quinta-feira, 10 de março de 2016

Desculpa, Miriam

Um indicativo muito grande de que vivemos sob as regras do patriarcado é que a palavra do homem possui mais valor do que a da mulher. Há seis anos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez sair nos jornais a notícia de que um exame de DNA realizado com o filho da jornalista Mirian Dutra Schmidt – com quem havia mantido um relacionamento extraconjugal durante seis anos entre 1984 e 1991 – mostrava que ele não era o pai biológico do rapaz. É claro que eu acreditei naquela informação e logo concluí que ela deu o "golpe da barriga" em FHC, que acabou sendo traído pela própria amante. Acreditei  nisso por seis anos. No entanto, o contrato de Mirian com a Globo terminou no início do ano e ela, tachada de mulher de pouca reputação por uma bem orquestrada aliança entre a cúpula do PSDB e a mídia nacional, resolveu contar sua versão dos fatos. Primeiro falou à revista luso-brasileira Brazil com Z e depois à Folha de S. Paulo.

Mirian Dutra Schmidt está ressentida com FHC e com a Rede Globo. Fizeram-na passar por um inferno. O sociólogo a fez acreditar que seu casamento com a falecida dona Ruth já tinha acabado e que eles estavam juntos por pura conveniência. Durante o período em que estiveram juntos, Mirian engravidou duas vezes (ela era alérgica à pílula e rejeitou o DIU) e FHC teria convencido-a a abortar. Em 1991, no entanto, a jornalista bateu o pé: quis ter o filho. O que se seguiu foi uma cena digna do filme Atração Fatal. Assim como o covarde Dan Gallagher (Michael Douglas), o político tucano, que já ambicionava mudar-se para o Palácio da Alvorada e não iria deixar ninguém atrapalhar seus planos, teria virado as costas para a amante grávida. Como milhões de brasileiros, Tomás Dutra Schmidt nasceu sem pai. No nosso país, obrigam a mulher a dar à luz, mas não obrigam o homem a assumir o filho. O aborto masculino é legalizado e a certidão de nascimento de Tomás traz um espaço em branco no lugar do nome de seu pai.

Isso não impediu, no entanto, o líder do PSDB de inventar um outro pai para ele. Já se comentava há algum tempo em Brasília sobre os relacionamentos extraconjugais do então senador e, para não atrapalhar suas ambições eleitorais, FHC teria arranjado com o então editor da Veja, Mario Sérgio Conti, para que Mirian aparecesse na coluna "Gente" da revista afirmando que ela estava grávida e que o pai de seu bebê era um biólogo brasileiro que morava em Londres. Se ela recusasse, Conti destruiria sua reputação. Pressionada – ela diz que quase perdeu o bebê devido ao estresse –, ela aceitou. Não foi a primeira vez que Mirian teria feito algo contra sua vontade para agradar FHC. Ela afirma que o político a perseguia pelas ruas de Brasília sempre que ela terminava com ele e ela sempre acabava voltando para ele. Tratava-se de um relacionamento abusivo – e da pior espécie. Quando um parceiro abusa do outro fisicamente, as razões para abandoná-lo estão na pele. Quando o abuso é psicológico, duvidamos se estamos verdadeiramente sendo abusados.

Mirian Dutra. Por que acreditamos mais na versão masculina
do que na feminina?
Mas Mirian conseguiu desvincilhar-se de seu relacionamento abusivo. Ela pediu demissão na Globo e se mudou para Portugal, onde começou a trabalhar na SIC, emissora de Roberto Marinho no país. Na Europa, Mirian começou a passar por dificuldades financeiras. Entra em cena novamente FHC, já em campanha para se tornar presidente do Brasil. A partir de 1994, ele teria começado a pagar uma pensão para Tomás através da Brasif, empresa que ganharia concessões para explorar lojas nos aeroportos durante seu governo. A jornalista diz ter provas da fraude – os contracheques de pagamento e o contrato que assinou com a empresa para trabalhar como consultora na Espanha, o que nada mais seria do que um emprego-fantasma. No entanto, conhecendo a complacência da Justiça e do Ministério Público para com os mal-feitos dos políticos tucanos, escancarada na Operação Lava Jato, creio que é seguro afirmar que os documentos – se é que chegarão ao Brasil – vão deitar no berço esplêndido de alguma escrivaninha de uma repartição pública qualquer.

Paralelamente ao recebimento de dinheiro via Brasif, Miran conseguiu emprego como correspondente da Globo em Barcelona. Foi então que o presidente teria oferecido um belo financiamento à gigante das telecomunicações – via BNDES e com juros inferiores aos praticados pelo banco – para que a repórter jamais aparecesse em vídeo novamente. Isso deixou Mirian deprimida e ela teria tentado retornar ao Brasil em 1998. À época, FHC estava tentando comprar, quer dizer, aprovar a Emenda da Reeleição para que pudesse concorrer novamente à presidência da República. Mirian foi mais uma vez ameaçada, dessa vez pelo falecido senador Antonio Carlos Magalhães. Como qualquer mãe, ela pensou em como a destruição de sua reputação afetaria Tomás e Isadora (filha de seu primeiro casamento, antes de conhecer FHC) e recuou. Temos um caso clássico de abuso de poder – de uso da República para resolver questões de foro íntimo.

FHC saiu da presidência em 1° de janeiro de 2003 sem conseguir eleger seu sucessor. Emergiu pouco tempo depois como se fosse o guardião da moral nacional – justo ele, que teria se valido do cargo para intimidar e manter fora dos holofotes a ex-amante. Sua esposa Ruth faleceu em 2008 e, um ano depois, o ex-presidente teria assumido o filho (o que Mirian também nega que tenha ocorrido), sendo à época elogiado pela mesma revista que usou para chantagear a amante a declarar que o filho não era dele. Em 2010 surgiu a história de que o filho não seria dele e que seus filhos com dona Ruth estariam furiosos com FHC por ele ter reconhecido Tomás antes de fazer o exame de DNA. Nesse momento, eu passei a acreditar na versão cardosiana da história. Mirian teria tido mais de um amante, algo que ela nega veementemente. Segundo a jornalista, FHC quis enterrar a história às custas da reputação dela. Ela questiona: se o filho não é dele, por que ele deu um apartamento para Tomás depois do exame provar que ele não era filho dele?

Mas assim como duvidamos da mulher quando ela diz que foi estuprada, passei a duvidar da reputação de Mirian. Imagine só: uma figura de autoridade, um ex-presidente, estava questionando-a. FHC jamais apresentou o suposto exame de DNA, mas mesmo assim acreditei na versão dele. Embora seja preciso duas pessoas para consumar uma traição e fazer um bebê, o homem sempre vai ter sua barra aliviada pela mídia, como é o caso do já citado filme, onde o personagem de Michael Douglas leva a ex-amante à loucura e, ainda assim, é o mocinho pelo qual devemos torcer. Se a versão de Mirian for correta, FHC apresenta traços de sociopatia. Transgrediu os costumes ao trair a esposa e teria transgredido a lei para esconder a amante e o filho que teve com ela. É charmoso e convincente – precisava ser para que Miriam tivesse aceitado ficar seis anos com ele. Mente sobre a paternidade do rapaz. Nega ter transgredido as normas sociais ao dizer que não pagou os abortos nem usou a estrutura de poder para manter Mirian fora dos holofotes.

Ainda assim, FHC deseja ser visto como um bom pai ou pelo menos uma boa pessoa. À Folha, disse que atende Tomás nas necessidades afetivas "quando possível", como se estivesse numa audiência da Vara da Família. Se o filho não é dele e se ele nunca foi presente na vida dele, como afirma Mirian, por que ele se importa? O que entrega o sociopata são suas mentiras pois, para ele, o que importa é só a imagem que projeta de si mesmo, mesmo que seja contraditória. Devo desculpas a Mirian. Não conhecia sua versão dos fatos. Sabia, graças aos esforços investigativos da revista independente Caros Amigos, que FHC tinha um filho escondido na Europa, mas jamais vi a jornalista como a vítima. Na minha imaginação, ela era uma femme fatale (uma Glenn Close, já que estamos falando de Atração Fatal), que seduziu o senador e aplicou-lhe o "golpe da barriga" para arrancar dinheiro dele. Parece-me, no entanto, que foi ele quem a seduziu e enganou com a falsa promessa de que seu casamento já tinha acabado.

Ao decidir ter o filho de um futuro presidente, Mirian tornou-se prisioneira de sua escolha. Teve sua vida profissional arruinada. Não é devidamente reconhecida pelo trabalho que prestou à Globo. Sofreu um processo muito público de intimidação, do qual participaram não só FHC como também ACM e Conti. A mídia – a maior revista e a maior emissora de televisão do país – desviou-se de sua função sagrada de informar doa a quem doer e foi manipulada pelo poder político para abafar o caso. FHC destruiu a vida pessoal e profissional de Miriam. Sim, ela obteve algum ganho financeiro, mas será que compensou a dor psicológica? Como afirma Maria Goretti, a história de Mirian lembra a de todas as mulheres. E é por isso que peço desculpas não só a ela, mas a todas as mulheres em situação semelhante – que não são poucas – por ter acreditado na versão masculina da história. Eu acreditava estar crendo num sociólogo, mas na verdade estava crendo num sociopata. Prometo tentar ser mais imparcial da próxima vez.

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