segunda-feira, 14 de março de 2016

A pobreza intelectual do Brasil

O Brasil não é um país que pode ser levado a sério. Aqui é possível um indivíduo chegar ao cargo de promotor do maior estado da nação sem saber quem foi o parceiro de Karl Marx na elaboração da obra O Manifesto do Partido Comunista, estudada por cientistas políticos em todo o planeta – e sem saber usar o Google também, aparentemente. Segundo o trio de promotores que pediu a prisão preventiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na última sexta-feira, o parceiro de Marx é Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que faleceu quando o teórico comunista tinha apenas 13 anos de idade. Embora Marx tivesse de fato sido hegeliano no começo de sua carreira, ele mais tarde abandonou a escola de pensamento do filósofo alemão mais popular de seu tempo, um idealista, para seguir o materialismo. A grosso modo o idealista julga que a realidade é abstrata, enquanto o materialista julga que ela é concreta.


Além de confundir Friedrich Engels com Hegel, os promotores referiram-se aos teóricos comunistas para fazer uma citação sem pé nem cabeça. Segundo eles, Lula envergonhá-los-ia por ter ascendido ao poder e praticado supostos malfeitos. Só que Marx considerava o processo democrático burguês viciado e incapaz de atender às demandas da classe operária. Segundo Vladimir Lênin em O Estado e a Revolução, "Marx compreendeu a essência da democracia capitalista esplendidamente quando (...) disse que aos oprimidos é permitido, de ano em ano, decidir em quais representantes específicos da classe opressora deverão ser eleitos para representá-los e reprimi-los no parlamento". Há, na esquerda, quem critique o PT por ter entrado no jogo da democracia burguesa, ou seja, por ter se deixado corromper pelo sistema viciado que desejava implodir. O PT agora faz parte desse sistema e dificilmente seira considerado por Marx como um instrumento da revolução operária.

Em outro momento a peça jurídica faz uma citação a Friedrich "Nietszche" – sim, Nietzsche é um nome difícil de escrever, mas é para isso que existe o Google! Os promotores tentam resumir a obra teórica de Assim Falou Zaratustra num pequeno parágrafo com o intuito de afirmarem que Lula deve ser investigado porque ele não está acima da lei – ao contrário do chato da propina, Aécio Neves. Nietzsche, assim como Marx, desprezava a democracia moderna. Ele também julgava que o conceito de igualdade era supervalorizado, sendo que alguns consideram sua obra precursora da eugenia. Em seu livro, Nietzsche apresenta o conceito de "super-homem" (Übermensch), o indivíduo ideal para ele. Trata-se de alguém que não segue os valores morais da maioria cristã, está acima do bem e do mal e não se deixa levar pelo comportamento de manada. Não conheço a obra do filósofo alemão em profundidade, apenas fiz uma pesquisa rápida na internet, o que aparentemente não ocorre no MP-SP.

Sim, Lula não é um "super-homem", como brilhantemente concluíram os autores da peça jurídica, mas ninguém também é, porque aquilo que Nietzsche apresenta em sua obra é um ideal e não algo concreto – falamos sobre isso no final do primeiro parágrafo. Além das liberdades filosóficas, os promotores pedem a prisão de Lula porque impressionantes 20 pessoas disseram que ele é o dono do apartamento do Guarujá. No entanto, não conseguem demonstrar, em momento algum, a ligação direta ou indireta de Lula com o imóvel. Não há prova de que ele seja o dono do local. É como o The New York Times publicou na manhã da mesma sexta-feira fatídica: "Não está claro quais são as acusações específicas" contra Lula. No Direito brasileiro, primeiro se acusa e depois se prova. Talvez se os promotores tivessem de fato lido "Nietszche", teriam aprendido que seguir a manada que quer o justiçamento de Lula não faz parte do comportamento ideal do ser humano.

O que mais me impressionou nessa história toda foi que três promotores escreveram essa aberração jurídica – que já foi desmerecida até mesmo pelo garoto-propaganda do golpe, Kim Kataguiri, que deve conhecer tanto de Direito quanto eu. Será que eles não tiveram aula de Ciência Política ou de Filosofia na faculdade? O concurso que prestaram para ingressar no MP-SP não trazia questões dessas matérias? Há um bom tempo venho sendo crítico das faculdades de Direito do Brasil, que formam analfabetos funcionais que reproduzem o senso comum – e, portanto, as injustiças sociais que prevalecem desde sempre –, mas na última sexta-feira tive a certeza de que o modelo de ensino do Direito no país precisa mudar. Se quisermos ser um país sério, precisamos de acusadores, defensores e julgadores, ou seja, operadores de Direito, sérios. Não dá para continuar delegando funções essenciais para o funcionamento da democracia para qualquer um que decora uma apostila e passa numa prova. 

Talvez de todas as pobrezas que afligem o Brasil, a pobreza intelectual seja a pior, pois é ela que sustenta todas as demais. Como se espera que um operador da Justiça seja justo se ele sequer conhece o básico sobre aquilo que grandes pensadores da humanidade escreveram sobre a justiça social? Não quero que os alunos de Direito saiam da faculdade prontos para fazer a revolução comunista. Quero apenas que saibam quem foi Marx e Engels – o que propunham, como propunham, quando propunham, onde propunham e por que propunham. Do mesmo jeito que quero que saiam de lá sabendo o mínimo sobre a obra de Nietzsche e Hegel. Não se trata de doutrinação. Se trata de conhecimento. Talvez seja por falta de conhecimento que parcelas cada vez maiores dos brasileiros sucumbam tão facilmente a discursos claramente fascistas, como o de algumas pessoas que saíram às ruas ontem pedindo o retorno da ditadura militar. A pobreza intelectual ainda vai nos matar enquanto fingimos conhecimento citando Marx e Engels e "Nietszche" erroneamente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário