segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Por que as mulheres não são donas de sua narrativa?

Ontem assisti à comédia romântica The Bride Wore Red — cujo título literalmente significa "A noiva vestia vermelho", mas que foi toscamente traduzido para "Felicidade de mentira" —, de 1937, estrelada pelo então casal Joan Crawford e Franchot Tone, cuja união teria sido a origem da rixa da atriz com Bette Davis. Baseada em obra do romancista húngaro Ferenc Molnár, o filme conta a história de Anni, uma cantora de cabaré de Triste, na Itália, que recebe a oportunidade de sua vida: passar duas semanas num hotel de luxo nos Alpes com tudo pago. Chegando lá, ela chama a atenção de dois homens: o carteiro Julio (Tone) e o aristocrata Rudi (Robert Young), noivo de outra mulher. Anni precisa, então, decidir se vai viver o amor de sua vida ou continuar naquele universo de riqueza e luxo em que começou a viver. Seria apenas mais um filme do gênero, não fosse por um detalhe marcante que diferencia-o dos demais: foi dirigido por uma mulher. Isso torna-o muito mais sensível do que qualquer outra comédia romântica que eu já assisti.

Um filme feito para mulheres, dirigido e escrito por mulheres, é algo que foge completamente do usual. Como diz Anni, no começo do filme, as mulheres que ela vê no cinema são "simples, burras e artificiais". Não é o caso das mulheres de The Bride Wore Red. Elas são naturais. Você vê aquelas mulheres interagindo umas com as outras na tela e imagina-as conversando daquela maneira na vida real. Sua malícia, sensibilidade, ousadia e fragilidade são palpáveis. Infelizmente, isso ainda é uma raridade hoje em dia. Em pleno século XXI, obras supostamente feitas para mulheres são dirigidas e escritas por homens. O exemplo mais notório disso é o seriado e os filmes da franquia Sex and the City, que, embora baseados na obra da autora Candance Bushnell, foram idealizados para as telas por um homem: Michael Patrick King. Nem mesmo nessas obras, que se propunham a revolucionar as discussões sobre a sexualidade feminina, as mulheres tiveram o direito de serem donas de sua própria narrativa.

Joan Crawford sendo dirigida por Dorothy Arzner.
The Bride Wore Red foi pouco usual para sua época por unir algumas das mulheres mais notórias da indústria cinematográfica numa única obra. O filme foi co-escrito por Tess Slesinger, editado por Adrienne Fazan e dirigido por Dorothy Arzner. Esta foi a única cineasta mulher dos anos 1930, o que fica bem claro no filme, que mostra situações que não eram apresentadas sob a ótica feminina em outras obras lançadas na mesma época. Reza a lenda que Crawford estava ansiosa para trabalhar nessa produção, pois esta seria sua primeira vez sendo dirigida por uma mulher. No entanto, as duas teriam se desentendido a tal ponto que se comunicavam por bilhetes no final das filmagens. Elas possuíam visões artísticas muito diferentes. A estrela, que estava declinando em popularidade, precisava de um sucesso e não estava disposta a ousar; a diretora, como evidenciado pela cena em que Anni critica a representação das mulheres no cinema, desejava fazer um filme mais autoral.

Crawford estava certa. The Bride Wore Red foi um fiasco. Foi este um dos filmes responsáveis por colocá-la na lista de "venenos de bilheteria", compilada pela Associação dos Donos de Salas de Cinema dos EUA em 1938 (ao lado de Manequim). Ela eventualmente recuperou a fama ao reinventar-se como atriz dramática na década de 1940, trocando a MGM pela Warner Bros. Retornou à lista das estrelas mais rentáveis do cinema em 1947, ou seja, exatamente dez anos após ter saído da mesma. Arzner, por sua vez, não teve a mesma sorte e jamais se recuperou do fracasso deste filme. Dirigiu mais dois filmes antes de se aposentar de Hollywood para sempre. O musical A Vida é uma Dança (1940) teve uma recepção morna, enquanto o filme de guerra Crepúsculo Sangrento (1943), concluído por Charles Vidor após Arzner contrair pneumonia, foi mal recebido pela crítica e pelo público. Nos anos 1950, Crawford, então casada com o presidente da Pepsi, sugeriu o nome dela para a direção de comerciais de produtos da empresa.

Foi um fim melancólico para quem dirigiu o terceiro filme mais lucrativo de 1929 — o drama Garotas na Farra, primeiro filme falado da "it girl" Clara Bow. As obras da diretora traziam mulheres fortes, livres e independentes como ela mesma, que desafiou as convenções de sua época e manteve um relacionamento com a coreógrafa Marion Morgan durante 40 anos. Segundo a autora feminista Gwendolyn Foster, Garotas na Farra "articula meticulosamente o que acontece com as mulheres quando elas se afastam dos confinamentos de um ambiente seguro frequentado apenas por garotas". Já para a Livraria do Congresso, em A Vida é uma Dança "as dançarinas, interpretadas por Maureen O'Hara e Lucille Ball, tentam preservar suas integridades feministas enquanto lutam por seu lugar no holofote". É interessante notar a escolha da palavra "feminista" para descrever personagens criadas quando este termo ainda era marginal. De maneira semelhante, Garotas na Farra apresenta uma situação de sororidade antes mesmo deste conceito ter surgido.

Até quando narrativas femininas serão escritas por homens?
Talvez The Bride Wore Red tenha sido mal recebido porque Dorothy Arzner era muito evoluída para sua época. Em 1937 as pessoas não queriam ver uma mulher não só recusando um casamento por dinheiro como repreendendo o pretendente por trocar a noiva por ela. Novamente, a mensagem da sororidade se faz presente na obra da diretora, creditada por lançar as carreiras de atrizes como Katharine Hepburn, Sylvia Sidney, Lucille Ball e Rosalind Russell (em Mulher Sem Alma, mais tarde refilmado com Crawford como A Dominadora). Talvez se The Bride Wore Red tivesse se saído melhor nas bilheterias, Arzner teria continuado dirigindo, inspiraria outras mulheres e hoje teríamos um amplo catálogo de filmes dirigidos e escritos por mulheres. Talvez o universo delas não seria tão mal representado e mal interpretado por cineastas homens em obras como Sex and the City e demais comédias românticas que apresentam-nas como estereótipos unidimensionais sem muita profundidade. Não seriam "simples, burras e artificiais".

A história de Dorothy Arzner é a própria história de como é árduo o caminho das mulheres em nossa sociedade patriarcal e machista. Ao contrário de um homem, uma mulher, para se provar digna de continuar no emprego, seja ele em Hollywood ou na presidência da República, não precisa ser somente boa naquilo que faz — precisa ser excelente. Nunca saberemos como seria a indústria do entretenimento hoje caso Arzner tivesse sido mais bem sucedida. Apesar disso, sua filmografia se destaca como um exemplo de resistência numa indústria ainda hoje dominada por homens. Como disse Hepburn num telegrama enviado à diretora em 1975: "Não é incrível que você teve uma carreira tão brilhante numa época em que você não tinha sequer o direito de ter uma carreira?". Os filmes de Arzner evidenciam como o universo feminino retrata a si mesmo de maneira mais complexa, inteligente e natural do que o masculino. Não faz mais sentido negar às mulheres que sejam donas de sua narrativa. Talvez isso fosse algo avançado demais para 1937, mas não creio que seja para 2017.

sábado, 9 de setembro de 2017

Como a esquerda criou o "Bolsomito"

O deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) era um zé ninguém até aparecer no CQC em 2011. O programa humorístico da Rede Bandeirantes, exibido entre 2008 e 2015, gostava de abrir espaço para figuras bizarras da vida nacional, em especial do baixo clero da Câmara dos Deputados, como uma forma de aumentar sua audiência, sobretudo no Twitter. Emissoras como Record, SBT e Bandeirantes, que lutam entre si pelo segundo lugar nos índices de audiência, passaram a usar os trending topics daquele rede social como forma de atrair investimentos, mostrando para os anunciantes que possuíam um público mais jovem e antenado com as novas tecnologias do que a dominante Rede Globo. O IBOPE já era considerado um mecanismo defasado de medição de audiência naquela época.

A mídia tradicional precisava de um fascista para quando
estivesse precisando aumentar sua audiência.
A estratégia dos produtores do programa funcionou. Assim que o quadro em que o deputado respondia às perguntas da cantora Preta Gil foi ao ar, o CQC entrou para os trending topics. As barbaridades racistas ditas pelo até então desconhecido deputado foram repercutidas ad nauseum nas redes sociais por militantes de esquerda revoltados com suas palavras. São pessoas que acham que sua missão — na vida e nas redes — é combater as injustiças. Só que nessa luta incansável e sem tréguas a favor da justiça social, acabam dando espaço para as ideias que dizem combater. Depois de sua aparição no programa, amplificada pelos tuítes e retuítes de quem se propunha a denunciá-lo, Bolsonaro finalmente conseguiu o palanque que tanto desejava para suas ideias reacionárias.

Preciso fazer aqui um mea culpa. Na época, eu também ajudar a propagandear essa figura nefasta da política brasileira acreditando estar combatendo-o. Durante o tempo em que usava o Twitter, me tornei um extremista da justiça social, ao ponto em que não conseguia mais assistir a um episódio de um seriado qualquer sem problematizá-lo. O exemplo mais emblemático disso era quando eu assistia à comédia The Big Bang Theory. Para mim, o personagem Raj era utilizado pelos roteiristas do programa como mecanismo de afirmação da supremacia dos EUA sobre os países do terceiro mundo. Militantes de direita, percebendo o extremismo de certas problematizações, cunharam o termo pejorativo social justice warriors (guerreiros da justiça social) para se referir à esquerda, ainda em 2011.

Logo o Twitter virou um campo de batalha entre extremistas da justiça social e militantes que lutam contra a ditadura do politicamente correto. Em comum entre ambos está a falta de bom senso. E, num espaço onde a expressão é limitada a 140 caracteres, os xingamentos tornaram-se a lei. O debate político infantilizou-se desde então, como evidenciado pela recente troca de insultos entre o jornalista americano radicado no Brasil Glenn Greenwald e o deputado Bolsonaro. Longe de mim defender Bolsonaro, mas Greenwald não deveria ter esperado outra resposta do deputado ao chamá-lo de "cretino". A impressão que tive, ao ler a troca de mensagens entre os dois, foi a de que se tratavam de duas crianças brigando no pátio de uma escola:
— cretino!
— viado!

Greenwald também deve acreditar, como eu acreditava, que atacar o deputado, mesmo quando ele está quieto, é a menor maneira de derrotá-lo. Só que isso tem se provado falso. Depois que ele ganhou notoriedade ao aparecer no CQC e nas timelines de milhares de pessoas de esquerda revoltadas com suas ideias, militantes até então ligados à direita tradicional perceberam que ele incomodava muito mais a esquerda do que os políticos do DEM e do PSDB e elegeram-no como seu novo líder. Só não perceberam — ou fingiram não perceber — que isso se deve ao fato de que ele é fascista, o que deveria ser repudiado por todo o espectro político. Assim sendo, Bolsonaro se tornou o deputado mais votado em seu estado, saindo de pouco mais de 120 mil votos em 2010 para quase 470 mil em 2014. Hoje, encontra-se em segundo lugar nas pesquisas para a eleição presidencial de 2018.

Bolsonaro lidera as pesquisas em cinco estados e está em
situação de empate técnico com Lula em Goiás.
Faltou malícia, para mim e para os demais militantes de esquerda, em 2011, para perceber que a intenção da Bandeirantes era justamente a de criar um ícone fascista que eles pudessem explorar sempre que seus programas estivessem com problemas de audiência. A falta de bom senso dos empresários do setor e de regulamentação da mídia criou Jair Bolsonaro como um candidato viável para o futuro de uma nação decepcionada com seu sistema político. Desde que ele emergiu no imaginário nacional como solução para todos os problemas do Brasil, o baixo clero da Câmara cresceu, tomou o poder com Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e promoveu um golpe de Estado para conter a vontade soberana da nação de continuar no caminho da tímida inclusão social dos governos do PT.

A mídia empoderou o lixo político para gerar o caos, porque o caos — como admitiu cinicamente o presidente da CBS ao responder, em 2016, sobre o porquê de sua emissora dar tanto espaço para o então candidato a presidente Donald Trump — pode até ser ruim para a nação, mas é ótimo para os índices de audiência. E a militância da internet, que surgiu como uma promessa de revolucionar a comunicação e a política, tornou-se meramente um jogador de uma partida cujas regras já foram definidas pela mídia tradicional. Esta jogou sua isca e os twitters morderam-na cegamente. A militância de internet atendeu ao pedido da Bandeirantes e criou o "Bolsomito". E, o mais triste de tudo, é que eu não sei dizer se foi a de direita ou a de esquerda — que segue criando palanque para ele, como vimos Greenwald fazer.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

O problema da educação não é não poder bater nas crianças

A diretora de um colégio decidiu filmar uma criança durante um ataque de cólera e expô-la no Facebook. Segundo ela, não há nada que ela possa fazer além de deixar a criança quebrar tudo por causa do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que protege esses pequenos marginais. O vídeo está viralizando na rede social, mas não iriei compartilhá-lo porque porque se não vai ficar parecendo que apoio essa atitude e a mensagem do vídeo. Minha monografia foi justamente sobre a exposição indevida de menores em conflito com a lei pela imprensa.

O brasileiro médio adora citar o Primeiro Mundo quando lhe
convém, mas em toda Europa só é permitido o professor bater
nos alunos no Vaticano (em vermelho).
Diversas vezes, durante o vídeo, funcionários do colégio tentaram segurar a criança e evitar que ela virasse mesas e cadeiras. A diretora impede-os. Ela queria produzir uma evidência que reafirmasse sua ideologia pró-espancamento. Ela deixa a criança destruir o patrimônio do colégio — comprado com o dinheiro de todos nós — para provar seu argumento de que as crianças merecem apanhar dos professores, o que não ocorre em mais nenhum país da Europa. É um argumento do século XVIII, quando a pedagogia sequer era uma ciência ainda.

O entendimento corrente no campo da pedagogia é de que a criança é a parte mais frágil da sociedade e, assim sendo, tem o direito de receber educação sem ser submetida a tratamento degradante. Surpreende-me que uma pedagoga vá contra esse entendimento e defenda a punição corporal como forma de resolução do conflito entre aquele aluno e a escola. Que outras pessoas, alheias à situação, comentem a favor do espancamento só prova minha crença de que o brasileiro gosta de punir a revolta dos mais fracos ao invés da opressão dos poderosos.

A diretora deveria ser a parte racional da situação, tentando pôr fim ao que quer que seja que estivesse atormentando aquele ser, mas preferiu fazer ativismo político reacionário no Facebook. Além de desonesta — por manipular uma situação para defender seu ponto de vista — e anti-ética — por filmar uma criança sem a permissão de seus pais —, demonstra também que é anti-profissional, estando mais preocupada em publicar conteúdo na internet do que exercer sua função, a qual é paga pela coletividade. Se trabalhasse numa escola privada, com certeza seria demitida por justa causa.

Se dependesse de alguns, cenas como essa
sairiam dos livros de História e voltariam à
realidade. Diz muito sobre aquilo que somos
enquanto sociedade.
Por outro lado, duvido que ela deixaria a criança destruir tudo se trabalhasse numa escola particular. Mas no Brasil o que é público não é de todos (inclusive dela), é de ninguém. Ela fugiu de suas atribuições de zelar pelo patrimônio público e pelo bem-estar dos demais alunos. Só interessou-lhe, naquele momento, manipular uma situação para gerar "likes" contra o ECA. Afinal, é mais fácil culpar as crianças pelo atual estado do sistema educacional brasileiro ao invés de se olhar para o próprio descompromisso com as responsabilidades.

Aliás, ela culpa todo mundo pelo ocorrido — pais, assistentes sociais, polícia, políticos — menos a si mesma. É mais fácil culpar quem sequer estava na sala do que fazer o seu serviço, que nesse caso em específico se resumia a segurar a criança e tentar fazê-la se acalmar. É mais fácil também culpar a própria criança sem entender o motivo de sua raiva, o que poderia ajudá-la. Com certeza ela deve ter tido um motivo para o ataque de cólera, mas isso ficou sem explicação num vídeo que foi propositalmente tirado de contexto para defender um ponto de vista arcaico.

A educação no Brasil não está no estado atual porque porque o professor não pode mais bater nos alunos. É porque eles preferem postar vídeo no Facebook do que exercer as funções pelas quais são pagos pela coletividade para exercer. Não está escrito em lugar nenhum no ECA que não se pode conter uma criança durante um ataque de cólera. O que está escrito é que não se pode valer da violência para tal. Se a única forma que nós temos para resolver conflitos é abrir mão da violência, então é a nossa sociedade que tem um problema e não as crianças. As crises delas são apenas um reflexo disso.