sábado, 17 de março de 2018

Quero ser possuído e não posse

É interessante assistir a um filme antigo e se surpreender com a atualidade de algum tema que é retratado ali. Isso ocorre, sobretudo, com obras que tratam, como assunto principal, das relações humanas. É difícil destruir conceitos enraizados há séculos na sociedade e a ideia patriarcal de que o amor implica na posse da mulher pelo homem é uma delas. Para o patriarcado, a mulher deve ter como meta de vida se casar e, depois disso, cessar de existir enquanto um ser humano independente. Ela não só tem que adotar o sobrenome do marido como deve abdicar de seus sonhos e prazeres a favor dos sonhos e prazeres dele. Foi só com a entrada das grandes potências na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que foi permitido à mulher trabalhar. Mais por uma questão estratégica — necessidade de mão-de-obra enquanto os homens lutavam — do que ideológica.

Mariam sonha com a vida luxuosa dos passageiros do
trem que passa por sua cidadezinha.
Em Possuída (1931), produzido antes da censura que o escritório do católico Joseph Breen impôs aos filmes, Joan Crawford interpreta Mariam Martin, uma jovem que trabalha numa fábrica de caixas em alguma cidade do interior dos Estados Unidos e que sonha em pertencer à alta sociedade nova-iorquina. Um dia, voltando de seu trabalho entediante, ela conhece um milionário que promete ajudá-la caso ela vá para a cidade. Mariam chega em casa bêbada e o namorado matuto repreende-a. A cena é uma das mais belas que eu já vi. O namorado diz a Mariam que ela não pode perseguir seus sonhos na cidade grande, ao passo que ela responde-lhe: "Você não é meu dono, minha vida pertence a mim". "Você vai bagunçá-la", retruca o rapaz. "Ainda pertencerá a mim", desafia a garota. A mãe dela entra no meio da discussão para dizer que os pensamentos da filha assustavam-na.

Eis que Mariam começa um discurso avançado demais para 1931, que ainda mantém-se relevante em 2018: "Se eu fosse um homem, não te assustaria, você acharia certo que eu saísse de casa e conquistasse tudo o que eu pudesse na vida e usasse qualquer meio para consegui-lo", diz. Sua mãe não deveria tratá-la diferente, argumenta a moça, pois "o meio que os homens têm é o cérebro e eles não têm medo de usá-lo". Após o confronto, Mariam vai para Nova York e começa um relacionamento com o charmoso advogado solteirão Mark Whitney (Clark Gable), que a mantém financeiramente. Como naquela época ainda não existia o conceito de namorada como o entendemos hoje em dia, Mariam seria vista como uma "amante" caso a imprensa descobrisse sobre ela. E como o advogado possui pretensões políticas é melhor que ela aceite a discrição, o que lhe incomoda.

"Se eu fosse um homem, não te assustaria".
Mariam finalmente conseguiu realizar o seu sonho de inserir-se na alta sociedade, ainda que dependesse de um homem para isso. Afinal de contas, ainda eram os anos 1930. Mas a cena em que Mariam enfrenta o namorado que quer que ela se conforme com menos é um prenúncio do avanço da mentalidade feminina sobre os relacionamentos que estava por vir: as mulheres querem ser possuídas por um amor e não ser posse de um homem. Daí o título do filme, não no sentido de quem está na posse ou no poder de alguém, mas que é tomado pelo amor. Inclusive tive de pesquisar no dicionário os vários significados da palavra após assistir ao filme, pois o entendimento que eu fazia dela não combinava em nada com a história que eu tinha acabado de ver. (Pensei tratar-se, como no filme homônimo de 1947 com a mesma atriz, da história de uma mulher possuída pela loucura).

Mariam não é posse. Ela é livre dos homens. Por mais que ela ame Mark, não tem medo de seguir sua vida sem ele. Quando ela abandona-o, é impossível não pensar na máxima "se você ama alguém, deixe-o ir, se ele não voltar é porque nunca te amou". A relação entre Mariam e Mark não é uma de posse, embora ele sustente-a em segredo. Ela é um agente ativo da relação, sendo jamais mostrada como uma personagem passiva. Ela aceitou o arranjo porque queria os luxos que uma vida na alta sociedade poderia propiciar-lhe. No entanto, ela começa a amar o advogado, o que pode ficar na frente do projeto político dele — que incluía tratar os prisioneiros do Estado como seres humanos, outra questão avançada demais para 1931 e que mantém-se relevante em 2018. Quando Mark desiste da política para ficar com ela, Mariam se afasta dele.

"A reforma prisional envolve questões que estão fora dos
muros das prisões", diz Mark. Já se passaram quase 90 anos
dessa cena e as pessoas ainda não perceberam isso.
Mariam entende que Mark não pode ser posse exclusiva dela. É como se ela pensasse: "eu já consegui o meu sonho, agora deixa ele conquistar o dele" — que é, inclusive, um sonho que pode ser bom para a coletividade, o que torna seu gesto ainda mais altruísta. A heroína do filme entende que amar significa querer o melhor para o outro, mesmo que isso signifique nosso afastamento da pessoa amada. Ela é possuída pelo amor, mas não é escrava (posse) dele e se recusa que seu parceiro também o seja. Possuir, no outro sentido do dicionário, não tem nada a ver com amor; tem a ver com escravidão. E a escravidão psicológica, da qual Mariam se nega a ser perpetuadora, é terrível, pois nada te prende no plano físico e, ainda assim, você não é livre, pois se encontra preso no plano espiritual. Você até tenta se livrar de suas correntes invisíveis, mas não consegue, pois se sente seguro preso a elas.

Assim como Mariam, decidi não me deixar acorrentar por ninguém, nunca mais. Caso ocorra de aparecer um novo amor em minha vida, deixarei que ele me possua no sentido de me desfrutar; será uma relação de companheirismo e não de posse. Demorei vinte e tantos anos para descobrir o outro significado da palavra "possuir", que a maravilhosa roteirista Lenore Coffee já sabia em 1931, quando adaptou a peça The Mirage de Edgar Selwyn para este filme (escrevi sobre a importância do universo feminino ser escrito por mulheres nesse outro texto). Não sei se Mariam era incrivelmente liberta na peça — de 1920! — como o é no filme, mas sua versão para as telas acabou se tornando uma precursora do movimento feminista e me ajudou a perceber o quão errado eu estava em minhas pré-concepções sobre o amor. O que eu quero é ser possuído e não a posse de alguém. Já deveria saber disso, mas não tive acesso às representações mais corretas sobre o tema e nem aos exemplos mais sadios na vida real. Mas ainda estou no meu tempo. Antes tarde do que nunca quando se trata de descobrir as verdades da experiência humana saudável.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Poema: Saiba que (Para que continue a me amar)

Verso 1
Você me trouxe uma novidade
Obrigado, agradeço a sinceridade
Segundo você. as coisas mudaram
Faz sentido, pois as flores murcharam
Agora nossas chances se acabaram
O tempo passou
O amor terminou


Refrão
Mas saiba que vou procurar seu coração 
Em qualquer lugar aonde você o levar 
No frio e no escuro, no calor e no clarão 
Sua alma eu vou procurar 
Vou te enfeitiçar 
Para que continue a me amar

Verso 2
Por que você me procurou?
Foi por sua causa que tudo começou
Você me atraiu e você me tocou

Não deveria ter sido fácil ao me entregar
Afinal, eu não sei muito bem como jogar
Para que continue a me amar

Verso 3
Me dizem que hoje em dia funciona dessa maneira
Que agem uns com os outros como se fosse brincadeira
Mas eu não sou os outros

Antes que nos afastemos
Antes que nossa história descartemos

Refrão
Saiba que vou procurar seu coração 
Em qualquer lugar aonde você o levar 
No frio e no escuro, no calor e no clarão 
Sua alma eu vou procurar 
Vou te enfeitiçar 
Para que continue a me amar

Verso 4
Cantarei em línguas para te louvar
Viajarei pro campo para te lavrar
Vou no terreiro consultar meu orixá
Sem titubear, farei o que ele mandar
Para que continue a me amar


Verso 5
Em rei me proclamarei
E, que fique, ordenarei

Me transformarei num jogador
Para conseguir te satisfazer
Jogarei suas partidas com esplendor

E isso vai te satisfazer
Serei ainda mais belo e meu nome brilhará
E, assim, sua chama renascerá

Em ouro, vou me transformarPara que continue a me amar

segunda-feira, 12 de março de 2018

O país do tapa-sexo

Há algumas semanas, conforme o Brasil celebrava o carnaval — festa de origem pagã regada a muito sexo e álcool que precede o período de penitência da quaresma — a jornalista Eliane Brum conduziu uma extensa entrevista com o artista Wagner Schwartz. No final de setembro do ano passado, ele foi acusado de pedofilia ao se apresentar durante a abertura do 35° Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Durante a performance La Bête, inspirada em obra de Lygia Clark, o artista mantém-se nu no meio de um palco e convida a plateia a manipular seu corpo como se ele fosse um boneco. A performance gerou uma onda de ódio ao artista na internet após uma criança, levada pela mãe ao museu, ser filmada interagindo com o artista. Assim como havia acontecido anteriormente com a mostra Queermuseu, suspensa em várias cidades após ser acusada de promover a homossexualidade para menores de idade, boa parte do ódio contra Schwartz partiu de militantes do Movimento Brasil Livre (MBL).

Esse tipo de nudez não ofende a moral e os bons costumes
do Movimento Brasil Livre e de seus seguidores.
Em novembro, a polêmica chegou a níveis próximos do realismo fantástico. A CPI dos Maus Tratos à Criança e ao Adolescente do Senado Federal, que discutia os limites da arte e ouviu os curadores do Queermuseu, aprovou a condução coercitiva de Wagner Schwartz para depor no plenário. O artista foi alvo da medida arbitrária após declarar que não poderia participar voluntariamente da CPI por estar em turnê na França. Ele recorreu da decisão dos senadores no Supremo Tribunal Federal (STF) e teve sua condução coercitiva barrada pelo ministro Alexandre de Moraes. Para começo de conversa, os senadores nem deveriam estar discutindo qual o valor artístico de obras de arte num país onde a liberdade de expressão é cláusula pétrea da Constituição. Se as instituições estão funcionando normalmente desde o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff, como insiste em dizer a presidenta do STF, então por que diabos os senadores agem como ditadores com artistas? Embora tenha feito, nesse caso, o papel de herói contra o avanço do fascismo, o próprio STF tem responsabilidade pelo acossamento de artistas.

Alexandre de Moraes, antes de assumir a cadeira deixada vaga pela suspeitíssima morte de Teori Zavascki, era o ministro da Justiça do governo golpista e vazou informações da Polícia Federal para o MBL. Alimentou o monstro que agora, para desviar o foco do governo de Michel Temer, o mais impopular da história do Brasil e talvez do mundo, empreende uma campanha a favor da moral e dos bons costumes nas apresentações artísticas. Mas nunca foi a intenção de tucanos como Alexandre de Moraes fomentar o fascismo à brasileira, que agora atinge níveis alarmantes. Eles patrocinavam grupos como o MBL para difundir, na sociedade, o discurso moralizante apenas da política. Foram ingênuos em achar que radicalizariam o brasileiro médio e que o ódio deste acabaria no momento em que o PT saísse do poder. Criaram o terreno para tipos como os presidenciáveis homofóbicos Jair Bolsonaro e Flávio Rocha. O PSDB, na ânsia de tirar o PT do poder, criou e alimentou uma onda fascista que agora vai contra a plataforma liberal do partido no campo dos costumes e que terá cada vez mais dificuldade de conter.

Uma invenção tipicamente brasileira.
A comoção proto-fascista gerada pelo MBL no segundo semestre do ano passado — muito útil para desviar o foco do presidente Michel Temer, que na época enfrentaria o julgamento da segunda denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal contra ele na Câmara dos Deputados — teria sido muito menor se Schwartz estivesse usando uma tanga ao invés de ter ficado completamente nu. Talvez ele não tivesse sido acusado de pedofilia. Ou então até tivesse sido, mas por um contingente bem menor de brasileiros "do bem" indignados com a suposta depravação moral presente nas artes. Inclusive penso que, se fosse esse o caso, muitos dos que acusaram-no de pedofilia teriam defendido-o, dizendo aos mais raivosos: "mas que bobeira, nem pelado ele estava". Mas, para o desespero geral da nação, o órgão genital do artista estava exposto. Como o desfile das escolas de samba do carnaval do Rio de Janeiro nos demonstra, o brasileiro médio aceita ver quase tudo em termos de nudez, desde que o sexo esteja estrategicamente escondido pelo bem das criancinhas. O MAM-SP deveria ter seguido o código da LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro), essa sim ciente da hipocrisia gritante que constitui a sociedade brasileira.

Mas por que a nudez se fez necessária na performance? Entendo-a como uma forma do artista mostrar-se vulnerável para o público, como se esse pudesse fazer o que bem entender com seu corpo. Afinal de contas, era essa a proposta de La Bête, não era mesmo? Schwartz escolheu apresentar-se nu porque pensou estar num país democrático que respeita a liberdade de expressão artística. Ingenuidade dele. Seu pênis — para ele ou para mim — é apenas mais um pedaço de pele e carne, não menos ofensivo do que um pé ou uma mão. Mas não o é para a maioria dos brasileiros, para os quais o MBL fala desde que os convenceu de que tudo o que o Brasil precisava era de um impeachment de base legal duvidosa, visto no exterior como um golpe frio, para nossas vidas melhorarem. A única intenção do coreógrafo com sua performance era provocar na plateia um questionamento sobre os limites do corpo humano e, também, gerar um sentimento de empatia. Ele queria que seu público pudesse enxergá-lo em sua vulnerabilidade e, assim, ser gentil ao manuseá-lo. Esse é um sentimento que o brasileiro médio, incitado por hordas fascistas como o MBL, não exercita há um bom tempo — se é que algum dia já o exercitou. 

Sim, o artista expôs seu pênis. E não cabe ao MBL ou à bancada evangélica do Congresso Nacional querer dizer a ele como ele deve se apresentar. O pênis é uma parte do corpo humano que pelo menos metade da nossa população — e mais da metade dos senadores — possui, não sendo mais sujo do que uma mão. Por que tanta hipocrisia ao lidar com ele? Será que nossa hipocrisia é tamanha que nossos representantes no Senado vão impor o uso de tapa-sexo nas apresentações feitas em museus e demais espaços mantidos com verba pública? Aliás, nada expõe tanto a hipocrisia do nosso país quanto o fato de termos inventado esse tipo de vestimenta. O tapa-sexo é uma invenção brasileira para que as escolas de samba burlassem a regra da LIESA que as impediam de mostrar nudez total na Marquês de Sapucaí. O regulamento foi baixado no começo dos anos 1990 depois de desfiles polêmicos organizados pelo carnavalesco Joãosinho Trinta. Mostrar o corpo é aceitável, desde que ele esteja milimetricamente coberto para não ofender pudores cristãos que insistem se impôr numa festa originalmente pagã e numa sociedade oficialmente laica.

A emissora evangélica, que exibe cenas como essa à tarde,
está preocupadíssima com a exibição de nudez para crianças.
A hipocrisia é tamanha que é possível ver corpos seminus até mesma na maior emissora evangélica do país, a Rede Record, que promoveu uma verdadeira cruzada contra artistas que ela mesma chamou de "degenerados" em seus programas jornalísticos à época do incidente no MAM-SP. Há anos a emissora em questão explora o trabalho de W. Veríssimo, especialista em pintar corpos nus, cujos órgãos genitais ele esconde com minúsculos tapa-sexos em sua programação, inclusive em programas transmitidos no horário em que crianças estão acordadas. Assim como luta por uma arte "oficial", o jornalismo no Brasil deixou se ser o simples relato de fatos para se transformar na criação de uma narrativa única. A mesma que tornou possível o impeachment sem base legal de uma presidenta eleita com mais de 50 milhões de votos sem maiores questionamentos por parte da população em geral. Também foi graças à existência de uma narrativa oficial, sem espaço para questionamentos, que Adolf Hitler pôde convencer os alemães de que existia uma "arte degenerada" (Entartete Kunst) em seu país e convencê-los a lutar contra ela.

Os curadores do Queermuseu, Wagner Schwartz e o MAM-SP desrespeitaram o código de conduta moral do brasileiro médio. Este aceita a seminudez presente nos desfiles das escolas de samba durante o carnaval e nas ondas da Globo ou da Record. A mulata pode se expôr para o deleite masturbatório do público, em especial aquele formado por homens brancos de meia-idade, desde que um tapa-sexo mantenha a sua decência milimetricamente coberta para não chocar as criancinhas que possam estar vendo aquele programa na televisão. Esse mesmo público, no entanto, se levantou contra o pênis de Schwartz, apresentado num espetáculo lúdico e sem qualquer caráter sexual. Além de não entender que o pênis é esteticamente menos aceito do que a vagina para o brasileiro médio, ele desrespeitou a regra do tapa-sexo — expressão maior da nossa hipocrisia — e foi punido por isso. Afinal, precisamos proteger nossos pequenos deixando-os na ignorância. Assim, perpetua-se o abuso sexual de crianças que não podem aprender na escola (sem partido), na televisão ou no museu o que são vaginas e pênis. O país do tapa-sexo condena a si mesmo à perpetuação da violência sexual devido à hipocrisia. E ainda diz que está fazendo isso para combater a pedofilia!