esperar para ver se, assim como o governo Jango, a continuação do Governo Dilma depende da troca de inquilino na Casa Branca.

quarta-feira, 23 de março de 2016

O golpe frio

No sábado passado a revista alemã Der Spiegel se referiu à tentativa de destituir a presidenta Dilma Rousseff como um Kalter putsch ou golpe frio. Ao contrário do golpe civil-militar de 1964, que ocorreu tão às pressas que pegou todos de surpresa, o golpe de estado atual vem sendo extremamente calculado. Desde 2003 a grande imprensa atua como um partido de oposição (algo que já foi confirmado até pela própria presidenta da Associação Brasileira de Jornais), tentando destruir a imagem de Lula e do PT, criminalizando-os com provas falsas e fontes duvidosas que jamais apareceriam na maior revista alemã, mas que aparecem na maior revista brasileira.

Ciente da perseguição da grande mídia ao PT, o juiz federal Sérgio Moro entrou em cena para o último ato: seria ele o personagem responsável por aplicar o último golpe ao partido. Sob o pretexto de investigar um mega esquema de corrupção na Petrobrás, que data do governo FHC, armou um circo midiático responsável por jogar amplos setores da população contra o PT. Nos protestos insuflados pela mídia, adivinhe só, Moro é aclamado como o herói salvador do Brasil, embora receba um salário muito maior que o da presidenta supostamente corrupta que ele combate (o que é ilegal). Segundo a Al Jazeera, "a estratégia de Moro começou há uma década, antes mesmo do início da Operação Lava Jato".

Em 2004 o juiz paranaense escreveu um artigo em tom elogioso sobre a Operação Mani Pulite (Mãos Limpas), que destruiu os principais partidos políticos italianos sob o pretexto de combater a relação deles com a máfia. O que se seguiu foi uma descrença generalizada da população com os políticos tradicionais e a eleição de um magnata da mídia —Silvio Berlusconi— que, aí sim, institucionalizou a corrupção no governo. Segundo a BBC, após a Mãos Limpas a corrupção na Itália ficou ainda mais sofisticada e difícil de ser combatida. Só um imbecil para achar que no Brasil seria diferente. Sem uma reforma do financiamento de campanha, nada mudará em nosso país como não mudou na Itália. Pode destruir todos os partidos que a corrupção não acabará.

A impressão que eu tenho, no entanto, é que Sérgio Moro não deseja combater a corrupção. Se eu ainda acreditava nisso, as dúvidas se dissiparam na semana passada quando, tomado pela raiva de não poder mais investigar Lula, ele agiu acima da lei e divulgou ilegalmente um áudio que atrapalharia a posse do ex-mandatário como ministro-chefe da Casa Civil. Por ter captado a presidenta da República, o grampo não poderia ter sido divulgado sem a permissão do STF. Estranhamente, no dia seguinte, antes mesmo da posse de Lula, um juiz do Distrito Federal já havia redigido uma liminar suspendendo-a tendo como base o grampo ilegal. Nas redes sociais da criatura, ataques os mais abjetos possíveis contra o PT.

Fui, então, pesquisar mais sobre a história do novo "herói" nacional e eis que descubro que ele foi assessor da ministra Rosa Weber durante o julgamento do mensalão no STF em 2012. Rosa é a prima de Letícia Weber, mulher de Aécio Neves, e notabilizou-se por declarar, durante o julgamento, que não haviam provas contra José Dirceu, mas que condenaria-o mesmo assim porque a "literatura jurídica" permitia. Percebe-se, assim, o nível raso da assessoria jurídica prestada por Moro à ministra. Eu achava, na minha inocência, que todo mundo era inocente até provado o contrário, ou seja, que ninguém pode ser condenado sem provas. A dúvida sobre as provas livrou O.J. Simpson no "julgamento do século".

O fato é que a farsa jurídica de Moro contra o PT vem sendo preparada desde então. Ele vem ajudando a distorcer a lei para criminalizar o partido. No entanto, ele não daria conta de fazê-lo sozinho. Em seu artigo, citado pela Al Jazeera, Moro escreveu sobre o papel fundamental da mídia na consolidação da Mãos Limpas. Assim sendo, usa e é usado pela mídia para atingir o grande sonho de sua vida: entrar para a história como o cara que destruiu o PT. Fazer aquilo que o general Golbery não deu conta de fazer. O problema dele, no entanto, é que nem todo mundo está disposto a acreditar cegamente na sua benevolente luta contra a corrupção. A internet expõe sua seletividade e até mesmo quando quis se valer do "jeitinho" para continuar lecionando na UFPR enquanto assessorava Weber.

O golpe é frio, sim. Calculado e planejado meticulosamente há pelo menos dois anos, quando a seletivíssima Operação Lava Jato —que prende o petista Delcídio do Amaral e não o peemedebista Eduardo Cunha, peça-chave do golpe— começou. Mas engana-se quem pensa que a reação ao golpe será fria também. Moro criou um clima de instabilidade política e jurídica que se assemelha ao prenúncio de uma guerra civil. Seus partidários acham que ele, um juiz de primeira instância, é mais importante do que a Suprema Corte. É possível que quando Moro for reivindicar o papel de herói salvador da pátria que calculadamente construiu para si com a ajuda da mídia, sequer haverá mais pátria para aclamá-lo.

terça-feira, 22 de março de 2016

Às verdadeiras vítimas do comunismo

O comunismo, enquanto ideologia utópica, nunca matou nenhum ser humano. A grosso modo, o comunismo é o estágio final da revolução socialista, onde todas as desigualdades socioeconômicas desapareceriam e os indivíduos seriam plenamente iguais em direitos e deveres. Desapareceriam as classes sociais. Isso jamais ocorreu nos países ditos socialistas. Em Cuba, na China e na União Soviética, o que se verificou foi a divisão da sociedade em duas classes: os líderes e os liderados. Segundo Marx e Engels, o comunismo promoveria o desaparecimento do Estado nacional, que se tornaria obsoleto para organizar a sociedade. Com a propriedade coletiva dos meios de produção, o que acabaria com a exploração do homem pelo homem, torna-se desnecessária a existência de um Estado para mediar conflitos e impor obrigações.

Segundo os manifestantes do dia 13, eles são tão heroicos
quanto o homem do tanque. Só que Dilma não declarou lei
marcial e nem proibiu as eleições no Brasil.
Graças à Revolução Russa de 1917, o comunismo foi amplamente, se não exclusivamente, associado ao regime político e à forma de organização econômica da União Soviética. Regimes ditos comunistas chegaram a governar um terço da população mundial no início dos anos 1980 e eram caracterizados pela ditadura do partido único e pela repressão de ideias dissidentes. Em 21 de dezembro de 1991, no entanto, a União Soviética entrou em colapso após 74 anos de influência considerável sobre o mundo. Segundo Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo, em História para o Ensino Médio, essa influência se dissipou: "a capacidade [dos comunistas] de opor-se ao poder dos países capitalistas não existe mais". Os países comunistas remanescentes (com exceção da Coreia do Norte) permitem a livre competição econômica enquanto mantêm a ditadura do partido único.

Diversas vertentes do comunismo emergiram após a Revolução Russa, mas, na prática, nenhum Estado dito comunista atingiu a meta marxista de socializar os meios de produção, ou seja, dar aos trabalhadores o controle dos mesmos. No máximo promoveram a nacionalização deles. Por esta razão, diversos grupos marxistas se referem aos comunistas soviéticos e chineses não como comunistas, mas sim como capitalistas de Estado. Outro termo bastante utilizado para descrever os regimes comunistas é socialismo real, termo que denota a diferença substancial desses regimes em relação ao socialismo ideal. De fato, a China, o maior país dito comunista da atualidade, em nada lembra o ideal marxista: os chineses podem abrir empresas privadas e estrangeiros podem investir no país. Ainda não conheci turistas mais consumistas do que os chineses.

Paralelamente a isso, a repressão é brutal como na antiga União Soviética. Em abril de 1989, em meio à queda dos regimes comunistas no Leste Europeu e a uma crise inflacionária, milhares de estudantes e trabalhadores saíram às ruas para exigir o retorno da liberdade de imprensa e de expressão e da coletivização das fábricas. No auge dos protestos cerca de um milhão de pessoas ocuparam a Praça da Paz Celestial em Pequim. Inicialmente o governo chinês, liderado por Deng Xiaoping, optou por adotar um tom conciliatório com os manifestantes, mas acabou decidindo apelar para a força bruta quando os protestos se espalharam para mais de 400 cidades em meados do mês de maio. A lei marcial foi declarada em 20 de maio e cerca de 300.000 tropas foram deslocadas para a capital com o intuito de desocupar a praça.

Entre os dias 3 e 4 de junho, o Exército de Libertação do Povo começou a desocupar o local, provocando a morte de 202 manifestantes segundo as Mães da Praça da Paz Celestial. O que se seguiu após a desocupação foi a expulsão dos jornalistas estrangeiros, um maior controle sobre a mídia local e a prisão dos manifestantes e seus apoiadores. Como resultado das imagens veiculadas internacionalmente — a mais famosa delas sendo a de um homem desconhecido que, voltando das compras, se posicionou na frente de um tanque de guerra —, o governo Xiaoping foi condenado e embargado pelas principais potências estrangeiras. É interessante notar que os manifestantes não eram necessariamente adeptos de uma ideologia de direita, como o social-democrata Wu'erkaixi (que se refugiou em Taiwan) e os membros da Nova Esquerda chinesa Kong Qingdong, Shen Tong e Wang Hui.

Essa era a mídia à disposição dos estudantes chineses.
Dito tudo isso, me causa repulsa quando vejo, nas ruas da minha cidade, outdoors convocando a população a reagir contra o comunismo no Brasil. Em primeiro lugar, o PT sequer pode ser considerado um partido de esquerda mais, uma vez que Dilma Rousseff põe em prática uma política de austeridade que penaliza a classe operária que construiu e deu suporte ao partido. Em segundo lugar, com a exceção da Coreia do Norte, todos os países comunistas atuais praticam o capitalismo de Estado e possuem influência mínima sobre a política internacional quando comparados à União Soviética em seu auge. E, por último, mas não menos importante, quem compara um protesto da elite brasileira com a luta contra o regime comunista de estudantes e operários chineses defeca nos túmulos dos 202 mortos na Praça da Paz Celestial.

Os brasileiros não sabem o que é comunismo. Nem na teoria e nem na prática. Os chineses, por sua vez, sabem. Na pele. Por respeito às verdadeiras vítimas do comunismo, os camisas amarelas deveriam refletir muito antes de abrir a boca para se comparar às vítimas do comunismo. Porque eu tenho certeza absoluta que os protestos da Praça da Paz Celestial não foram convocados via outdoors e nem contaram com a ampla divulgação e cobertura da mídia local. O sofrimento dos chineses era real. Não estavam na rua porque queriam a baixa do dólar para que pudessem viajar para Miami. Não estavam revoltados porque o candidato deles perderam a eleição — queriam votar. Ainda me lembro de quando contei para uma chinesa como era o processo eleitoral brasileiro e ela arregalou os olhos para mim como se eu falasse grego. Empatizei-me com ela, assim como empatizo-me com os que estão presos por terem ousado lutar pela democracia na China. No entanto, parece que é demais exigir empatia daqueles que não possuem nem conhecimento básico de História.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Conheça seus heróis

No último dia 11 de março, por ocasião da morte de Nancy Reagan, ex-primeira-dama dos Estados Unidos, a presidenciável democrata Hillary Clinton cometeu uma das maiores gafes com o público LGBT desde o início de sua campanha há quase um ano. Ela atribuiu ao presidente Ronald Reagan e à sua esposa Nancy o papel de trazer a epidemia da AIDS, iniciada durante o governo dele, para o centro das atenções nacionais. O fato histórico é que o então presidente simplesmente ignorou os avisos da área médica para financiar as pesquisas contra a AIDS e alertar o público sobre os riscos da doença. Durante todo o primeiro mandato de Reagan (1981–1985) não houve reação alguma do governo à epidemia. Justo pelo contrário: houve um boicote à pesquisa que pode ter evitado o salvamento de milhares de vidas tanto nos anos 1980 quanto na década seguinte.

Reagan permitiu a morte de 70.000 pessoas. Se o perpetrador
 dessas mortes tivesse sido a URSS e não o HIV, nosso mundo
talvez não existira mais.
De início, o vírus da imunodeficiência humana (HIV) matava quase que exclusivamente homens gays. Reagan era evangélico – aquela comunidade simpática cujos principais líderes falam que vamos arder no mármore do inferno para sempre. A crise da AIDS se iniciou junto com o governo de Reagan, em 1981, mas o presidente cortou as verbas do Centro para Controle de Doenças (CDC), órgão responsável pela pesquisa e divulgação de surtos epidêmicos no país. No final do primeiro ano do governo republicano, a doença já havia matado mais de 1.000 pessoas. Entretanto, o CDC recebeu menos de um milhão de dólares para pesquisar a cura da AIDS, ao passo em que gastou nove milhões para curar a legionelose, que matou menos de 50 pessoas naquele ano.

Foi só quando a AIDS começou a atingir heterossexuais como o jovem hemofílico Ryan White, de 13 anos de idade e que adquiriu o HIV após uma transfusão sanguínea, que o governo começou a falar sobre a epidemia. Em 1985, Ryan foi expulso de sua escola por ser soropositivo. Graças ao apagão informativo que o governo promoveu sobre a doença, a maioria das pessoas comuns não sabia como o HIV era transmitido. Tinham medo de pegar o vírus no bebedouro do colégio. A família de Ryan entrou com um processo contra a escola e, após provar que ele não representava risco aos colegas, garantiu-lhe o direito de continuar estudando. Ele acabou se tornando uma espécie de porta-voz dos soropositivos, beijando a atriz Alyssa Milano no talk show de Phil Donahue para provar que o HIV não era transmissível desse jeito.

Numa conferência de imprensa em 1985, Reagan, já reeleito, reconhece a epidemia. Mesmo definindo a AIDS como uma doença sexualmente transmissível, expressou ceticismo em permitir que crianças como Ryan frequentassem escolas públicas. O governo já tinha sido instado a se posicionar sobre a epidemia várias vezes desde 1981. O radialista Lester Kinsolving, correspondente na Casa Branca, tentou, em vão, obter uma declaração do governo por três anos. Kinsolving primeiro indagou o secretário de imprensa do presidente sobre as mortes por AIDS em 1982; Reagan só reconheceu a epidemia na já mencionada conferência de imprensa por ocasião de casos judiciais como o de Ryan White. O primeiro discurso televisivo do presidente sobre a epidemia só ocorreu seis anos após sua posse. A essa altura, 20.849 pessoas já haviam morrido da doença.

Com o deslize, Hillary demonstrou não ser a melhor candidata
para os gays, mas deve ganhar o apoio deles por falta de opção.
O mais engraçado é que Kinsolving tampouco gosta de gays. Seu avô era o bispo Lucien Lee Kinsolving, um dos fundadores da Igreja Episcopal no Brasil, e ele segue uma vertente conservadora do anglicanismo. A diferença entre o cristianismo de Kinsolving e de Reagan, porém, é que o primeiro via seres humanos definhando até a morte e um governo – dito cristão – indiferente ao sofrimento deles. Ele era capaz de enxergar seres humanos, mesmo que não concordasse com a orientação sexual deles (o que, para mim, não cabe a ninguém concordar ou discordar, por se tratar de um traço biológico de alguns animais). Talvez Kinsolving tenha aprendido a respeitar os gays graças a sua esposa, mais liberal. Mas isso pouco importa. O que importa é que ele conseguiu enxergar humanidade nos gays, o que a maioria dos evangélicos ainda não conseguiu aprender a fazer até hoje.

Quanto a Hillary Clinton, ela pediu desculpas pelo comentário no mesmo dia, provavelmente alertada por alguém de sua campanha que conhece mais sobre a história da epidemia de AIDS do que ela. São deslizes assim que dão razão à campanha de seu opositor, o Senador Bernie Sanders, e evidenciam o porquê de Hillary não merecer o apoio da comunidade gay. O casal Reagan não foi um herói dos soropositivos (que eram, em sua maioria, gays) e, pela falta de conhecimento histórico, tampouco Hillary deveria ser. Entretanto, pela forma pouco democrática pela qual a política americana se desenrola, prevejo a maioria dos gays e soropositivos apoiando Hillary em novembro contra a ameaça maior que representa a eleição de um republicano anti-gay e anti-ciência. No meio disso tudo, no entanto, salta aos olhos o papel de Kinsolving. Às vezes heróis aparecem em quem menos esperamos.

segunda-feira, 14 de março de 2016

A pobreza intelectual do Brasil

O Brasil não é um país que pode ser levado a sério. Aqui é possível um indivíduo chegar ao cargo de promotor do maior estado da nação sem saber quem foi o parceiro de Karl Marx na elaboração da obra O Manifesto do Partido Comunista, estudada por cientistas políticos em todo o planeta – e sem saber usar o Google também, aparentemente. Segundo o trio de promotores que pediu a prisão preventiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na última sexta-feira, o parceiro de Marx é Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que faleceu quando o teórico comunista tinha apenas 13 anos de idade. Embora Marx tivesse de fato sido hegeliano no começo de sua carreira, ele mais tarde abandonou a escola de pensamento do filósofo alemão mais popular de seu tempo, um idealista, para seguir o materialismo. A grosso modo o idealista julga que a realidade é abstrata, enquanto o materialista julga que ela é concreta.


Além de confundir Friedrich Engels com Hegel, os promotores referiram-se aos teóricos comunistas para fazer uma citação sem pé nem cabeça. Segundo eles, Lula envergonhá-los-ia por ter ascendido ao poder e praticado supostos malfeitos. Só que Marx considerava o processo democrático burguês viciado e incapaz de atender às demandas da classe operária. Segundo Vladimir Lênin em O Estado e a Revolução, "Marx compreendeu a essência da democracia capitalista esplendidamente quando (...) disse que aos oprimidos é permitido, de ano em ano, decidir em quais representantes específicos da classe opressora deverão ser eleitos para representá-los e reprimi-los no parlamento". Há, na esquerda, quem critique o PT por ter entrado no jogo da democracia burguesa, ou seja, por ter se deixado corromper pelo sistema viciado que desejava implodir. O PT agora faz parte desse sistema e dificilmente seira considerado por Marx como um instrumento da revolução operária.

Em outro momento a peça jurídica faz uma citação a Friedrich "Nietszche" – sim, Nietzsche é um nome difícil de escrever, mas é para isso que existe o Google! Os promotores tentam resumir a obra teórica de Assim Falou Zaratustra num pequeno parágrafo com o intuito de afirmarem que Lula deve ser investigado porque ele não está acima da lei – ao contrário do chato da propina, Aécio Neves. Nietzsche, assim como Marx, desprezava a democracia moderna. Ele também julgava que o conceito de igualdade era supervalorizado, sendo que alguns consideram sua obra precursora da eugenia. Em seu livro, Nietzsche apresenta o conceito de "super-homem" (Übermensch), o indivíduo ideal para ele. Trata-se de alguém que não segue os valores morais da maioria cristã, está acima do bem e do mal e não se deixa levar pelo comportamento de manada. Não conheço a obra do filósofo alemão em profundidade, apenas fiz uma pesquisa rápida na internet, o que aparentemente não ocorre no MP-SP.

Sim, Lula não é um "super-homem", como brilhantemente concluíram os autores da peça jurídica, mas ninguém também é, porque aquilo que Nietzsche apresenta em sua obra é um ideal e não algo concreto – falamos sobre isso no final do primeiro parágrafo. Além das liberdades filosóficas, os promotores pedem a prisão de Lula porque impressionantes 20 pessoas disseram que ele é o dono do apartamento do Guarujá. No entanto, não conseguem demonstrar, em momento algum, a ligação direta ou indireta de Lula com o imóvel. Não há prova de que ele seja o dono do local. É como o The New York Times publicou na manhã da mesma sexta-feira fatídica: "Não está claro quais são as acusações específicas" contra Lula. No Direito brasileiro, primeiro se acusa e depois se prova. Talvez se os promotores tivessem de fato lido "Nietszche", teriam aprendido que seguir a manada que quer o justiçamento de Lula não faz parte do comportamento ideal do ser humano.

O que mais me impressionou nessa história toda foi que três promotores escreveram essa aberração jurídica – que já foi desmerecida até mesmo pelo garoto-propaganda do golpe, Kim Kataguiri, que deve conhecer tanto de Direito quanto eu. Será que eles não tiveram aula de Ciência Política ou de Filosofia na faculdade? O concurso que prestaram para ingressar no MP-SP não trazia questões dessas matérias? Há um bom tempo venho sendo crítico das faculdades de Direito do Brasil, que formam analfabetos funcionais que reproduzem o senso comum – e, portanto, as injustiças sociais que prevalecem desde sempre –, mas na última sexta-feira tive a certeza de que o modelo de ensino do Direito no país precisa mudar. Se quisermos ser um país sério, precisamos de acusadores, defensores e julgadores, ou seja, operadores de Direito, sérios. Não dá para continuar delegando funções essenciais para o funcionamento da democracia para qualquer um que decora uma apostila e passa numa prova. 

Talvez de todas as pobrezas que afligem o Brasil, a pobreza intelectual seja a pior, pois é ela que sustenta todas as demais. Como se espera que um operador da Justiça seja justo se ele sequer conhece o básico sobre aquilo que grandes pensadores da humanidade escreveram sobre a justiça social? Não quero que os alunos de Direito saiam da faculdade prontos para fazer a revolução comunista. Quero apenas que saibam quem foi Marx e Engels – o que propunham, como propunham, quando propunham, onde propunham e por que propunham. Do mesmo jeito que quero que saiam de lá sabendo o mínimo sobre a obra de Nietzsche e Hegel. Não se trata de doutrinação. Se trata de conhecimento. Talvez seja por falta de conhecimento que parcelas cada vez maiores dos brasileiros sucumbam tão facilmente a discursos claramente fascistas, como o de algumas pessoas que saíram às ruas ontem pedindo o retorno da ditadura militar. A pobreza intelectual ainda vai nos matar enquanto fingimos conhecimento citando Marx e Engels e "Nietszche" erroneamente.

domingo, 13 de março de 2016

Hoje eu não vou

Estou muito decepcionado com o governo que eu elegi. No entanto, eu jamais participaria de uma marcha verde-e-amarela. Devo respeitar quem eu sou. Vejam só:

  • No século XVIII, meus ascendentes por parte de pai foram obrigados a assimilar uma cultura que não era a deles. Sob ameaça da Igreja Católica na Polônia, foram obrigados a se converter do judaísmo ao cristianismo.
  • Há cinco gerações, a avó de meu avô materno foi tirada à força do convívio de sua família indígena e obrigada a assimilar a cultura branca.
  • Minha vida inteira testemunhei minha mãe tentando se impor numa sociedade machista que tenta calar e desvalorizar as mulheres. Ela me ensinou a não andar perto de quem ofende as mulheres pelo simples fato de serem mulheres, como quem xinga a presidenta de "puta", "vadia" ou "vagabunda".
  • Além disso, eu sou gay. Sou obrigado a lidar diariamente, de maneira aberta ou velada, com a tentativa de que eu me adeque à ordem heteronormativa da sociedade patriarcal. Essa tentativa já veio tanto na forma de chutes e pontapés quanto na forma de comentários sutis.

A minha história é uma de assimilação, tentada ou bem sucedida. Assim sendo, não gosto de quem tenta me fazer aceitar os valores da maioria à força. Só tenho uma vida para viver e vou vivê-la do jeito que eu julgo ser o melhor para mim. Tento ser autêntico e não agir como gado em manada. Devo isso a meus ascendentes, que não conseguiram viver pelas suas próprias regras. Agora que estou numa situação mais confortável do que a deles, decidi que ninguém vai me obrigar a seguir as regras do status quo por nada nesse mundo.

A cantora Pitty resumiu bem porque eu não fui e continuarei não indo.

Pois é justamente essa a maneira como eu encaro as marchas verde-e-amarela. Um desfile de ideologias opressoras. Os camisas amarelas carregam dentro de si a bandeira do ódio, do antissemitismo, do genocídio indígena, do machismo e da homofobia. Afirmam que querem o Brasil de antigamente de volta. Só que o Brasil de antigamente não só era um país onde as instituições não tinham independência para investigar esquemas de corrupção envolvendo o governo como também era um local onde matavam judeus, negros, indígenas, mulheres e gays abertamente.

Devo respeitar não só a História do Brasil como também a minha história, de onde eu vim e para onde eu quero ir. Não marcho ao lado de fascistas, neonazistas, homofóbicos, machistas e racistas. Seria suicídio. Também não quero que eles governem o país. Porque, no final das contas. é disso que se trata o ato de hoje: uma disputa de poder liderada pelo grupo mais conservador e reacionário da sociedade brasileira. Hoje eu não vou em respeito a mim: uma figura ignorada, desprezada, humilhada e odiada pelos brancos, ricos e cristãos "revoltados", tanto no passado quanto no presente.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Desculpa, Miriam

Um indicativo muito grande de que vivemos sob as regras do patriarcado é que a palavra do homem possui mais valor do que a da mulher. Há seis anos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez sair nos jornais a notícia de que um exame de DNA realizado com o filho da jornalista Mirian Dutra Schmidt – com quem havia mantido um relacionamento extraconjugal durante seis anos entre 1984 e 1991 – mostrava que ele não era o pai biológico do rapaz. É claro que eu acreditei naquela informação e logo concluí que ela deu o "golpe da barriga" em FHC, que acabou sendo traído pela própria amante. Acreditei  nisso por seis anos. No entanto, o contrato de Mirian com a Globo terminou no início do ano e ela, tachada de mulher de pouca reputação por uma bem orquestrada aliança entre a cúpula do PSDB e a mídia nacional, resolveu contar sua versão dos fatos. Primeiro falou à revista luso-brasileira Brazil com Z e depois à Folha de S. Paulo.

Mirian Dutra Schmidt está ressentida com FHC e com a Rede Globo. Fizeram-na passar por um inferno. O sociólogo a fez acreditar que seu casamento com a falecida dona Ruth já tinha acabado e que eles estavam juntos por pura conveniência. Durante o período em que estiveram juntos, Mirian engravidou duas vezes (ela era alérgica à pílula e rejeitou o DIU) e FHC teria convencido-a a abortar. Em 1991, no entanto, a jornalista bateu o pé: quis ter o filho. O que se seguiu foi uma cena digna do filme Atração Fatal. Assim como o covarde Dan Gallagher (Michael Douglas), o político tucano, que já ambicionava mudar-se para o Palácio da Alvorada e não iria deixar ninguém atrapalhar seus planos, teria virado as costas para a amante grávida. Como milhões de brasileiros, Tomás Dutra Schmidt nasceu sem pai. No nosso país, obrigam a mulher a dar à luz, mas não obrigam o homem a assumir o filho. O aborto masculino é legalizado e a certidão de nascimento de Tomás traz um espaço em branco no lugar do nome de seu pai.

Isso não impediu, no entanto, o líder do PSDB de inventar um outro pai para ele. Já se comentava há algum tempo em Brasília sobre os relacionamentos extraconjugais do então senador e, para não atrapalhar suas ambições eleitorais, FHC teria arranjado com o então editor da Veja, Mario Sérgio Conti, para que Mirian aparecesse na coluna "Gente" da revista afirmando que ela estava grávida e que o pai de seu bebê era um biólogo brasileiro que morava em Londres. Se ela recusasse, Conti destruiria sua reputação. Pressionada – ela diz que quase perdeu o bebê devido ao estresse –, ela aceitou. Não foi a primeira vez que Mirian teria feito algo contra sua vontade para agradar FHC. Ela afirma que o político a perseguia pelas ruas de Brasília sempre que ela terminava com ele e ela sempre acabava voltando para ele. Tratava-se de um relacionamento abusivo – e da pior espécie. Quando um parceiro abusa do outro fisicamente, as razões para abandoná-lo estão na pele. Quando o abuso é psicológico, duvidamos se estamos verdadeiramente sendo abusados.

Mirian Dutra. Por que acreditamos mais na versão masculina
do que na feminina?
Mas Mirian conseguiu desvincilhar-se de seu relacionamento abusivo. Ela pediu demissão na Globo e se mudou para Portugal, onde começou a trabalhar na SIC, emissora de Roberto Marinho no país. Na Europa, Mirian começou a passar por dificuldades financeiras. Entra em cena novamente FHC, já em campanha para se tornar presidente do Brasil. A partir de 1994, ele teria começado a pagar uma pensão para Tomás através da Brasif, empresa que ganharia concessões para explorar lojas nos aeroportos durante seu governo. A jornalista diz ter provas da fraude – os contracheques de pagamento e o contrato que assinou com a empresa para trabalhar como consultora na Espanha, o que nada mais seria do que um emprego-fantasma. No entanto, conhecendo a complacência da Justiça e do Ministério Público para com os mal-feitos dos políticos tucanos, escancarada na Operação Lava Jato, creio que é seguro afirmar que os documentos – se é que chegarão ao Brasil – vão deitar no berço esplêndido de alguma escrivaninha de uma repartição pública qualquer.

Paralelamente ao recebimento de dinheiro via Brasif, Miran conseguiu emprego como correspondente da Globo em Barcelona. Foi então que o presidente teria oferecido um belo financiamento à gigante das telecomunicações – via BNDES e com juros inferiores aos praticados pelo banco – para que a repórter jamais aparecesse em vídeo novamente. Isso deixou Mirian deprimida e ela teria tentado retornar ao Brasil em 1998. À época, FHC estava tentando comprar, quer dizer, aprovar a Emenda da Reeleição para que pudesse concorrer novamente à presidência da República. Mirian foi mais uma vez ameaçada, dessa vez pelo falecido senador Antonio Carlos Magalhães. Como qualquer mãe, ela pensou em como a destruição de sua reputação afetaria Tomás e Isadora (filha de seu primeiro casamento, antes de conhecer FHC) e recuou. Temos um caso clássico de abuso de poder – de uso da República para resolver questões de foro íntimo.

FHC saiu da presidência em 1° de janeiro de 2003 sem conseguir eleger seu sucessor. Emergiu pouco tempo depois como se fosse o guardião da moral nacional – justo ele, que teria se valido do cargo para intimidar e manter fora dos holofotes a ex-amante. Sua esposa Ruth faleceu em 2008 e, um ano depois, o ex-presidente teria assumido o filho (o que Mirian também nega que tenha ocorrido), sendo à época elogiado pela mesma revista que usou para chantagear a amante a declarar que o filho não era dele. Em 2010 surgiu a história de que o filho não seria dele e que seus filhos com dona Ruth estariam furiosos com FHC por ele ter reconhecido Tomás antes de fazer o exame de DNA. Nesse momento, eu passei a acreditar na versão cardosiana da história. Mirian teria tido mais de um amante, algo que ela nega veementemente. Segundo a jornalista, FHC quis enterrar a história às custas da reputação dela. Ela questiona: se o filho não é dele, por que ele deu um apartamento para Tomás depois do exame provar que ele não era filho dele?

Mas assim como duvidamos da mulher quando ela diz que foi estuprada, passei a duvidar da reputação de Mirian. Imagine só: uma figura de autoridade, um ex-presidente, estava questionando-a. FHC jamais apresentou o suposto exame de DNA, mas mesmo assim acreditei na versão dele. Embora seja preciso duas pessoas para consumar uma traição e fazer um bebê, o homem sempre vai ter sua barra aliviada pela mídia, como é o caso do já citado filme, onde o personagem de Michael Douglas leva a ex-amante à loucura e, ainda assim, é o mocinho pelo qual devemos torcer. Se a versão de Mirian for correta, FHC apresenta traços de sociopatia. Transgrediu os costumes ao trair a esposa e teria transgredido a lei para esconder a amante e o filho que teve com ela. É charmoso e convincente – precisava ser para que Miriam tivesse aceitado ficar seis anos com ele. Mente sobre a paternidade do rapaz. Nega ter transgredido as normas sociais ao dizer que não pagou os abortos nem usou a estrutura de poder para manter Mirian fora dos holofotes.

Ainda assim, FHC deseja ser visto como um bom pai ou pelo menos uma boa pessoa. À Folha, disse que atende Tomás nas necessidades afetivas "quando possível", como se estivesse numa audiência da Vara da Família. Se o filho não é dele e se ele nunca foi presente na vida dele, como afirma Mirian, por que ele se importa? O que entrega o sociopata são suas mentiras pois, para ele, o que importa é só a imagem que projeta de si mesmo, mesmo que seja contraditória. Devo desculpas a Mirian. Não conhecia sua versão dos fatos. Sabia, graças aos esforços investigativos da revista independente Caros Amigos, que FHC tinha um filho escondido na Europa, mas jamais vi a jornalista como a vítima. Na minha imaginação, ela era uma femme fatale (uma Glenn Close, já que estamos falando de Atração Fatal), que seduziu o senador e aplicou-lhe o "golpe da barriga" para arrancar dinheiro dele. Parece-me, no entanto, que foi ele quem a seduziu e enganou com a falsa promessa de que seu casamento já tinha acabado.

Ao decidir ter o filho de um futuro presidente, Mirian tornou-se prisioneira de sua escolha. Teve sua vida profissional arruinada. Não é devidamente reconhecida pelo trabalho que prestou à Globo. Sofreu um processo muito público de intimidação, do qual participaram não só FHC como também ACM e Conti. A mídia – a maior revista e a maior emissora de televisão do país – desviou-se de sua função sagrada de informar doa a quem doer e foi manipulada pelo poder político para abafar o caso. FHC destruiu a vida pessoal e profissional de Miriam. Sim, ela obteve algum ganho financeiro, mas será que compensou a dor psicológica? Como afirma Maria Goretti, a história de Mirian lembra a de todas as mulheres. E é por isso que peço desculpas não só a ela, mas a todas as mulheres em situação semelhante – que não são poucas – por ter acreditado na versão masculina da história. Eu acreditava estar crendo num sociólogo, mas na verdade estava crendo num sociopata. Prometo tentar ser mais imparcial da próxima vez.

terça-feira, 8 de março de 2016

"Os judeus elegeram Hitler"

Adoro um título provocativo. Este, no entanto, aparece entre aspas por se tratar da fabulação mais incrível que eu já ouvi em toda a minha breve existência. No final do ano passado o professor de História da América na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Leandro Karnal escreveu que jamais imaginou que ouviria um impropério tão grande quanto aquele que ouviu no ano da Primavera Amarela, segundo o qual o nazismo é uma ideologia de esquerda. Tal teoria, marginal até o surgimento do Tea Party nos Estados Unidos e amplamente difundida através das redes sociais, já é antiga conhecida minha. Desde os tempos de Orkut ouço, ou melhor, leio isso. O que realmente me chocou na versão atual do Festival de Besteiras que Assola o País foi ouvir que os judeus elegeram Adolf Hitler para o cargo de chanceler da Alemanha. Esta teoria encontra eco em fóruns de discussões de "orgulho branco" (me recuso a ligar os links aqui e sujar meu blog com literatura pseudo-científica), que tentam responsabilizar os judeus, de uma forma ou de outra, pelo seu próprio genocídio.

Que a neodireita brasileira não presta atenção alguma nas aulas de História do Ensino Médio já tornou-se uma constatação inegável até mesmo para a direita erudita, envergonhada das faixas erguidas pelos camisas-amarelas nos protestos anti-PT. Entretanto, reimaginar acontecimentos históricos eleva a histeria para o nível do delírio; é como querer provar que 2 + 2 = 5. A despeito do que os membros do Partido orwelliano (que cresce como nunca antes no Brasil) possam pensar, o que já aconteceu – e, portanto, já foi historicamente testado e provado – é uma realidade concreta que não pode ser mais passível de modificações. A opinião pessoal do historiador é nula quando os fatos históricos são documentados. Pode-se divergir, por exemplo, do número total de mortos nos campos de concentração, mas o que os registros históricos da Alemanha Nazista mostram são campanhas de internação compulsória das populações vistas como inferiores, assim como fotos e vídeos feitos pelos Aliados mostram milhares de corpos empilhados em Auschwitz e demais abatedouros de seres humanos.

No Hospital Judeu de Berlim, onde nem todos os pacientes eram
judeus, os sociais democratas tiveram 44% dos votos em 1932
.
Que parte significativa da classe trabalhadora brasileira vota contra seus próprios interesses já é de conhecimento até do mundo mineral. Sim, Dilma traiu os operários que reelegeram-na. Não nego isso. Mas trocar o PT pelo Jair Messias Bolsonaro (esse é o nome dele) não me parece a atitude mais sensata a ser tomada pelos membros da classe oprimida. Mas isso é recorrente na História brasileira. Antes mesmo do PT virar a fonte de todo o mal e o bode expiatório da corrupção na política, o falecido cantor e compositor Tim Maia já havia cunhado um dos grandes aforismos nacionais: "o Brasil é o único país do mundo em que prostituta apaixona, cafetão sente ciúme, traficante é viciado e pobre é de direita". Parece-me que inventar (ainda mais uma) fábula sobre os judeus ajuda os brasileiros pobres a racionalizarem sua escolha suicida pela extrema-direita. Acreditando nessa fábula podem votar em quem quer exterminá-los sem culpa ou remorso. Afinal de contas, até mesmo os judeus teriam feito isso! Só que o fato é que eles não fizeram. É o que dizem pesquisadores que ouviram sobreviventes do Holocausto e cruzaram dados censitários e eleitorais da Alemanha pré-Hitler.

Segundo The Jews in Weimar Germany, obra de Donald L. Niewyk, professor de História contemporânea da Europa na Universidade Metodista do Sul (EUA), "com o desaparecimento de quase todos os partidos moderados de classe média durante a Grande Depressão, os votos (e o dinheiro) dos judeus ficaram disponíveis. Os principais competidores eram os partidos de Centro e Social Democrata, ambos com histórico de apoio ao sistema republicano e de denúncia da judeofobia". Em 1932, um ano antes de Hitler tomar o controle da Alemanha, o Partido de Centro, de orientação católica, fez campanha para conseguir o voto dos judeus, afirmando não se opor à educação religiosa num cenário cada vez mais laico. Segundo Niewyk, "a resposta foi positiva num amplo espectro da opinião judaica". O principal jornal da comunidade judaica, Israelitisches Familienblatt (Jornal da Família Israelita), fez editoriais a favor do partido, assim como organizações sionistas. No entanto, "a ligação do Partido de Centro com sionistas proeminentes pode ter prejudicado suas chances com os judeus de esquerda, que eram bem mais numerosos", alerta o pesquisador.

Sim, os judeus alemães eram de esquerda, mas não eram comunistas. Outra ideia amplamente divulgada nos fóruns de "orgulho branco" é que os judeus teriam causado o colapso da Alemanha ao votarem em massa no Partido Comunista, o que também não é verdade. "Os adultos judeus moveram-se para a esquerda moderada durante os últimos anos da República de Weimar", escreve Niewyk, que em seguida afirma que os jovens judeus foram atraídos pelo Partido Comunista. A reação dos grupos sionistas foi forte e orquestrada. Começaram a alertar os jovens para o perigo da "assimilação vermelha" e para os horrores cometidos contra os judeus por Josef Stálin – à época o líder soviético apostava numa campanha antissemita para perseguir o dissidente Léon Trotsky e seus seguidores. O editor do Israelitisches Familienblatt, Esriel Carlebach, foi vítima de uma tentativa de assassinato em 1933 após escrever uma série de artigos críticos ao tratamento dispensado pela URSS aos judeus; ele havia visitado o país no verão de 1932. Embora jamais tenha ficado claro se o perpetrador do ataque foi um comunista ou um nazista, este fato acabou afastando os eleitores judeus dos comunistas.

Pôster associando o comunismo ao judaísmo.
Niewyk nota que foi a esquerda moderada a responsável por eleger e nomear os primeiros funcionários públicos judeus. Pouco antes do colapso da República de Weimar os comunistas deixaram de apresentar candidatos judeus ao Parlamento. Foi uma forma que encontraram de contradizer a propaganda nazista, segundo a qual os judeus haviam se aliado aos bolcheviques para tomar o controle do mundo. Vendo-se preteridos pela extrema-esquerda e perseguidos pela extrema-direita, os judeus encontraram no Partido Social Democrata seu porto seguro. "O Partido Social Democrata, prejudicado perenemente [entre a esquerda] por cultivar uma imagem mais radical do que suas políticas,  conseguia o apoio dos judeus ao manter o proletariado relativamente livre do antissemitismo e por combater os nazistas mais militantemente do que qualquer outro", afirma Niewyk. Ele nota que o jornal ortodoxo Der Israelit (O Israelita), que até 1930 condenava o socialismo por causa de sua ligação com o ateísmo, aplacou o tom de suas críticas e, em 1932, recomendou voto no Partido Social Democrata ou no Partido de Centro.

Outro dado interessante é uma pesquisa feita por Arnold Paucker com cerca de cem sobreviventes judeus do Holocausto, a maioria dos quais haviam sido apoiadores de classe média do Partido Democrático até o declínio deste em 1930. Os resultados sugerem que, após 1930, cerca de 62% dos eleitores judeus votaram no Partido Social Democrata, enquanto 19% votaram no Partido do Estado (ex-Partido Democrático) e 5% no Partido de Centro. O pesquisador alerta que não conseguiu localizar um grande contingente de judeus da Bavária e que os habitantes de fé judaica deste estado conservador podem ter votado em massa no Partido do Povo da Bavária tanto antes quanto após o pleito de 1930. Niewyk, interpretando os dados da pesquisa do colega historiador, afirma que a falta de judeus de classe alta na pesquisa pode indicar que o católico Partido de Centro teve na verdade mais votos entre os judeus do que Paucker indicou. Isto nos leva até os dados de outro pesquisador, Peter Pulzer, que cruzou dados censitários e eleitorais. Ele confirma a preferência dos judeus pelo Partido Democrático até 1930 e afirma que os judeus ortodoxos e de áreas rurais preferiam o Partido do Povo da Bavária e o Partido de Centro durante os anos 1920. 

Pulzer analisou os resultados eleitorais de dezenove distritos onde os judeus constituíam uma maioria significativa segundo o Censo alemão – em especial nas cidades de Berlim, Frankfurt-am-Main e Hamburgo. Ele afirma, com a ressalva de que é difícil separar o votos dos judeus e dos gentios, que a minoria etno-religiosa continuou apoiando o Partido do Estado nas eleições locais, mas, ameaçados pela ascensão de um partido claramente antissemita ao poder central, passaram a apoiar o Partido de Centro e o Partido Social Democrata nas eleições federais. Niewyk escreve que, conforme indica Pulzer, a resposta dos judeus ao declínio da democracia e à ascensão do nazismo foi qualquer coisa menos irracional. Sim, eles subestimaram e interpretaram errado as ideias de Adolf Hitler, mas todo mundo na época também fez isso (muitos acreditavam que seus discursos antissemitas eram apenas retórica eleitoral). A título de curiosidade, vale notar a existência de uma Associação Alemã de Judeus Nacionalistas, que defendia a assimilação dos judeus pela cultura alemã. Posteriormente o grupo apoiou Adolf Hitler, mas sempre foi pouco significativo. Segundo a Wikipédia, tinha pouco mais de 3.500 membros num universo de 522.000 judeus (menos de 0,7% do total).

"Se ainda há quem imagine que os judeus alemães foram politicamente complacentes [com o nazismo], que fugiram para um mundo de fantasia onde o racionalismo iluminado e a simbiose perfeita reinavam, este livro deve convencê-los do contrário" – Niewyk, em resenha do livro de Pulzer.

De fato os judeus votaram em massa em Adolf Hitler – depois
que já estavam em Dachau.
É perfeitamente compreensível que alguns judeus tenham tentado assimilar a ideologia nazista como forma de escapar da perseguição oficial do Estado alemão. Uma matéria do jornal norte-americano The New York Times, datada de 20 de agosto de 1934, aponta isso. Com a morte do presidente Paul von Hindenburg no início daquele mês, Hitler realizou um plebiscito perguntando ao povo alemão se os cargos de presidente e chanceler deveriam ser unificados, o que lhe daria controle absoluto sobre o Estado alemão. "Cada opinião contrária foi suprimida", relata o correspondente do jornal, e Hitler foi sagrado führer da Alemanha com 90% dos votos. "Uma cédula continha a inscrição: 'como nada aconteceu comigo até agora, voto sim'. Estava assinada: 'não-ariano'." Não me parece o voto de um cidadão politizado e consciente, mas sim o voto de protesto irônico de um cidadão com tanto medo que sequer assinou a cédula. Os votos "sim" foram imensamente populares nas instituições judaicas. "Isso é explicável, é claro, pelo medo de repressão caso o resultado fosse diferente", diz o jornal, antes de afirmar que a maior votação de Hitler na Bavária havia sido no campo de concentração de Dachau.

Dito tudo isso, prefiro acreditar nas palavras dos professores Niewyk e Pulzer, assim como no correspondente do New York Times que esteve em Berlim para acompanhar a votação do plebiscito de 1934, do que em alguém que acredita em tudo aquilo que lê no Facebook. Numa época em que a comunicação se tornou extremamente rápida e eficiente, as palavras parecem sair da mente e se materializar na tela do computador sem reflexão alguma. O debate político agora se resume a 140 caracteres cheios de frases de efeito (as hashtags). Nesse cenário, explica-se porque um dado histórico falso é divulgado sem maiores questionamentos. É feio fazer a Glória Pires e assumir a falta de conhecimento em determinado assunto. Somos obrigados a opinar sobre tudo e, assim sendo, tornamo-nos especialistas em tudo sem sabermos absolutamente nada. Mas o problema é que é bem ofensivo dizer que milhões de judeus morreram porque eles mesmos teriam votado em Hitler como uma massa de manobra acéfala e suicida. Se é isso que desejam que os brasileiros façam, assumam. Não há necessidade de promover seu anseio às custas de 6 milhões de almas.

quarta-feira, 2 de março de 2016

O que quero dizer com 'Eu tenho ansiedade'

Há alguns dias, me deparei com o texto abaixo no Huffington Post. Por acreditar que ele traduz perfeitamente as turbulências pelas quais estou passando no momento atual da minha vida, decidi traduzi-lo e compartilhá-lo aqui com vocês. Não se trata de uma tentativa de gerar piedade à minha pessoa, mas de tentar fazê-los entender certos comportamentos que eu tenho. Acredite em mim: Eu conheço bem todas as minhas falhas e tento corrigi-las. Mas o fedback errado me frustra e atrapalha. A compreensão me ajuda a ir no caminho certo, enquanto o julgamento reforça a ideia de que mudar é inútil. Quero que me compreendam. Por isto compartilho este texto:


Gina Decicco, 12 de fevereiro de 2016
The Huffington Post

Quando digo à maioria das pessoas com quem converso que tenho um distúrbio de ansiedade, elas balançam a cabeça e me dizem que vou ficar bem. Quando digo a elas: “Desculpa, estou tendo uma crise de ansiedade hoje, podemos remarcar?”, elas sorriem e me dizem que não há nada com que eu deva me preocupar. Basta eu sair da cama para ver que tudo está bem. Quando não quero ir de bar em bar porque sei que o álcool aumenta minhas tendências ansiosas, escuto: “Você está bem. Será divertido. Extravase!”

Enquanto isso, meu coração bate tão rápido que tenho medo de que ele esteja visivelmente batendo para fora do meu peito. Mas ele não está. Minha cabeça também não está rodando em círculos. Meus olhos não estão cruzados como minha visão embaçada indica. Meus joelhos não estão balançando, tampouco meus músculos estão trêmulos, lutando contra a vontade de entrar em colapso. Meu rosto não está pálido e meus olhos não estão vermelhos de sangue. Não, no exterior eu aparento estar do mesmo jeito que todos os dias. Meu cabelo está limpo. Minhas roupas combinam. Estou acordada, viva e respirando normal. Então não há nada de errado, certo?

Errado.

É este o grande detalhe da desordem de ansiedade. Aparentamos estar bem. É claro, nossa aparência está boa. Nossas pernas não estão quebradas. Nossas línguas não foram cortadas. Não temos cortes ou feridas. Porque a ansiedade não é uma incapacidade física. Isto, no entanto, não torna-a nem um pouco menos debilitante.

A ansiedade é uma desordem complexa e não é algo que se afasta com um sorriso ou um balançar de cabeça. Você dizer que tudo está bem não só não ajuda como ofende, porque parece que não está levando isso a sério. 

Eis algumas coisas que eu gostaria que você soubesse sobre a luta contra a ansiedade:

Não é constante. Há dias em que posso lidar com a rotina sem ter que parar e respirar ou tomar um Xanax. Posso sorrir e rir. Posso ser produtiva e ir trabalhar, sair para jantar, ir ao cinema com amigos. E, acredite em mim, eu sei que é difícil entender como posso estar bem num dia e, no dia seguinte, não conseguir sair da cama. É assim que as coisas são. O que me leva ao próximo ponto:

Vem em ondas. A ansiedade é uma fera estranha. Ela deixa eu me divertir por alguns dias e, quando eu penso que ela finalmente me deixou em paz, eu acordo numa manhã qualquer incapaz de colocar meus pensamentos em ordem, porque, por alguma razão, a fera emergiu novamente e não há nada que eu possa fazer para impedir sua chegada, porque eu acordei e ela estava sentada no meu peito, sorrindo, como se fosse bem-vinda.

Pode ser completamente paralisante. Não sei se isso se aplica a todos, mas sei que é uma parte muito grande da minha desordem de ansiedade. Quando ela chega, eu me congelo. Consigo me levantar e fazer os deslocamentos do meu dia, mas meu cérebro está em outro lugar, foi feito refém por qualquer que seja o “demônio” que está me habitando. Não consigo pensar em mais nada, exceto minha incapacidade em pensar ou respirar ou sentir. Absorva isso. Meu cérebro parece que está literalmente paralisado, como se estivesse preso numa espécie de limbo sem portas ou janelas ou saídas de qualquer tipo. A pior parte é que estou completamente sozinha lá.

Destrói relacionamentos. Não só relacionamentos românticos, mas relacionamentos de qualquer tipo. Amizades e namoros podem ser destruídos por esta condição. Já experimentei ambos e é o tipo de perda mais devastadora. Por quê? Porque não é nossa culpa. É uma desordem que, sem o conhecimento de como lidar com ela, pode explodir com o passar do tempo. Eventualmente, pode se tornar um fardo muito grande para outras pessoas carregarem com elas. Se elas desenvolverem laços próximos o suficiente com você para experimentar os efeitos de sua ansiedade em primeira mão, isso pode se tornar um fardo muito grande para elas e elas podem cortar laços com você pelo bem da própria saúde mental delas. E isso dói pra caramba. Mas não posso culpá-las, porque se eu pudesse escolher ficar o mais longe o possível da ansiedade eu também o faria sem pestanejar.

Transforma a confiança em algo quase impossível. Eu sei que parece terrível culpar a ansiedade pela falta de confiança nos outros, mas, honestamente, não se trata de culpar, mas de responsabilizar. A ansiedade nunca falha em te fazer imaginar o pior de cada situação. Se alguém não responde minha mensagem, então é isso, ele não gosta mais de mim. Se alguém não me manda mensagem primeiro é porque não pensa em mim. Pode ser que esteja ocupado? Não. Ele tem coisas melhores para fazer com seu tempo do que gastá-lo comigo. Eu soo ridícula, não? Bem-vindo à vida com a ansiedade. Ela não tem biscoito para te oferecer, mas pode te entreter com uma solidão incapacitante numa mesa para um. Não quer? Imaginei mesmo.

Eu não quero isso. Você realmente acha que se eu tivesse uma escolha eu escolheria desapontar as pessoas que eu amo porque não dou conta de sair de casa? Você acha que eu quero ter tanto medo de sair da cama que ligo para o trabalho com uma desculpa e choro assistindo Grey's Anatomy por 13 horas seguidas? Provavelmente não. Você escolheria isso? Acho que não. Então, quando você disser que estamos sendo dramáticos e buscando atenção, pare por um segundo e pense no que está dizendo. Ninguém, repito, ninguém quer isso.

Desejo não ser assim todos os dias. Não há um dia em que aquela vozinha no fundo da minha mente não me diz que minha vida seria ótima se eu não fosse assim. Se eu pudesse não ter ansiedade, tudo estaria bem. Eu poderia ser verdadeiramente feliz e acreditar que a felicidade não é uma piada ou um truque; que a desgraça não é uma sina que tenho que carregar. Não tenho que carregar nada. Mas não é assim que eu funciono. Para mim, não importa quantas vezes eu diga a mim mesma que tudo vai ficar bem e que estou sendo ridícula, nada está “bem”. Para falar a verdade, até as coisas mais pequenas são um desastre.

Há tratamentos e estou disposta a tentá-los. Muitas pessoas que são diagnosticadas com ansiedade tomam medicamentos para controlá-la. A maioria das vezes eles retiram a sensação de estar vivendo no limite e permitem que eu seja mais funcional na minha vida diária. No entanto, simplesmente tomar remédios não é o suficiente. Tenho tentado ir à academia. As endorfinas geralmente ajudam imensamente. Muitas pessoas fazem ioga e exercícios de respiração. Eles também ajudam. Ainda não tentei-os, mas estão na minha lista. Faço muitas coisas que me trazem a felicidade. Para mim, escrever, cantar e colorir meu livro de colorir são reconfortantes. Além disso, descobri que a psicoterapia é a melhor ferramenta e que vale cada centavo. Ter um terapeuta que está constantemente do seu lado e ali para deixar você falar sem te julgar ou te culpar pela sua condição é uma experiência libertadora. Recomendo demais para quem estiver sofrendo com ansiedade.

Vou superar isso. Mas vai demorar. Lutar contra a ansiedade pode ser uma batalha sem fim com frequentes deslizes e falhas ao longo do caminho. Ainda estou no meio desse processo e não é fácil. Nem um pouco. De longe essa é a coisa mais difícil que eu já tive que fazer em toda minha vida. E já passei por um bocado. A ansiedade, no entanto, rouba o show. Aprender a superar a ansiedade é a tarefa mais difícil que já me pediram para completar. Esses pensamentos, esses que não são verdadeiramente meus, têm o gosto de veneno para minha alma. Mas naqueles dias em que consigo marcar um sinal de vitória na minha agenda, sinto como se pudesse conquistar o mundo. Quero que todos os dias sejam assim e não vou parar enquanto não forem.

Eis o resumo: a ansiedade pode ser bem pesada e assustadora. Não é um ferimento visível, mas isso não faz com que não seja menos legítimo. Precisamos de pessoas em nossas vidas que estão dispostas a nos ajudar e apoiar, e compreender que precisamos de muita ajuda e apoio. Não vou te julgar se você acha que não consegue lidar com o peso que é ser parte da minha vida, mas peço-lhe que não me deixe cheia de esperanças e depois me abandone.

Então, quando eu digo “Eu tenho ansiedade”, eis o que eu quero dizer de verdade: trate-me bem, seja paciente comigo, me apoie. Saiba que tudo o que eu faço é com a consciência de que isso te afeta. Estou lutando para ter o controle da minha vida todos os dias, entenda isso. Sou demais para ser absorvida, eu sei disso. Não sou sempre fácil de ter em sua vida, mas se você permitir, sempre estarei lá quando você precisar de mim. Eu nunca vou me esquecer da sua fidelidade quando a maioria das pessoas me abandonou.

Quando digo “Eu tenho ansiedade”, estou dando-lhe tanto um aviso sobre o barco em que está prestes a embarcar quanto um agradecimento por escolher entrar nele mesmo assim.