segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Facebook, o Grande Irmão

Em 1984, sua obra-prima, o escritor britânico George Orwell prevê uma realidade distópica para o futuro da humanidade. O mundo se encontra dividido em três blocos supranacionais governados por líderes autoritários e que vivem em guerra entre si. O pensamento é desencorajado, pois pode levar ao dissenso, e os indivíduos são constantemente vigiados através de telões (que o autor chama de tele-telas) instalados em todas as residências, lojas e fábricas, possuindo o mínimo possível de privacidade. Na Oceania, onde mora o protagonista Winston Smith e onde a história se desenrola, o Grande Irmão (Big Brother, em inglês) é o responsável pela vigilância, estando sua imagem presente em todas as tele-telas acompanhada do anúncio "Big Brother is watching you" ("O Grande Irmão está te observando"). Muito já foi debatido se o Big Brother, que é o líder da Oceania, existia de verdade ou se ele era apenas um mecanismo de intimidação da burocracia estatal.
Tele-tela conforme imaginada no filme de Michael Radford.
Quando a televisão se popularizou no Ocidente em meados da década de 1950, críticos sociais começaram a se indagar se as tele-telas orwellianas não teriam finalmente se tornado realidade. No entanto, os aparelhos de televisão da época apenas recebiam os sinais enviados pelas antenas de tevê. Não eram capazes de captar imagens e, muito menos, enviá-las para alguma empresa ou órgão de controle estatal. Hoje em dia, no entanto, as tele-telas já existem. São os computadores e os aparelhos celulares e televisores "inteligentes" (os smartphones e as smart TVs), onde se acumula um número cada vez maior de informação sobre seus usuários. Quantas vezes não vamos preencher um formulário on-line e nossas informações já estão gravadas no navegador? Da nossa data de nascimento ao número de nosso cartão de crédito, nossos celulares sabem tudo sobre nós. E, o que é mais chocante de tudo, são empresas privadas (e não o Estado) que estão gerenciando essas informações!

Se por um lado Orwell acertou ao imaginar um futuro onde o pensamento e a privacidade são mínimos, ele errou ao imaginar que seriam os governos os principais promotores dessa nova realidade. Uma empresa em particular se destaca pelo número absurdamente exagerado de informações que guarda sobre seus usuários: o Facebook. Ao aceitarmos os termos de uso daquela rede social estamos, consciente ou inconscientemente, abdicando de nossa privacidade e de nosso interesse em buscar um diálogo mais calcado na racionalidade do que na passionalidade. Os erros de Orwell foram os acertos de Aldous Huxley, outro escritor britânico do século passado que também previu um futuro distópico da humanidade em seu Admirável Mundo Novo. Confesso que não sou familiarizado com a obra de Huxley, mas o crítico social Neil Postman escreveu o seguinte sobre as diferenças entre 1984 e Admirável Mundo Novo:

"O que Orwell temia era aqueles que queimariam livros. O que Huxley temia era que não haveria razão para queimar livros, uma vez que ninguém mais teria interesse em lê-los. Orwell temia os que nos privariam de informação. Huxley temia aqueles que nos dariam tanta informação que nos tornaríamos apáticos e egotistas. Orwell temia que a verdade seria escondida de nós. Huxley temia que a verdade se tornaria irrelevante. Orwell temia que nossa cultura seria aprisionada. Huxley temia que nossa cultura seria banalizada (...) Em resumo, Orwell temia que o medo nos arruinaria. Huxley temia que nosso desejo nos arruinaria". In: POSTMAN, Neil. Amusing Ouselves to Death. Nova York: Viking, 1985.

O Big Brother não é um ditador autoritário que nos oprime. Não é Edgar Hoover que usa todos os meios possíveis para eliminar o pensamento anti-establishment da sociedade. Não é tampouco a NSA, que viola a privacidade tanto do jovem jovem muçulmano do subúrbio de Detroit quanto da presidenta do Brasil. Afinal de contas, a NSA só consegue informações sobre cidadãos, comuns ou não, porque empresas privadas como o Facebook estão dispostas a repassá-las ao órgão de espionagem do governo estadunidense. O Big Brother é um logotipo azul e branco que nos indaga: "No que você está pensando?", como se guardar os pensamentos para si mesmo fosse algo ruim. O Big Brother é uma empresa que sabe quando nascemos, para onde viajamos nas férias, qual nossa preferência político-partidária e quando estamos de bom e mau humor. E ela nos incentiva a sermos todos Grandes Irmãos. Afinal de contas, nossos amigos e seguidores estão acompanhando todo e qualquer movimento nosso, assim como estamos acompanhando os passos deles.

O mais interessante disso tudo é que não percebemos a invasão de nossa privacidade como uma opressão. Segundo Noel Sharkey, professor de inteligência artificial da Universidade de Sheffield, as novas gerações estão dispostas a conceder sua privacidade para uma empresa privada porque não estão familiarizadas com a obra de Orwell. Elas não imaginam que o extermínio da privacidade possa ser algo ruim até que se vêem como vítimas dele - caso, por exemplo, de pessoas comuns que têm suas vidas arruinadas pela divulgação de fotos íntimas. No momento em que postamos algo na rede, mesmo que em mensagem privada (uma foto nua para o namorado, por exemplo), perdemos o controle sobre aquilo. E, ao contrário do que se pensa, mesmo após deletada aquela informação está guardada para sempre. Sua foto nua está salva no servidor do Facebook em algum canto do mundo. Como diz uma piada que vi recentemente: "se a NSA está guardando todas nossas informações da internet, então ela possui a maior coleção de pornografia da história".

Como disse Postman, o desejo nos arruína. Pelo desejo de ser popular e encontrar pessoas com quem possamos compartilhar nossas ideias, entramos num mundo sem privacidade. Esse desejo é maior do que o de resguardar nossa imagem pessoal. No Facebook, temos tanta informação que não sabemos lidar com elas. Afinal, qual tragédia é mais importante, a de Mariana ou a de Paris? Nos tornamos apáticos à morte de outros seres humanos por causa do grupo ideológico ao qual pertencemos. E não adianta apontar para o indivíduo que ele está sendo egotista, ou seja, que está olhando apenas para seu próprio universo, pois no Facebook não somos encorajados a embasar nossas opiniões e argumentos em leituras ou análises críticas da realidade. Para fazer isso, é preciso sair do espaço virtual, o que aquela rede social não deseja que façamos. No Facebook temos a falsa sensação de que estamos obtendo todas as informações necessárias e perdemos a ânsia pelo verdadeiro conhecimento.

O conhecimento surge, muitas vezes, do embate de ideias. O professor apresenta ao aluno os diferentes modelos de organização social existentes, cada um com seus prós e contras, e este último decide escolher um com o qual se identifica. Os pais apresentam ao filho as diferentes religiões existentes e este decide escolher uma com a qual se identifica. Mas o Facebook é a terra da interdição da coexistência pacífica entre as ideias diferentes. O que importa é vencer a discussão com aquele religioso alienado que mora a 1.000 quilômetros de distância de mim ou com aquele tucano alienado que mora a 2.500 quilômetros de distância e que jamais vou conhecer pessoalmente. Os algoritmos da rede social faz com que tenhamos acesso apenas às pessoas e páginas que pensam de maneira semelhante à nossa. De repente o mundo, composto por várias verdades na sua dimensão real, passa a ser composto por apenas uma verdade na sua dimensão virtual.

A verdade se tornou irrelevante. Assim como Winston Smith, somos desencorajados a pensar, pois pensar pode nos tornar párias sociais. Recentemente, Ciro Gomes e Roberto Requião, que fazem críticas acertadíssimas à política econômica da presidenta Dilma Rousseff, passaram a ser atacados pelos defensores da verdade petista, pois podem levar ao dissenso entre os membros daquele grupo que se acredita coeso. Foram logo atacados e desmerecidos no plano pessoal, pois, como disse anteriormente, o Facebook é o reino do passional e não do racional. Quem decidir apoiar o senador ou o ex-ministro vai virar pária para os petistas. O fato é que, com as redes sociais, voltamos à sociedade tribal. As contendas são vencidas através da violência virtual, através da união dos membros dos grupos virtuais para derrubar páginas, promover hashtags e xingamentos orquestrados e denunciar passionalmente os partidários da ideologia contrária. Às vezes a violência virtual escorre para o mundo real, como ocorreu em Brasília durante a marcha das mulheres negras.

Facebook is watching you.
Orwell imaginou um futuro caótico onde três Estados nacionais fortes suprimiriam o bem-estar individual em sua luta pela dominação mundial. Imagino um futuro caótico onde empresas multinacionais fortes suprimirão o bem-estar individual em sua luta pela dominação mundial. E, o que é pior de tudo, essa dominação não é vista como tal pelas pessoas comuns. O Facebook soube trabalhar muito bem com o desejo do ser humano de se sentir aceito e de viver em comunidade para solapar-nos de nossas privacidades. Em troca de pertencermos a tribos virtuais, oferecemos nossas informações mais íntimas, que são registradas e acessadas a qualquer minuto pela rede social, que vende-as para empresas de comércio virtual e repassa-as para órgãos de espionagem. O futuro é sombrio.Viveremos numa sociedade tribal, inepta à resolução de conflitos através do diálogo, criada por empresas que sabem tudo sobre nós. Eis o admirável mundo novo: Facebook is watching you.

domingo, 22 de novembro de 2015

Poema: As pessoas

As pessoas não querem saber
O que te rói
As pessoas não querem entender
Se sua alma dói

As pessoas só querem se mostrar
Lindas, inteligentes e atenciosas
Mas as pessoas vão te julgar
Porque elas são perniciosas

Não se engane, as pessoas não valem nada
E vão te dizer sempre uma coisa inadequada
As pessoas vão rir do seu sofrimento
E oferecer meios para acabar com seu tormento

Mas não faça isso, resista!
Porque tudo o que as pessoas desejam
É que, de lutar, você desista
Para que, sua tragédia, festejem

Queria ter depressão

O título desse artigo é, claramente, uma provocação. Mas é uma indagação muito verdadeira que faço a respeito de mim mesmo. Toda minha vida adulta tenho convivido com uma condição psicológica chamada distimia. Trata-se de um tipo crônico de depressão, com a diferença de que não possui "altos" e "baixos" bem definidos. Posso estar indo super bem num determinado dia até que me deparo com uma decepção e, pronto, estou na pior. Os sintomas, por serem menos graves do que na depressão comum, são mais difíceis de serem percebidos, apesar da distimia durar mais tempo. Muitas vezes, os pacientes só descobrem que têm essa condição depois de algum tempo de sofrimento. Eu mesmo achava que a tristeza era um traço da minha personalidade e que eu deveria aprender a lidar com ela.

Conviver com essa condição é não saber viver. Tenho medo de viver porque não sei lidar com as coisas que fogem do script. Não sei lidar com imprevistos, pressões e cobranças que podem surgir no meu dia-a-dia. Antes de descobrir o que me afligia, eu achava que era louco. E a sociedade ajudou bastante para que eu construísse essa imagem errada de mim mesmo. A sociedade homogeniza seus membros; à ela, nossas individualidades não interessam. Quem não busca a felicidade da propaganda de margarina não é "normal". Ainda mais no meio social em que convivo, o da classe média, onde se acredita piamente que todos têm a mesma capacidade, bastando apenas se esforçar um pouquinho para conquistar os céus. Se eu tive as mesmas oportunidades que os garotos da minha classe social e mesmo assim tenho dificuldades em conquistar o que desejo, é porque devo ser louco, não é mesmo?

Não, eu não sou louco. Sou triste. E muito mais do que você possa imaginar. Sofro de uma tristeza paralisante, que dói no fundo da minha alma e da qual não consigo me livrar a não ser que eu esteja exercendo minha criatividade, como estou fazendo agora, com uma caneta na mão escrevendo esse texto. Mas é fácil para os outros me julgar do que tentar me entender. Talvez se eu tivesse depressão, me entenderiam melhor. Talvez não. Nos tempos atuais, a empatia virou uma peça de museu e perfeitos estranhos se estapeiam nas redes sociais por conflitos mundanos como qual partido político brasileiro rouba menos, qual dos times nacionais de futebol é o menos pior ou, pasmem, qual tragédia foi pior, a de Paris ou a de Mariana. Uma coisa é certa. esse ambiente estava me intoxicando e piorando – e muito – minha condição.

Sair das redes sociais representou apenas o primeiro passo na reconquista da minha sanidade e, consequentemente, da minha vida. Foi a saída de um local, embora não-físico, onde a compaixão não existe – para comigo e para com ninguém. Uma pesquisa recente feita na Dinamarca com mais de mil pessoas concluiu que internautas que ficaram uma semana sem usar o Facebook demonstraram mais satisfação com suas vidas em geral do que aqueles que usaram a rede social todos os dias. Diversos estudos mostram como a realidade é manipulada nas redes sociais de forma que seus usuários estão sempre recebendo notícias boas sobre a vida dos outros. Sentimos que a vida dos outros é melhor do que a nossa. Há, inclusive, um curta-metragem que explora esse fenômeno psicológico chamado de "Facebook effect" por pesquisadores.

Reconhecer que se tem um problema é o primeiro passo para se começar a resolvê-lo. Eu quero qualidade de vida e com certeza farei tudo o que está a meu alcance para consegui-la. Quero ser o senhor da minha consciência. Chega de não saber lidar com os revezes e agir impulsivamente como um animal. Nada importa mais nesse momento do que me recuperar. Chega de cansaço e tédio.  Chega de me vitimizar. Quebrar o ciclo de anedonia que tomou conta de mim e recuperar minha joie de vivre, essa é a minha única ambição no momento. Se, ao me recuperar, perder algumas pessoas no caminho, não importa. Quem gosta mesmo de mim quer me ver bem. Assim, quem sabe, conseguirei ficar livre do costume de andar sempre com o celular e, no fundo, ficar esperando que ninguém me ligue. Espero conseguir atingir minha meta. Que eu também possa dizer que experimentei a aflição, mas, com confiança, venci o mundo!

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O que a mídia está esperando, que matem alguém?

A mídia brasileira é uma das mais irresponsáveis do mundo. Há treze anos acusa os membros de um só partido de corrupção e silencia sobre os desvios cometidos por membros de outros partidos, alguns dos quais são sócios/donos de empresas mídia. Isso acabou por gerar no público desses veículos um ódio descomunal a esse partido e a toda pessoa associada a ele, pois, para quem se informa pela mídia brasileira, parece que o país era o reino da moralidade no serviço público até aquele fatídico dia 1° de janeiro de 2003, quando Luiz Inácio Lula da Silva tomou posse e inventou a corrupção. Para quem se faz de bobo ou para quem realmente não sabe, o antecessor de Lula comprou deputados para que votassem a favor da emenda que lhe garantiria o direito de concorrer novamente à presidência. Ou, caso prefiram um exemplo menos controverso, Abraham Lincoln comprou deputados para que votassem a favor do projeto de lei que aboliria a escravidão nos EUA. A corrupção não é um fenômeno recente e, muito menos, brasileiro, como demonstra essa lista.

No último dia 18, mulheres negras que marchavam contra o racismo na Esplanada dos Ministérios em Brasília foram atacadas por soldados anti-PT que se encontravam no local. Protestos assim são comuns em qualquer lugar do mundo e costumam atravessar as barreiras partidárias. Não no Brasil. Afinal de contas, mulheres negras, em sua maioria, votaram na candidata do PT na última eleição, logo, segundo a lógica de quem nunca leu Aristóteles e dificilmente conseguiria fechar a prova de raciocínio lógico de um concurso, isso significa que elas são corruptas também. Lunáticos acampados no local para exigir a renúncia de uma presidenta legitimamente eleita e reeleita por seu povo atacaram as militantes negras com paus, bombas e houve até mesmo quem desse tiros para cima. Uma pequena amostra do "Brasil sem PT" que eles querem construir. No "novo Brasil", a única forma válida de protesto é aquele que concorde com o ponto de vista deles.

Essa violência, por enquanto mais simbólica do que real, vem sendo alimentada há um ano por uma mídia decadente. Décadence sans élegance. As grandes corporações de mídia apostam todas suas fichas na derrubada da presidenta Dilma  Rousseff porque não conseguem sobreviver mais quatro anos com verbas estatais cada vez mais minguantes – e, agora, com o ajuste fiscal, é que vão ficar ainda mais minguantes. É interessante ver quem tanto prega a meritocracia e o liberalismo econômico tendo dificuldades em garantir sua existência sem as generosas tetas do Estado brasileiro. A Rede Globo, por exemplo, jamais existiria sem os subsídios que a ditadura militar lhe deu para massificar a cultura, dar um tiro fatal na contracultura e transformar o Brasil no país do senso comum. A revista Veja, por outro lado, já teria acabado há alguns anos sem o contrato que firmou, sem licitação, com o governo de Geraldo Alckmin para distribuir seu lixo tóxico nas escolas paulistas.

Eu achei, na minha inocência, que a mídia brasileira perceberia que incitar o caos é ruim para todos – inclusive para ela – e iria abafar a sandice golpista surgida do choro dos perdedores da última campanha presidencial. É o que ocorre em países minimamente civilizados. Até mesmo nos EUA que nossa imprensa tanto exalta. A não ser pela ultrarreacionária, machista e racista FOX News, nenhum grande veículo de comunicação dos EUA leva a sério os pedidos de renúncia do presidente Barack Obama que, ao contrário de Dilma, comanda um Exército que usa aviões não-tripulados para matar crianças e mulheres no Paquistão. Apesar da campanha de difamação promovida por uma minoria de fanáticos, com acesso irrestrito à FOX News, a maioria dos oposicionistas não acredita em teorias da conspiração contra o presidente (como as que afirmam que ele não teria nascido no país e que seria muçulmano em segredo) e líderes oposicionistas como Chris Christie e Lindsey Graham criticam os republicanos que vocalizam essas teorias.

Ledo engano o meu de achar que moramos num país onde a mídia é séria e se preocupa com seu povo. O terrorismo midiático afugenta investimentos – nacionais e estrangeiros – e tem como propósito único minar a retomada do crescimento econômico, para que o PT seja eliminado dos espaços de decisão e a farra da publicidade estatal dos tempos FHC retorne. Aécio Neves é tão ou mais corrupto do que o PT, mas ele defende os interesses dos proprietários da mídia, afinal de contas, ele mesmo é um em Minas Gerais. É interessante as coisas que a mídia brasileira esconde por simples e puro interesse político-partidário. No auge da crise econômica da Era FHC, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, deu um pito no seu colega brasileiro por não garantir direitos básicos aos mais pobres (naquela época, a cada 5 minutos uma criança morria de fome no país). Hoje, em campanha pela esposa, Bill disse que o Brasil, apesar das dificuldades, é um dos melhores lugares para se investir. Nenhuma dessas declarações apareceu no Jornal Nacional.

Seguindo a lógica dos que não estudaram lógica, Bill Clinton é petista, assim como as negras que não aguentam mais o racismo. Me admira muito o partido cujos fundadores estiveram quase todos envolvidos na luta pela redemocratização, apoiar essa lógica fascista de demonização de quem pensa diferente. O PSDB se junta à décadence sans élegance da grande mídia. É o triste fim do sobrenome Neves, que passou do inimigo N° 1 da ditadura a um playboy inconsequente sem o menor apreço pela estabilidade política do país que o tornou quem ele é. Será que é tão burro assim? Ele mesmo não representa mais a turma dos lunáticos que pedem a derrubada da presidenta. Corre o risco de, como Carlos Lacerda, orquestrar um golpe do qual não será o principal beneficiário. Mas seu ego gigantesco, não permite-lhe se afastar dos holofotes, como fizeram John McCain em 2008, José Serra em 2010 e Mitt Romney em 2012.

O que será que a mídia e o PSDB estão esperando acontecer para que percebam a inconsequência de suas ações? Estão alimentando um monstro. O "Gigante" acordado por eles em 2013 (aliás, esse era um slogan comum no Brasil pré-1964) é um analfabeto histórico-político e possui problemas psíquicos, não sabendo lidar com a frustração de não poder mais controlar todos os aspectos da vida social no Brasil. Mulher negra marchando em Brasília e dividindo o mesmo espaço público de protesto comigo? Não quero, vou dar uns tiros para cima para espantá-las. E se a violência desses lunáticos um dia sair do plano simbólico e for para o plano real? Será que a mídia brasileira está esperando eles matarem alguém para criar algum senso de responsabilidade pelo tipo de narrativa que cria? Esse tipo de jornalismo de torcida, que divide os brasileiros em "nós" e "eles", "do bem" e "do mau", ainda vai criar uma tragédia nacional.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

É morrendo que se renasce

Em "Nobody Knows Me", uma de suas canções mais introspectivas, Madonna canta: "Eu tive tantas vidas / desde que eu era criança / E eu percebo / Quantas vezes morri". Também morri tantas vezes desde aquela tarde de segunda-feira de novembro de 1989 na qual estreei no mundo que até perdi as contas. Eu era geralmente assassinado. Pelas mãos da Igreja Católica, com sua moral rígida e complexa; do sistema educacional, que não permite a expressão plena de nossas individualidades e sonhos; dos "amigos" que me usaram para atingir seus próprios objetivos e, por fim, dos "amores" que tentaram me usar para atingir seus próprios desejos. No último dia 13, no entanto, decidi me me encarregar da matança pela primeira vez para que um Rodrigo novo pudesse surgir.

Assim sendo, em 14/11/2015 eu renasci. A dor do parto foi tão intensa que eu chorei. Mas a verdade é que um novo Rodrigo, mais verdadeiro, enfim surgiu. Abandonei o Facebook e o Twitter (meus perfis ainda estão lá, mas não são mais alimentados) e decidi escrever só para quem realmente estiver interessado em ler o que tenho a dizer. O novo Eu busca uma relação mais saudável ao estabelecer suas relações dialogais. E foi também empoderado. A partir de agora, não espero nada de ninguém além de mim mesmo e não dou a mínima para o que os outros pensam de mim. O novo Eu se libertou das poucas amarras sociais que ainda lhe impediam de ir atrás de seus desejos. E o mais importante de tudo: o novo Eu se aceita como um cara que tem defeitos e que erra – para caramba.

Essa foi, sem sombra de dúvidas, a melhor morte que já tive. Porque foi a morte das aparências e das meias-verdades. Tornei-me um ser completo e não mais um algoritmo. Foi a morte da virtualidade em prol da realidade. Quero relações reais com pessoas de verdade. Quero gostar de pessoas e não uma sequência de algoritmos que formam as informações apresentadas num monitor. E quero que gostem de mim por aquilo que sou e não pela imagem que sites de redes sociais criam de mim. Em resumo, foi a morte das mentiras, das falsidades e das hipocrisias virtuais. A partir de agora minha imagem pública será tão verdadeira quanto possível. As minhas personas se encontraram e o resultado disso está sendo lindo. Estou leve como uma pena. Sinto-me sexy, confiante e forte como nunca havia me sentido antes.

Tão importante quanto promover o encontro das minhas personas, pública e privada, virtual e real, esse renascimento foi importante por fechar um ciclo iniciado meses atrás. Na verdade uma jornada de auto-conhecimento. Já que comecei o texto citando uma música, gostaria de terminá-lo citando outra. Em "Greatest Love of All", Whitney Houston canta: "O maior amor de todos está acontecendo para mim / Encontrei o maior amor de todos dentro de mim". Piegas, mas tão verdadeiro que chega a incomodar. Foi preciso me perder para me reencontrar. Fim de relacionamento, depressão, comportamento auto-destrutivo, reconciliação e subsequente rompimento com a Igreja Católica, conversão ao protestantismo, alienação e reintegração social, os últimos treze meses não foram nada fáceis para mim. No entanto, consegui me reposicionar, redefinir meus valores e, por fim, renascer. 

Liberte-se de suas gaiolas. Charge da Laerte.
Como em toda jornada, perdi coisas pelo caminho (talvez a mais notória seja a vontade de militar na política). Isso pode desagradar a algumas pessoas. Mas estou pouco me lixando para quem não vai gostar desse renascimento. As pessoas andam tão confinadas em suas prisões mentais que acham ofensivo quem não aceita se prender também. Mas para o novo Eu, o Rodrigo renascido, o Outro não importa mais tanto assim. Percebi que idealizar o Outro é coisa de pessoas incapazes de lidar com suas expectativas frustradas pela realidade – caso de neonazistas, terroristas árabes e tucanos mau-perdedores de eleição. Entretanto, se alguém gostar do meu renascimento é porque essa pessoa está disposta a conviver com o verdadeiro Eu. Sinal maior de amizade não há. Serei eternamente grato a quem compreende que é morrendo que se renasce.

Até que enfim, Aung San Suu Kyi

Há 25 anos a política birmanesa Aung San Suu Kyi foi eleita presidenta de seu país. Seu partido, a Liga Nacional pela Democracia (LND) obteve 60% dos votos e 81% dos assentos no Parlamento. A última vez que os birmaneses haviam votado havia sido em 1960. Em 2 de março de 1962, militares liderados pelo General Ne Win promoveram um golpe de estado no país. Desde então, o governo do país esteve sobre o controle, direto ou indireto, do Exército que, vejam só, foi fundado pelo pai de Suu Kyi para expulsar os dominadores britânicos do país. Entre 1962 e 1974, Burma foi um país socialista onde todos os aspectos da vida social (meios de produção, negócios e mídia) eram nacionalizados e pertenciam ao governo, que seguia o estilo de planejamento central dos soviéticos. Até 1988, foi governado como um Estado de partido único, com o General Win liderando o país com punhos de ferro. A essa altura, Burma se tornou um dos países mais pobres do mundo.

Suu Kyi discursa para meio milhão de pessoas em agosto de
1988. Em maio de 1990, seu movimento político venceu as
eleições, mas foi impedido de assumir o Parlamento.
Durante o governo de Ne Win, os protestos esporádicos contra o governo eram reprimidos violentamente. Em 7 de julho de 1962, o governo invadiu a Universidade Rangoon para impedir a realização de um protesto e matou 15 estudantes. Em 1988, no entanto, uma acentuada crise econômica, aliada à forte repressão política, deu lugar à Revolta de 8/8/88, quando milhares de pessoas saíram às ruas para protestar contra o governo ditatorial do país. As forças de segurança mataram milhares de manifestantes e o General Saw Maung se aproveitou da insatisfação popular para orquestrar um golpe de estado e derrubar Ne Win. Nesse ínterim, a ex-funcionária da ONU Aung San Suu Kyi retornou ao país, fundou a LND e liderou marchas contra o autoritarismo, chegando a discursar para meio milhão de pessoas na frente do templo Shwedagon Pagoda. O novo governo, no entanto, declarou estado marcial. Por outro lado, planejou eleições para a Assembleia Popular em 1989. Foi nessa época que o nome do país mudou de Burma para Myanmar.

Em maio de 1990 o governo finalmente realizou as primeiras eleições livres do país em 30 anos. Se o resultado tivesse sido respeitado, a LND teria assumido 392 dos 492 assentos do Parlamento e Suu Kyi teria sido eleita presidenta pelos deputados. No entanto, a junta militar se recusou a sair do poder e manteve Suu Kyi em prisão domiciliar por 15 anos. Quando seu marido foi diagnosticado com câncer de próstata ela recebeu uma proposta dos militares: poderia deixar o país para cuidar dele, mas não poderia retornar mais. Ela decidiu ficar e ele morreu em 1999, havendo visitado-a pela última vez no Natal de 1995, última vez que o regime lhe permitiu entrar no país. A repressão continuou forte. Em 2007, o governo teria matado monges budistas que protestavam contra o aumento do preço da gasolina. Como resultado, as sanções internacionais contra o país aumentaram. Em agosto de 2009, tropas militares entraram em confronto com minorias étnicas no estado de Shan, causando a fuga de mais de 10.000 membros das etnias Han, Wa e Kachin para a província chinesa de Yunnan.

Em 2008, uma nova Constituição foi aprovada num referendo. Eleições gerais foram realizadas em 2010 e uma série de observadores internacionais descreveram irregularidades que teriam ocorrido nos locais de votação, o que levou a ONU e um número de países ocidentais a declarar as eleições como fraudulentas. A União da Solidariedade e do Desenvolvimento (USD), apoiada pelos militares, foi declarada vencedora do pleito, enquanto a LND boicotou a eleição por não concordar com uma série de pontos da nova lei eleitoral. A junta miliar foi dissolvida em 30 de março de 2011 e Thein Sein, líder da USD, foi nomeado presidente de Myanmar. Muitos analistas são críticos da transição à democracia. Assim como no Brasil, os militares só aceitaram devolver o poder aos civis se suas benesses não fossem cassadas e se eles não fossem responsabilizados pelos crimes que cometeram no passado. Para citar um exemplo, 25% de todos os assentos do Parlamento é reservado aos militares, independente de concorrem na eleição ou não.

De qualquer forma, Thein Sein conduziu algumas reformas: deu anistia a mais de 200 prisioneiros políticos – o que libertou Suu Kyi – e aprovou uma lei trabalhista que prevê a organização dos trabalhadores em sindicatos e a realização de greves (algo inédito na história do país). Além disso, a censura à imprensa foi relaxada. Em 2012, o governo derrubou os artigos da lei eleitoral aos quais a LND se opunha, o que fez com que o partido aceitasse participar das eleições suplementares daquele ano, conquistando 43 dos 45 assentos em disputa e elegendo Suu Kyi como líder da oposição. Apesar dos avanços, o governo mantém 100 prisioneiros políticos presos e falha em garantir os direitos das minorias, em especial dos muçulmanos da etnia Rohingya. Os ataques anti-islâmicos promovidos por monges budistas radicais, preocupados com a diminuição da população budista do país (atualmente o budismo é a religião de 80% dos birmaneses) e criados sob a égide ultranacionalista das juntas militares, rendeu a condenação do Dalai Lama.

Suu Kyi passou 15 anos presa para que a
decisão de 25 anos atrás pudesse ser
respeitada.
No último dia 8, foram realizadas eleições para determinar a nova composição do Parlamento de Myanmar. Após a posse da nova legislatura, será realizada uma eleição indireta para definir quem será o novo presidente da nação. Suu Kyi, que havia sido instigada pelo Dalai Lama a apoiar os direitos civis da minoria muçulmana, manteve-se calada sobre o tema durante todo o tempo em que foi líder da oposição e, mais recentemente, candidata ao parlamento pelo distrito de Kawhmu. Ela não quis arriscar perder a presidência mais uma vez. Monges budistas como Ashin Wirathu acusam-na de apoiar a minoria e até de ser muçulmana em segredo. Velha tática da direita religiosa para tentar destruir a imagem de políticos cujo discurso de reforma das estruturas da sociedade representam uma ameaça a seu projeto de dominação através da exploração da pobreza – material e espiritual – dos seres humanos. Como disse a própria Suu Kyi num de seus discursos mais famosos, "não é o poder que corrompe, mas o medo de perder o poder". 

Apesar da coordenação de forças religiosas e militares, a LND obteve 60% dos assentos no Parlamento de Myanmar. Suu Kyi agora luta contra o tempo para derrubar um artigo da Constituição de 2008. O texto constitucional, refletindo o ultranacionalismo dos militares que o redigiram, proíbe cônjuges e pais de estrangeiros a exercer a presidência da República. Suu Kyi é viúva do historiador britânico Michael Aris (1946–1999) e, assim sendo, seus filhos possuem também nacionalidade britânica. O artigo da Constituição foi escrito para impedi-la de assumir a presidência da nação. Independente da decisão do tribunal constitucional, que será pressionado tanto por militares e radicais budistas quanto por organismos internacionais, Suu Kyi irá definir os rumos de seu país. Ela já afirmou e seu partido reforçou que será ela quem exercerá o poder de facto no novo governo de Myanmar. Nada mais justo. Esse era o desejo de seu povo em 1990. Esse é o desejo de seu povo em 2015. Suu Kyi, carinhosamente chamada pelos birmaneses de Amay Suu (Mamãe Suu), teve de esperar 25 anos, mas finalmente poderá pôr em prática seu plano de transformação de uma das sociedades mais pobres do planeta. Até que enfim, Aung San Suu Kyi!

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Poema: Deus

Deus, como é ser abusado?
Te acusam de se omitir
Mas Você também é estuprado
Por quem só sabe mentir

Vejo os mercadores da fé
Andando de carro importado
Seu filho andava a pé
E por mercadores da fé foi assassinado

De que adiantou Seu filho vir pregar?
As lições não foram aprendidas
O homem nasceu para odiar
E humilhar as pessoas sofridas

Deus, como é ser ignorado?
Só sabem zombar de Suas leis
Você é massacrado e violado
Por aqueles que querem ser reis

No altar, palavras de ódio sobre quem pregou o amor
E, sobre quem pregou desapego, exaltação ao dinheiro
Queria poder não mais acreditar no Senhor
Para ficar livre desse Seu povo rasteiro

Deus, mostre-me a rota
Desvia-me dessa frota
Quero viver Seu amor e Sua paz
Entre fariseus, não quero viver mais

Deus, como é ser abusado?
Estarei sempre do Seu lado
Enquanto Você é de novo crucificado
Por quem de cristão está mascarado

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Sex and the (small) city

Eu sempre achei que quando saísse do armário, minha vida seria glamourosa como a dos personagens do seriado Queer as Folk. No entanto, não moro em Pittsburgh, na América do Norte protestante. Moro em  Goiânia, na América do Sul católica e o que move o catolicismo romano é a hipocrisia. No protestantismo não-pentecostal, religião predominante na América do Norte, a ênfase teológica dada à remissão dos pecados é menor. E o conjunto de dogmas, verdades universalmente aceitas pelos membros da igreja, é menor. Já no catolicismo romano, para conseguir equilibrar a natureza humana com o complexo conjunto de regas da Igreja, os fiéis normalmente recorrem à hipocrisia. Afirmo sem medo de errar que a maioria dos padres católicos ou tem família secreta ou são homossexuais em conflito com sua própria sexualidade. Da mesma forma que uma pesquisa realizada há algum tempo revelou que a maioria absoluta das mulheres que já praticaram aborto no Brasil era católica romana. Todo mundo sabe que homossexualidade e aborto são pecados para a Igreja de Roma.

Falar de sexo no almoço? Não pode, aqui o sexo é banido
da sociedade e só pode existir nos motéis das BRs.
Pois bem, moro na América do Sul, numa cidade onde a maioria das pessoas são católicas ou evangélicas pentecostais, grupo esse que consegue lidar com as questões relacionadas à sexualidade de maneira ainda pior que o catolicismo, pois prega o retorno à maneira de viver do século I, quando Jesus e seus discípulos caminharam sob a terra. Ou seja, vivo numa sociedade onde a relação das pessoas com o sexo é complicadíssima. A busca pelo sexo – tão natural que está presente em qualquer cachorro de rua – é reprimida por um conjunto de normas sociais hipócritas. O sexo não é visto jamais como dádiva, mas como um pecado tão horrível que deve ser cometido o mais distante o possível dos olhos da sociedade. Não é por acaso que Goiânia seja a cidade do Brasil (talvez até do mundo) com o maior número de motéis per capita. Um dia desses fui alertado por um pretendente de que se eu dormisse com ele no primeiro encontro, a visão dele sobre mim mudaria. Não me importei com a ameaça, pois isso revela mais sobre o caráter dele do que sobre o meu. E eu achando que só as mulheres precisavam se preocupar com a distinção "para casar" x "para comer".

O conservadorismo sexual do goianiense não cansa de me surpreender de maneira negativa, em especial nos ambientes frequentados por membros da comunidade LGBT. Eu imaginava que o ambiente LGBT fosse um de respeito à individualidade e à liberdade sexual de cada pessoa – e não um de reprodução dos valores conservadores produzidos no seio do resto da sociedade, machista, misógina, homofóbica e racista, que nos divide em grupos e nos julga com base em uma de nossas muitas características pessoais. Ledo engano meu. Microcosmo que é da sociedade em geral, a comunidade LGBT reproduz os valores machistas desta entre seus membros. É comum ouvir gays julgando outros gays devido à quantidade de parceiros sexuais que estes últimos possuem. É ridículo, para não dizer contraditório, que membros de um grupo social que vive empunhando a bandeira da liberdade façam isso. Exigem respeito do resto da sociedade, mas se discriminam uns aos outros dentro da comunidade, num ato que daria orgulho a Jair Bolsonaro. Costumo repetir que desde que saí do armário passei a entender melhor o feminismo e simpatizar-me ainda mais pela causa.

Não gosto de me envolver com pessoas de Goiânia. Por outro lado, me dou muito bem com pessoas oriundas de estados litorâneos. Elas me seduzem facilmente – afinal, o sexo é natural para elas – e, quando percebo, estou fazendo com elas coisas que jamais me permitiria fazer com os caras daqui. Eu e minhas amigas chegamos ao consenso de que o homem goiano é machista e recatado ao mesmo tempo. Não sabe "chegar" e, quando "chega", exige o cumprimento de uma série de regras sobre o que se pode ou não fazer na cama (como o exemplo já dado do sexo no primeiro encontro) que fariam todo o sentido do mundo durante a época do Império, mas não no século XXI, onde existem preservativos, pílulas anticoncepcionais e pílulas do dia seguinte – itens que, se Deus quiser, continuarão sendo distribuídos de graça pelo governo a despeito das intenções de Eduardo Cunha e seus asseclas, muitos dos quais são produtos do eleitor goiano. Goiás, terra da repressão sexual, enviou a Brasília o deputado autor do projeto de lei que, se aprovado, permitirá que psicólogos conduzam a terapia de "reorientação sexual" em seus pacientes.

A corte funcionou tão bem para os ingleses da Era Georgiana,
por que não reproduzi-la no Brasil de 2015?
O povo brasileiro, de maneira geral, é um povo sexualmente reprimido. E isso tem razão de ser na nossa História. Como meu pai gosta de repetir, o povo brasileiro é fruto do estupro de índias e negras. Um povo estuprado é um povo reprimido. Mesmo assim, há lugares onde a repressão é menor. A primeira vez que fui no Recife fiquei impressionado, para não dizer assustado, com o vibrante clima sexual da cidade. No Rio, idem. Se aqui é "feio" transar com quem você quer, nesses locais não parece ser o caso. Aqui em Goiânia mesmo que ambas as partes estejam interessadas, devem esperar até o terceiro encontro para fazer sexo para não parecerem "fáceis" demais. Queria estar em Sex and the City. mas estou preso no filme Orgulho e Preconceito, a mais bela história de amor onde os protagonistas sequer se beijam. Afinal, aquela era a época da corte, que as diversas igrejas neopentecostais de Goiânia não só tentam reproduzir como inculcam nas mentes de seus fiéis. A jihad evangélica está criando uma geração de pessoas tão sexualmente frustradas quanto os muçulmanos radicais que colocam burcas em suas esposas.

Apesar da rápida neopentecostalização de Goiânia, não creio que a rígida (e hipócrita) moral religiosa predominante na cidade seja a única explicação para a repressão sexual de seus habitantes. Afinal de contas, a maioria das pessoas na liberal Nova York de Carrie Bradshaw pertencem a uma denominação religiosa e acreditam em Deus, sendo a religião inclusive tema de alguns episódios do seriado. Não sei exatamente qual é a correlação existente entre a maneira de lidar com a sexualidade humana e o desenvolvimento econômico de uma região, mas ela parece existir. Nas cidades mais ricas do que Goiânia – São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Brasília – a caretice sexual é bem menor. Seja qual for o motivo, o fato concreto é que tenho dificuldade de expressar minha sexualidade de maneira completa vivendo aqui. Às vezes me parece que todo mundo conhece todo mundo (ainda mais na comunidade LGBT) e é bem fácil de se ficar mal falado. Por outro lado, sinto que traio a mim mesmo quando me nego o direito a ser dono de minha sexualidade. Pois que falem. Não vivo sob a égide de regras que não criei.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Poema: Garota independente

Inspirado na canção "Modern Girl", composta por Frank Musker e Dominic Bugatti.

Ele acordou e disse: "bom dia"
Pegou o controle e ligou a televisão no jornal
Tomou banho enquanto o café ela fazia
Ele disse: "foi ótimo, mas preciso fazer minha corrida matinal"
Ela fingiu um sorriso enquanto pela porta ele saiu
Esse filme, mil vezes ela já viu

De homem, ela nada espera
Mas se vira com quem a paquera
Ela define quem será, ela vive livremente
Tudo o que ela quer ser é uma garota independente

Parece que mais uma vez vai garoar
Ela pega o metrô para ir trabalhar
Lê algo em seu look retrô ate o trem parar
Hora de, nos túneis, seus sonhos deixar

Ela pensou o dia todo nele
Chegou em casa e recebeu mensagem dele
Querendo levá-la para jantar
Ela respondeu: "não posso, hoje vou sair pra dançar"

De homem, eu nada espero
Me viro com quem me paquera
Defino quem serei, eu vivo livremente
Tudo o que quero ser é uma garota independente

domingo, 15 de novembro de 2015

O que 11/09 e 13/11 têm em comum?

O que os recentes atentados de terroristas islâmicos em Paris têm em comum com os atentados de 11 de setembro em Nova York? Ambas as cidades são símbolos de seus respectivos países e continentes. Paris é a capital cultural da Europa e Nova York, da América Norte. São cidades onde concepções de mundo se chocam o tempo todo. Por exemplo: no início do ano judeus anti e pró-ocupação da Palestina entraram em confronto na Times Square. Tanto em Paris quanto em Nova York há uma guerra cultural que está sendo amplificada pela atual crise econômica global. Já é de conhecimento até do mundo mineral que crises propiciam o surgimento do radicalismo ideológico, seja ele de cunho político ou religioso.

Quando Osama bin Laden orquestrou os atentados de 11 de setembro de 2001 às Torres Gêmeas de Nova York, ele quis atingir não só o sistema financeiro da cidade que possui o maior PIB do mundo. Ele quis também atacar seu multiculturalismo. Nova York é a cidade mais etnicamente diversa do mundo. É o município dos Estados Unidos com mais negros, latinos, judeus, muçulmanos, asiáticos e gays. Catolicismo, judaísmo e islã são as três religiões mais praticadas na cidade, respectivamente, enquanto cerca de 800 idiomas são falados localmente. Aceitar o desafio de ser um cidadão desse município implica num exercício diário de convivência e tolerância ao diferente, ao Outro da psicologia.

Na Cabul homogeneizada por radicais islâmicos, Nova York era vista como o Outro que deveria ser atacado. Para os radicais – aqueles que recusam a interpretação do Outro para os fenômenos sócio-políticos e sobrenaturais – conviver com o Outro implica em aceitar e até mesmo endossar sua ideologia. Em seus vídeos, bin Laden afirmava que os Estados Unidos foram punidos com os atentados de 11 de setembro devido à "corrupção moral" de seus cidadãos. Nem mesmo a existência de uma mesquita no World Trade Center poupou a destruição do edifício. Na visão dos radicais islâmicos, se um muçulmano aceita se expor ao "estilo de vida degradante" dos americanos, é tão infiel quanto eles.

Os vídeos de Osama bin Laden pouco se diferenciam dos vídeos caseiros que viraram febre nos grupos de WhatsApp administrados por membros da direita raivosa do Brasil. Tudo começou com Olavo de Carvalho, um expert em teorias da conspiração – como a predominância do "marxismo cultural" nas universidades brasileiras ou a produção de refrigerantes a partir de fetos abortados – que denunciava para seus seguidores a necessidade de se combater as ideias progressistas na sociedade brasileira. Estes, por sua vez, entraram na onda de seu mestre e agora gravam vídeos pedindo do assassinato da presidenta Dilma Rousseff à aniquilação dos membros do Partido dos Trabalhadores, em vídeos que orgulhariam ao próprio bin Laden.

Paris, assim como Nova York, é uma cidade muito heterogênea, embora em escala um pouco menor. A capital francesa abriga diversas comunidades de estrangeiros, sobretudo das ex-colônias francesas na África. Cerca de 20% dos parisienses nasceram fora da França, segundo dados do censo de 2011. É uma cidade tão etnicamente diversa ao ponto de que o policial assassinado pelos terroristas em fuga que haviam acabado de atacar a sede do semanário Charlie Hebdo era muçulmano. Só que, ao contrário de Nova York, a atual crise econômica castiga mais duramente a capital da França. É aí que a narrativa de eliminação do Outro, que estaria impedindo a sociedade de prosperar, seja ele muçulmano, judeu, socialista ou ateu, ganha força.

No começo do ano, presenciamos ataques de franceses de origem muçulmana que não foram integrados à sociedade local e acabaram sendo atraídos pelo discurso radical, que nega a coexistência com o diferente e aponta-o como um empecilho à felicidade pessoal. O Outro que estaria impedindo a prosperidade dos muçulmanos na França era composto pelos ateus (chargistas do Charlie Hebdo) e pelos judeus (comerciantes do mercado kosher de Porte de Vincennes). Agora, os ataques foram organizados por uma entidade externa, o Estado Islâmico, assumindo um discurso parecido ao da al-Qaeda quando dos atentados de 11 de setembro. Paris foi descrita pelos terroristas como sendo "a capital da abominação e da perversão da Europa".

Os ataques em Paris (13/11/2015) e Nova York (11/09/2001) têm em comum o fato de que ambos representam ataques à heterogeneidade. Foram orquestrados por mentes que não aceitam a ideia de viver num mundo onde as culturas coexistam pacificamente, respeitando umas às outras. Não é à toa que o Facebook – que facilmente nos divide em grupos: democratas e republicanos, petistas e tucanos, crentes e não-crentes, reacionários e revolucionários, etc. – seja uma ferramenta tão eficaz para o Estado Islâmico recrutar novos soldados. Dividimo-nos em grupos, recebemos informações filtradas segundo nossa visão de mundo e nos tornamos cada vez mais intolerantes ao pensamento divergente. É uma ágora de pombos enxadristas.

Presenciamos o começo do ataque ao multiculturalismo (por grupos internos) também aqui no Brasil, em nossa metrópole mais heterogênea. Os haitianos foram eleitos por uma minoria que se julga prejudicada como o Outro que atrapalha o bem-estar da sociedade. Eles estariam vindo ao Brasil para "roubar os empregos" dos brasileiros e, assim sendo, precisam ser eliminados. Há poucos meses, refugiados haitianos foram atacados na porta de uma igreja em São Paulo. Apenas mais um pequeno exemplo de que o grande conflito do mundo contemporâneo é saber lidar com sua diversidade cultural. Enquanto não aprendermos a aceitar uns aos outros, cidades que simbolizam o multiculturalismo continuarão sendo vítimas de ataques.

sábado, 14 de novembro de 2015

Palavras, meu tormento

Durante três anos não escrevi quase nada. Achava que a vida limitava-se a ser um bom marido, embora eu tenha sido péssimo nisso também. Não que eu não escrevesse. Escrevi muita asneira – mas muita mesmo – no Facebook, rede social que, graças a Deus, se tona cada dia mais obsoleta em minha vida. Nada do que eu escrevia ali vinha do fundo da minha alma. Eram só palavras. De ódio, de revolta, de amor, de torcida, de intrigas. Nada muito profundo. Eram palavras que saíam das minhas tripas e não do meu cérebro.

Agora, súbita e inexplicavelmente, as palavras voltaram a me envolver, cheias de significados, de sentimentos e de vida. Não que eu tenha feito mais leituras desde então. É feio admitir isso, mas meu nível de leitura continua o mesmo. Mas creio que sou um escritor empírico. Tenho vontade de escrever sobre coisas que me tocam e que transformam minha vida – para o bem e para o mal. E tenho encontrado um bocado suficiente de situações assim nesse longo ano de 2015.

Escrevo contos, romances e novelas no interminável diálogo que mantenho comigo mesmo no Whatsapp. Entretanto, um gênero que voltou para mim foi o que justamente me dava mais prazer de compor: a poesia. A inspiração vem de praticamente qualquer coisa que me move, sobretudo da música. Um músico ouve uma canção e se prende aos acordes, um cantor à voz e, um escritor, às palavras. Às vezes uma palavra cantada – em qualquer um dos três idiomas que eu domino – fica fixada na minha mente de tal forma que eu preciso fazer algo com ela.

Já foi preciso acordar de madrugada, como estou fazendo agora, pegar o caderno velho – o caderno é para deixar o pensamento organizado, mas até saco de pão já serviu – e escrever nele, organizar o pensamento para que eu possa enfim dormir. Dito isso, gostaria que vocês vivessem minhas palavras com carinho. Elas não são parte de um plano elaborado para conseguir "likes" (embora confesso que seria legal receber uma graninha do Google AdSense). Elas vêm do meu âmago. Saem de mim sem eu pedir ao ponto de me atormentarem à noite. É uma overdose criativa. Aproveitem.

domingo, 8 de novembro de 2015

Brasil, terra turbulenta

Hoje a blogosfera progressista repercutiu bastante (veja aqui) a redescoberta de um documentário muito comentado nos meios acadêmicos e que julgava-se perdido. Trata-se de Brazil, the troubled land (Brasil, terra turbulenta, numa tradução livre), dirigido e produzido pela jornalista estadunidense Helen Jean Rogers e transmitido em junho de 1961 pela rede de televisão americana ABC. Na película, de quase meia-hora de duração, a jornalista busca explicar as razões por trás do apelo do comunismo entre camponeses da Região Nordeste do Brasil no período imediatamente anterior ao golpe de Estado de 1964. Alinhado à política externa do breve governo Kennedy, defende uma reforma agrária dentro das estruturas capitalistas, o que encontrou a resistência da elite local.

Se na Europa Ocidental o avanço do comunismo foi contido a partir da união da burguesia local com a burguesia americana para a criação de um Estado de bem-estar social que se tratava de uma tentativa de aplacar os movimentos revolucionários a partir de concessões da plutocracia à classe trabalhadora, na América Latina os movimentos revolucionários foram contidos basicamente através da força. No momento em que o documentário foi produzido, no entanto, o governo de John F. Kennedy, eleito com a bandeira de conter o comunismo e melhorar a qualidade de vida de seu povo, debatia se a melhor maneira de conter movimentos como os de Che Guevara no continente americano era recorrer ao incentivo ao desenvolvimento ou às armas.


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Captura de tela do documentário.
Brasil, terra turbulenta acompanha o cotidiano dos camponeses que se organizavam ao redor das Ligas Camponesas lideradas por Francisco Julião (descrito como "o mais importante líder camponês da América Latina") no estado do Pernambuco. Mais do que simplesmente demonizar o movimento, caracterizando-o como uma organização comunista que deve ser extirpada da sociedade, tenta explicar didaticamente sua razão de ser, que possui fortes raízes na herança histórica brasileira, marcada por profundas desigualdades entre quem tem e quem produz as riquezas. O Brasil, "a terra do samba", é descrito como "fabulosamente rico... para alguns". O Recife, cidade construída e mantida pelo açúcar, por exemplo, é "desconhecida pelo homem que cultiva a cana-de-açúcar".

Numa reunião na sede do Partido Socialista Brasileiro (muito diferente do atual PSB), o então deputado estadual Julião dá conselhos legais para os camponeses que tinham problemas com seus arrendadores ao mesmo tempo em que doutrinava-os para suas teses marxistas. As Ligas Camponesas assumiam o papel que deveria ser de defensores públicos e, de uma maneira geral, do Estado, executando "ações simples que demonstram fé nos 20 milhões [de camponeses]". Analfabetos em sua maioria, ganhando US$ 0,25 por dia e morando em com suas famílias inteiras em pequenos casebres de barro, os camponeses se vêem seduzidos por um discurso que lhes promete liberdade e educação para seus filhos. 

Severino, um dos camponeses acompanhados pela jornalista estadunidense, têm seis filhos, um dos quais teve paralisia nas pernas devido à desnutrição. Seus filhos "vivem num mundo onde há apenas um brinquedo" e apenas um deles frequentava a escola, o que ajuda a perpetuar o regime de semiescravidão em que vivia, visto que o direito ao voto era garantido apenas aos cidadãos alfabetizados. Segundo seu contrato, Severino tem o direito de usar uma porção de terra, "não a melhor", para cultivar milho e feijão. Sua pobreza contrasta com a riqueza de seu arrendador, o ex-governador Constâncio Maranhão, que possui uma luxosa casa na fazenda. Sua família explora as terras pernambucanas há 400 anos.

O "senhor" de Severino (palavras do documentário) usa um anel de 15 quilates de ouro e diz que seus arrendatários são felizes, ricos e gordos. "O 38 é a lei aqui, ele decide tudo. Não é a polícia nem a lei, mas a minha arma", diz sorridente o ex-governador do estado enquanto aponta sua arma para o cinegrafista e atira ao redor dele, numa tentativa patética de demonstrar quem é o macho aos que ousam vir do norte questionar-lhe sobre as injustiças que ele perpetua. "As coisas sempre foram assim, meus camponeses são preguiçosos e se alguém tentar vir aqui e organizá-los, eu o mato". Parece um discurso bastante atual, não é mesmo?

Enquanto isso, na casa de Severino, um dos 20 milhões de brasileiros que viviam sob o fantasma da fome, a família se alimenta de uma única refeição diária composta de arroz, milho e feijão. As crianças não tomam leite e nunca comeram carne. Jamais sentiram o gosto dessa fonte de proteína. "A terra que faz crescer açúcar não pode ser desperdiçada com comida", conclui o narrador. Severino, em discussão com a esposa, diz que não aguenta mais esperar as coisas melhorarem. Afinal de contas, "US$ 0,25 por dia não é o caminho para a riqueza nem para um pedaço de terra". Mas, para os que tiveram o azar de nascerem Severinos e não Costâncios tem sido assim desde o dias da escravidão.

Na loteria genética do "retrógrado Nordeste", apenas 5% do povo detinha 65% da terra (se brincar esse número continua o mesmo ainda hoje, mais de cinco décadas após a exibição do documentário). Os camponeses, em sua maioria analfabetos, têm na figura do trovador um importante comunicador. "Os violeiros são parte importante da vida camponesa, uma instituição tão velha quanto a terra", diz o narrador. No início dos anos 1960, no entanto, as canções mudaram. Agora eles cantam, influenciados por Julião, sobre a importância do proletariado em receber um salário decente e a necessidade de se fazer uma revolução castrista no Nordeste.

Ao voltar do intervalo, o documentário tenta desmerecer as ações de Julião e mostra os projetos do governo Jango para o Nordeste. "Bons planos, excelentes planos para industrialização e reforma agrária" que, devido ao assalto dos militares ao poder em 1964, jamais foram concretizados. Por trás da lenta implementação desses planos estava um "brilhante economista", o jovem Celso Furtado, então presidente da Sudene. a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste. Visivelmente incomodado ao ser indagado por Rogers sobre Julião, ele descreve-o como um político que descobriu que as Ligas Camponesas eram importantes veículos para se obter ganhos políticos.

Em seguida, o documentário caracteriza Julião como "um homem ambicioso", cujo poder repousava nos camponeses e seu inegável descontentamento. "De todos os políticos do Brasil, ele é o que passa mais tem com os camponeses que não podem votar". Para Rogers, ele organiza a "vasta massa analfabeta para que consigam o direito de votar e obter o poder com sua maioria política, tornando-se senador, governador do estado ou presidente da nação". Sua retórica é cínica, segundo a documentarista, pois não oferece projetos específicos para o futuro dos camponeses. "Seu chamamento às armas ecoa mais forte entre os camponeses do que os planos construtivos, mas não vistos do governo".

O documentário se mostra preocupado com a influência de um líder anticapitalista e antiamericanista numa "região tão grande como o meio-oeste", que promete o paraíso comunista cubano e chinês aos camponeses. Isso dá esperança às pessoas "cujos problemas vitais são os mais básicos": alimentar-se hoje e amanhã. O contato de Julião com os camponeses é uma das coisas mais mostradas pelo documentário, talvez como forma de alertar ao público sobre a doutrinação marxista do político pernambucano. Em determinado momento, ele se aproxima de um camponês que lhe diz: "A aposentadoria do camponês é o cemitério". Uma das garantias da Constituição de 1988 foi justamente a aposentadoria rural, tão desmerecida por juristas de direita.

No terceiro e último bloco são exibidos mais alguns trechos da entrevista de Rogers com Furtado. "Se eu não acreditasse nisso [solução pacífica e democrática para o problema da terra], não estaria aqui", diz o entrevistado. Indagado se os Estados Unidos poderia ajudar a resolver a questão fundiária brasileira, ele responde: "Esse é um problema nosso. Se não estivermos preparados para fazer o sacrifício para uma solução, qualquer ajuda será inútil", diz. E completa: "Se as coisas não mudarem, podemos ter uma situação explosiva em dois anos". Celso Furtado errou a data do golpe de Estado de 1964 por um apenas ano. 

O documentário, otimista, não acreditava numa solução explosiva, pois "o Brasil não é uma terra violenta". Prevê o êxodo rural desordenado para o Rio e São Paulo, onde há "fábricas e trabalho", e indaga: "Pode um homem viver de promessas quando sua criança precisa de comida?".  Os Severinos da América Latina foram excluídos da marcha de 3.000 anos da civilização ocidental, conclui o documentário, antes de defender que o antídoto para as promessas comunistas é o resultado de ações governamentais. "Os planos do governo para a reforma agrária e o desenvolvimento devem se tornar reais, o primeiro passo deve ser dele".


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O documentário defende uma solução democrática ao conflito rural, que seria executada pelo governo trabalhista de João Goulart. No entanto, num cenário de radicalizações à esquerda e à direita, essa solução falhou. Um dos entrevistados no documentário, o economista Celso Furtado, mostrava-se confiante nesse governo e nessa solução. Ele próprio, entretanto, demonstra preocupação com a radicalização presente na sociedade brasileira de então (qualquer semelhança com a atual não é mera coincidência): de um lado, as elites se recusavam a conceder privilégios às camadas desfavorecidas e, do outro, os pobres, cada vez mais cientes de sua condição, não aceitavam mais serem explorados. E foi essa a receita que levou ao golpe civil-militar de 1964 e que alimenta a crise atual.

Celso Furtado e demais figuras do governo Jango esperavam que, em algum momento, a plutocracia brasileira cedesse. No entanto, a elite brasileira não está acostumada a fazer sacrifícios. Nem mesmo para garantir a paz social. Ou seja, para garantir que seus filhos possam andar despreocupados pelos calçadões das praias. Nos países do norte, por outro lado, uma parcela da elite se recusa a acreditar na militarização como resposta para os problemas sociais. Opõe-se tanto ao comunismo quanto às desigualdades, defendendo o que se convencionou chamar de democracia radical. No Brasil, por outro lado, em pleno 2015 a defesa de uma sociedade menos desigual ainda é confundida com comunismo, às vésperas do 24° aniversário de queda do comunismo soviético.

Assim como Além do Cidadão Kane, o documentário foi obviamente banido no Brasil. A nascente televisão, feita por e para a elite, não tinha o menor interesse em educar os brasileiros sobre as raízes dos problemas socioeconômicos de nossa nação. Em 1964, o Ministério da Justiça baixou decreto censurando oficialmente o documentário. Apesar de seu tom claramente pró-capitalista e pró-americanista, o documentário tocava em feridas ainda hoje abertas de nossa sociedade e poderia trazer problemas para quem achava (e ainda acha) que os problemas sociais se resolvem com a presença de mais policiais na rua.

É salutar que o documentário tenha reaparecido nesse ano de 2015. Novamente o Brasil se encontra como uma terra turbulenta. Esgotadas as possibilidades de ambos ricos e pobres lucrarem com o lulismo, as pessoas novamente se voltam para soluções fáceis para problemas complexos. As evidências históricas - e o documentário da ABC se consiste como tal - existem para que não cometamos os mesmos erros do passado. Nossos avós podem argumentar que foram ignorantes ao apoiar um golpe de Estado em 1964. E nós, argumentaremos o quê? A abundância informativa proporcionada pela internet não nos permite adotarmos posturas ignorantes quanto aos graves problemas de nosso país. 


O documentário foi doado pelo arquivo de Hugh Hefner, o fundador da revista Playboy, à Escola de Artes Cinematográficas da Universidade do Sul da Califórnia e está disponível no canal da instituição no portal de compartilhamento de vídeos Vimeo. Infelizmente está disponível apenas em inglês sem legendas.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Falácias não ganham debate

Quando Nelson Motta escreveu um texto ofensivo e misógino para atacar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e sua esposa dona Marisa Letícia, o editor do Diário do Centro do Mundo, Kiko Nogueira, escreveu um texto apelando à razão do ex-produtor musical, indagando-lhe se ele gostaria que suas ex-esposas e filhas fossem tratadas da mesma forma. No entanto, desde o ano passado, naquela que vem sendo a eleição mais longa da história, a razão deixou de nortear o debate político. Não basta derrotar o Partido dos Trabalhadores nas urnas. É preciso eliminá-lo, simbólica e às vezes até mesmo materialmente, como os ataques a militantes e sedes do partido têm demonstrado. Assim sendo, o dito colunista usou sua página no Facebook para escrever um texto tão cheio de falácias que deveria ser estudado nas aulas de Lógica como exemplo de que argumentos não empregar num debate. Diz o seguinte:
Nenhuma de minhas mulheres foi casada com um homem como Lula e tem filhos como os dele. Minhas filhas são muito mais inteligentes e educadas que os de Lula e Marisa – e nunca fizeram parte de nenhuma organização criminosa.

E quem imagina que dona Marisa tem um milésimo do talento de Marilia Pêra e fez mais pelo país do que ela? Só um fanático lulista, cada vez mais perto da cadeia. Que vergonha.

Que tal analisarmos o texto seguindo a ciência grega da lógica, ou seja, o estudo da validade dos argumentos, sem entrar na questão partidária? Vamos lá:
"Nenhuma de minhas mulheres foi casada com um homem como Lula e tem filhos como os dele. Minhas filhas são muito mais inteligentes e educadas que os de Lula e Marisa – e nunca fizeram parte de nenhuma organização criminosa."

Nesse pequeno trecho de texto, Nelson Motta incorre em falácias típicas do mau debatedor. Primeiro tenta desqualificar o adversário, imputando-lhe a pecha de "criminoso", embora Lula jamais tenha sido condenado na justiça. Trata-se do argumento ad hominem. Tenta-se provar seu ponto de vista através da desqualificação do outro sem embasamento para tal desqualificação. Em seguida, ele diz "minhas filhas são mais inteligentes e educadas que os de Lula e Marisa". Segundo quem? Ao contrário de fatores como escolarização e renda, inteligência é uma questão difícil de ser mensurada. "Tem muito diplomado que é pior do que selvagem", como bem lembra Clementina de Jesus. Esse parece ser o caso de Nelson Motta, que julga suas filhas como sendo melhores do que as dos outros pelo simples fato delas terem mais educação formal do que os filhos dos outros. Quanto a fazer parte de uma organização criminosa, pode-se dizer o mesmo do próprio Nelson Motta, afinal ele trabalha na Rede Globo, organização que deve nada menos que 615 milhões de reais à Receita Federal, incorrendo do crime de evasão de divisas fiscais. Seria Nelson Motta um criminoso por estar envolvido com uma organização criminosa? Segundo a lógica do próprio, sim. Isso é o que os gregos chamavam de explicação superficial.

"E quem imagina que dona Marisa tem um milésimo do talento de Marilia Pêra e fez mais pelo país do que ela? Só um fanático lulista, cada vez mais perto da cadeia. Que vergonha."

Essa é a parte mais risível do texto. Juro que gargalhei ao lê-la. Aqui, Nelson Motta vale-se da famosa falácia de autoridade. Em relação à Marília Pêra! Ora, poupe-me! Por mais que Marília Pêra seja uma grande atriz, celebrada no Brasil e no exterior, ela jamais foi mulher de político para poder ser comparada com dona Marisa Letícia. E, assim como a inteligência, o talento é uma coisa relativa. Marília Pêra possui um grande talento para as artes cênicas e dona Marisa Letícia possui um excelente talento para jardinagem e afazeres domésticos. Isso a torna uma pessoa menos especial com quem é injustamente comparada? Na cabeça do misógino Motta, que parece pensar em preto-e-branco, bem-e-mal, nós-e-eles, sim. Por fim, novamente o colunista se vale de um argumento ad hominem, desqualificando todos que pensam de maneira diferente dele de "fanáticos". Aqui, novamente há uma explicação superficial. Quem está cada vez mais perto da cadeia? Kiko Nogueira? Duvido que o pobre jornalista tenha 1/3 da renda do ex-presidente. Incorre-se, além disso, da falácia da associação. Funciona assim: 1) Alguns petistas são ladrões e estão perto de serem presos. 2) Kiko Nogueira é petista (pelo menos na cabeça de Motta). 3) Logo, Kiko Nogueira é ladrão e está perto de ser preso. Cai muito isso em concurso. Duvido que Nelson Motta conseguiria acertar uma questão dessas.

Por fim, há o que é bastante comum nos discursos políticos de hoje em dia: o apelo à moralidade: "Que vergonha". Não é vergonhoso que Kiko Nogueira expresse sua opinião. Vergonhoso é o estado atual da imprensa brasileira, onde basta atacar um certo Luiz Inácio da Silva e um certo Partido dos Trabalhadores para se ganhar espaço nos jornais. Vergonhoso é atacar pessoas na rua por elas estarem usando vermelho. Vergonhoso é o ódio de classes sendo usado como argumento contra Lula e a misoginia sendo usado como argumento contra Dilma. Vergonhoso é que as pessoas não possam mais expressar livremente suas opiniões por medo de serem vítimas da falácia da associação. E mais: vergonhoso é que a direita tenha renunciado à lógica e que pessoas que acham que falácias ganham debates sejam consideradas formadoras de opinião. Como bem afirmou Ciro Gomes em sua entrevista à TV Brasil, a direita perdeu o pudor. Mas não foi só isso. Perdeu a lógica também. A causa disso deve ser a irritação por estar todos esses anos fora dos círculos do poder.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Grande e suas pequenas lições contra o preconceito



Se você é um fã de Ariana Grande (ou mesmo que não seja) deve ter provavelmente visto um vídeo em que a cantora de "Focus" questiona o privilégio de homens brancos durante uma "entrevista" à estação de rádio Power 106.

"Vocês precisam de um esclarecimento quanto à igualdade aqui".
Grande passou a maior parte de seu tempo no programa esclarecendo aos entrevistadores (que presumo que vivem no ano de 2015) que as garotas pensam em coisas além de sua maquiagem e que os garotos podem usar o emoji de unicórnio mesmo sem serem afeminados. 

E embora aplaudimos isso, uma pequena escavação mostra que a cantora de pop não defende a igualdade de gêneros, sexualidades e identidades apenas quando ela está tentando vender discos; Grande vem servindo pequenas lições de aceitação desde o início da semana.

Domingo, 1/11


No dia após o Halloween, Grande postou no Instagram uma foto dela com três amigos vestindo fantasias da noite anterior. A foto trazia o amigo de Grande e criador da página @SheHasHadIt, Jarvis Derrell, usando um dos vestidos do videoclipe de "Focus".

Uma comentarista decidiu usar a oportunidade para filosofar sobre uma questão de raça e sexualidade, afirmando:

Por que tantos caras negros estão virando viado?! - @lolalana_

Como resposta, Grande postou uma foto com a resposta de Derell ao julgamento maldoso de sua fantasia:
"Sempre tive orgulho de ser um homem negro gay toda minha vida. E, para ser sincero, superar pessoas ignorantes como ele em minha vida é algo do qual tenho muito, muito orgulho! Geralmente não dou ouvidos para idiotas como essa, mas ultimamente tem saído de controle e, como um sobrevivente de bullying, ignorância e assédio, não tolerarei isso. E não só por mim, mas por qualquer um que tem que lidar com o ódio, ódio por serem quem eles são e querem ser. Ah não! Brilhem crianças! Vocês são perfeitos e fortes do jeito que são"

Ao lado dos comentários de Derrell, Grande acrescentou: 
Para todos os humanos, amigos, namorados lidando com o ódio, "brilhem"!! Para todos que estão batalhando contra a homofobia, o racismo, o sexismo, o ageísmo, a misoginia ou qualquer outra coisa que te faz sentir desconfortável ou como se você não pode ser você mesmo: somos todos iguais e deveríamos ser CELEBRADOS PELAS NOSSAS DIFERENÇAS E PELAS COISAS QUE NOS TORNA QUEM NÓS SOMOS. O quanto antes percebemos isso, o quanto antes poderemos ficar livre dessa IGNORÂNCIA FEIA. Obrigado.
Segunda-feira, 2/11 


Na segunda-feira, algum nojento apareceu nas menções a Ariana Grande no Twitter dizendo que ele preferia a "curvilínea" Ariel Winter, atriz de Modern Family, à Ariana "palito".

Embora pudesse ter ignorado o troll, Grande aproveitou a oportunidade para falar sobre body shaming:

"Tweets, comentários, declarações assim não são legais.Sobre qualquer um! Vivemos numa época em que as pessoas fazem com que seja impossível para as mulheres, os homens, qualquer um se aceitar do jeito que são. A diversidade é sexy! Amar a si mesmo é sexy! Sabe o que não é sexy? Misoginia, objetificação, rotulação, comparações e body shaming! Falar dos corpos das pessoas como se eles estivessem numa vitrine, esperando sua aprovação / opinião. Eles não estão! Celebre-se! Celebre os outros. As coisas que nos tornam diferentes uns dos outros nos fazem bonitos."

A cantora incluiu a seguinte mensagem para seus seguidores:

Lá vamos nós de novo... Tenho certeza que não sou a única se sentindo assim hoje! Caso você precisa de um lembrete: você é lindo ✨ É um belo dia para ser você mesmo!


Terça-feira, 3/11

O bem-merecido reconhecimento que Grande está recebendo é pelo massacre que ela fez nesses apresentadores de rádio misóginos. Aqui estão os principais momentos:

Ariana é perguntada o que escolheria se tivesse que escolher entre sua maquiagem e seu celular:

"É isso que você acha que as mulheres têm dificuldade em escolher?"
Ariana esclarece que não é viciada em seu celular, quando então os DJs dizem às suas ouvintes para aprender com a cantora. É então que Ariana esclarece-os de que a dependência ao celular não está relacionada ao gênero do usuário:

- Garotas, aprendam! Escutem e aprendam!
- Garotos, aprendam!
Quando indagada sobre os novos emojis, Ariana diz que o unicórnio é um de seus favoritos. Os DJs reafirmam sua masculinidade dizendo que eles nem haviam reparado nisso e que usam apenas os emojis de taco e dedo do meio. Que machões, caras! Ariana responde:

- Muitos garotos usam o unicórnio
-Sei, "garotos".
Ariana, cujo irmão é gay, se irrita com a insinuação:

"Vocês precisam de um esclarecimento quanto à igualdade aqui".
Quando os DJs insistem que "homens de verdade" não usam o emoji de unicórnio, Ariana ameaça encerrar a entrevista:

"Mudei de ideia, não quero mais ficar aqui na Power 106"
Indagada sobre o que gostaria que acabasse, Ariana dá uma indireta aos dois DJs:

"Julgamento em geral. Intolerância, maldade, preconceito, misoginia, racismo, sexismo."

É isso aí, Ari! Continue brigando a boa briga.