terça-feira, 8 de março de 2016

"Os judeus elegeram Hitler"

Adoro um título provocativo. Este, no entanto, aparece entre aspas por se tratar da fabulação mais incrível que eu já ouvi em toda a minha breve existência. No final do ano passado o professor de História da América na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Leandro Karnal escreveu que jamais imaginou que ouviria um impropério tão grande quanto aquele que ouviu no ano da Primavera Amarela, segundo o qual o nazismo é uma ideologia de esquerda. Tal teoria, marginal até o surgimento do Tea Party nos Estados Unidos e amplamente difundida através das redes sociais, já é antiga conhecida minha. Desde os tempos de Orkut ouço, ou melhor, leio isso. O que realmente me chocou na versão atual do Festival de Besteiras que Assola o País foi ouvir que os judeus elegeram Adolf Hitler para o cargo de chanceler da Alemanha. Esta teoria encontra eco em fóruns de discussões de "orgulho branco" (me recuso a ligar os links aqui e sujar meu blog com literatura pseudo-científica), que tentam responsabilizar os judeus, de uma forma ou de outra, pelo seu próprio genocídio.

Que a neodireita brasileira não presta atenção alguma nas aulas de História do Ensino Médio já tornou-se uma constatação inegável até mesmo para a direita erudita, envergonhada das faixas erguidas pelos camisas-amarelas nos protestos anti-PT. Entretanto, reimaginar acontecimentos históricos eleva a histeria para o nível do delírio; é como querer provar que 2 + 2 = 5. A despeito do que os membros do Partido orwelliano (que cresce como nunca antes no Brasil) possam pensar, o que já aconteceu – e, portanto, já foi historicamente testado e provado – é uma realidade concreta que não pode ser mais passível de modificações. A opinião pessoal do historiador é nula quando os fatos históricos são documentados. Pode-se divergir, por exemplo, do número total de mortos nos campos de concentração, mas o que os registros históricos da Alemanha Nazista mostram são campanhas de internação compulsória das populações vistas como inferiores, assim como fotos e vídeos feitos pelos Aliados mostram milhares de corpos empilhados em Auschwitz e demais abatedouros de seres humanos.

No Hospital Judeu de Berlim, onde nem todos os pacientes eram
judeus, os sociais democratas tiveram 44% dos votos em 1932
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Que parte significativa da classe trabalhadora brasileira vota contra seus próprios interesses já é de conhecimento até do mundo mineral. Sim, Dilma traiu os operários que reelegeram-na. Não nego isso. Mas trocar o PT pelo Jair Messias Bolsonaro (esse é o nome dele) não me parece a atitude mais sensata a ser tomada pelos membros da classe oprimida. Mas isso é recorrente na História brasileira. Antes mesmo do PT virar a fonte de todo o mal e o bode expiatório da corrupção na política, o falecido cantor e compositor Tim Maia já havia cunhado um dos grandes aforismos nacionais: "o Brasil é o único país do mundo em que prostituta apaixona, cafetão sente ciúme, traficante é viciado e pobre é de direita". Parece-me que inventar (ainda mais uma) fábula sobre os judeus ajuda os brasileiros pobres a racionalizarem sua escolha suicida pela extrema-direita. Acreditando nessa fábula podem votar em quem quer exterminá-los sem culpa ou remorso. Afinal de contas, até mesmo os judeus teriam feito isso! Só que o fato é que eles não fizeram. É o que dizem pesquisadores que ouviram sobreviventes do Holocausto e cruzaram dados censitários e eleitorais da Alemanha pré-Hitler.

Segundo The Jews in Weimar Germany, obra de Donald L. Niewyk, professor de História contemporânea da Europa na Universidade Metodista do Sul (EUA), "com o desaparecimento de quase todos os partidos moderados de classe média durante a Grande Depressão, os votos (e o dinheiro) dos judeus ficaram disponíveis. Os principais competidores eram os partidos de Centro e Social Democrata, ambos com histórico de apoio ao sistema republicano e de denúncia da judeofobia". Em 1932, um ano antes de Hitler tomar o controle da Alemanha, o Partido de Centro, de orientação católica, fez campanha para conseguir o voto dos judeus, afirmando não se opor à educação religiosa num cenário cada vez mais laico. Segundo Niewyk, "a resposta foi positiva num amplo espectro da opinião judaica". O principal jornal da comunidade judaica, Israelitisches Familienblatt (Jornal da Família Israelita), fez editoriais a favor do partido, assim como organizações sionistas. No entanto, "a ligação do Partido de Centro com sionistas proeminentes pode ter prejudicado suas chances com os judeus de esquerda, que eram bem mais numerosos", alerta o pesquisador.

Sim, os judeus alemães eram de esquerda, mas não eram comunistas. Outra ideia amplamente divulgada nos fóruns de "orgulho branco" é que os judeus teriam causado o colapso da Alemanha ao votarem em massa no Partido Comunista, o que também não é verdade. "Os adultos judeus moveram-se para a esquerda moderada durante os últimos anos da República de Weimar", escreve Niewyk, que em seguida afirma que os jovens judeus foram atraídos pelo Partido Comunista. A reação dos grupos sionistas foi forte e orquestrada. Começaram a alertar os jovens para o perigo da "assimilação vermelha" e para os horrores cometidos contra os judeus por Josef Stálin – à época o líder soviético apostava numa campanha antissemita para perseguir o dissidente Léon Trotsky e seus seguidores. O editor do Israelitisches Familienblatt, Esriel Carlebach, foi vítima de uma tentativa de assassinato em 1933 após escrever uma série de artigos críticos ao tratamento dispensado pela URSS aos judeus; ele havia visitado o país no verão de 1932. Embora jamais tenha ficado claro se o perpetrador do ataque foi um comunista ou um nazista, este fato acabou afastando os eleitores judeus dos comunistas.

Pôster associando o comunismo ao judaísmo.
Niewyk nota que foi a esquerda moderada a responsável por eleger e nomear os primeiros funcionários públicos judeus. Pouco antes do colapso da República de Weimar os comunistas deixaram de apresentar candidatos judeus ao Parlamento. Foi uma forma que encontraram de contradizer a propaganda nazista, segundo a qual os judeus haviam se aliado aos bolcheviques para tomar o controle do mundo. Vendo-se preteridos pela extrema-esquerda e perseguidos pela extrema-direita, os judeus encontraram no Partido Social Democrata seu porto seguro. "O Partido Social Democrata, prejudicado perenemente [entre a esquerda] por cultivar uma imagem mais radical do que suas políticas,  conseguia o apoio dos judeus ao manter o proletariado relativamente livre do antissemitismo e por combater os nazistas mais militantemente do que qualquer outro", afirma Niewyk. Ele nota que o jornal ortodoxo Der Israelit (O Israelita), que até 1930 condenava o socialismo por causa de sua ligação com o ateísmo, aplacou o tom de suas críticas e, em 1932, recomendou voto no Partido Social Democrata ou no Partido de Centro.

Outro dado interessante é uma pesquisa feita por Arnold Paucker com cerca de cem sobreviventes judeus do Holocausto, a maioria dos quais haviam sido apoiadores de classe média do Partido Democrático até o declínio deste em 1930. Os resultados sugerem que, após 1930, cerca de 62% dos eleitores judeus votaram no Partido Social Democrata, enquanto 19% votaram no Partido do Estado (ex-Partido Democrático) e 5% no Partido de Centro. O pesquisador alerta que não conseguiu localizar um grande contingente de judeus da Bavária e que os habitantes de fé judaica deste estado conservador podem ter votado em massa no Partido do Povo da Bavária tanto antes quanto após o pleito de 1930. Niewyk, interpretando os dados da pesquisa do colega historiador, afirma que a falta de judeus de classe alta na pesquisa pode indicar que o católico Partido de Centro teve na verdade mais votos entre os judeus do que Paucker indicou. Isto nos leva até os dados de outro pesquisador, Peter Pulzer, que cruzou dados censitários e eleitorais. Ele confirma a preferência dos judeus pelo Partido Democrático até 1930 e afirma que os judeus ortodoxos e de áreas rurais preferiam o Partido do Povo da Bavária e o Partido de Centro durante os anos 1920. 

Pulzer analisou os resultados eleitorais de dezenove distritos onde os judeus constituíam uma maioria significativa segundo o Censo alemão – em especial nas cidades de Berlim, Frankfurt-am-Main e Hamburgo. Ele afirma, com a ressalva de que é difícil separar o votos dos judeus e dos gentios, que a minoria etno-religiosa continuou apoiando o Partido do Estado nas eleições locais, mas, ameaçados pela ascensão de um partido claramente antissemita ao poder central, passaram a apoiar o Partido de Centro e o Partido Social Democrata nas eleições federais. Niewyk escreve que, conforme indica Pulzer, a resposta dos judeus ao declínio da democracia e à ascensão do nazismo foi qualquer coisa menos irracional. Sim, eles subestimaram e interpretaram errado as ideias de Adolf Hitler, mas todo mundo na época também fez isso (muitos acreditavam que seus discursos antissemitas eram apenas retórica eleitoral). A título de curiosidade, vale notar a existência de uma Associação Alemã de Judeus Nacionalistas, que defendia a assimilação dos judeus pela cultura alemã. Posteriormente o grupo apoiou Adolf Hitler, mas sempre foi pouco significativo. Segundo a Wikipédia, tinha pouco mais de 3.500 membros num universo de 522.000 judeus (menos de 0,7% do total).

"Se ainda há quem imagine que os judeus alemães foram politicamente complacentes [com o nazismo], que fugiram para um mundo de fantasia onde o racionalismo iluminado e a simbiose perfeita reinavam, este livro deve convencê-los do contrário" – Niewyk, em resenha do livro de Pulzer.

De fato os judeus votaram em massa em Adolf Hitler – depois
que já estavam em Dachau.
É perfeitamente compreensível que alguns judeus tenham tentado assimilar a ideologia nazista como forma de escapar da perseguição oficial do Estado alemão. Uma matéria do jornal norte-americano The New York Times, datada de 20 de agosto de 1934, aponta isso. Com a morte do presidente Paul von Hindenburg no início daquele mês, Hitler realizou um plebiscito perguntando ao povo alemão se os cargos de presidente e chanceler deveriam ser unificados, o que lhe daria controle absoluto sobre o Estado alemão. "Cada opinião contrária foi suprimida", relata o correspondente do jornal, e Hitler foi sagrado führer da Alemanha com 90% dos votos. "Uma cédula continha a inscrição: 'como nada aconteceu comigo até agora, voto sim'. Estava assinada: 'não-ariano'." Não me parece o voto de um cidadão politizado e consciente, mas sim o voto de protesto irônico de um cidadão com tanto medo que sequer assinou a cédula. Os votos "sim" foram imensamente populares nas instituições judaicas. "Isso é explicável, é claro, pelo medo de repressão caso o resultado fosse diferente", diz o jornal, antes de afirmar que a maior votação de Hitler na Bavária havia sido no campo de concentração de Dachau.

Dito tudo isso, prefiro acreditar nas palavras dos professores Niewyk e Pulzer, assim como no correspondente do New York Times que esteve em Berlim para acompanhar a votação do plebiscito de 1934, do que em alguém que acredita em tudo aquilo que lê no Facebook. Numa época em que a comunicação se tornou extremamente rápida e eficiente, as palavras parecem sair da mente e se materializar na tela do computador sem reflexão alguma. O debate político agora se resume a 140 caracteres cheios de frases de efeito (as hashtags). Nesse cenário, explica-se porque um dado histórico falso é divulgado sem maiores questionamentos. É feio fazer a Glória Pires e assumir a falta de conhecimento em determinado assunto. Somos obrigados a opinar sobre tudo e, assim sendo, tornamo-nos especialistas em tudo sem sabermos absolutamente nada. Mas o problema é que é bem ofensivo dizer que milhões de judeus morreram porque eles mesmos teriam votado em Hitler como uma massa de manobra acéfala e suicida. Se é isso que desejam que os brasileiros façam, assumam. Não há necessidade de promover seu anseio às custas de 6 milhões de almas.

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